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Conheça as iniciativas de “Design from the Margins”

DTM é um dos caminhos mais promissores para desbloquear parte significativa do potencial da sociedade e ajudar a criar o futuro; entenda por quê

Grazi Mendes
30 de julho de 2024
Conheça as iniciativas de “Design from the Margins”
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Por trás de todo contexto de desigualdade, existe um problema de invisibilidade. No mês da Luta das Pessoas com Deficiência, os números, como sempre, revelam mais uma realidade que insistimos em ignorar. Apenas no Brasil, são mais de 18,6 milhões de pessoas com algum tipo de especificidade motora, visual, auditiva ou cognitiva — 8,9% da população, de acordo com o IBGE. Quantas delas você viu contemplada em alguma campanha ou lançamento de Natal? Tamanho de mercado definitivamente não é o problema nesse caso.

A invisibilidade seletiva das pessoas com deficiência mostra novamente nossa dificuldade de trabalhar possibilidades além do status quo e nas chamadas bordas do mercado. Enquanto a inclusão, nas suas mais diversas formas, for percebida apenas como um custo, continuaremos a perder oportunidades valiosas de explorar novos territórios e encontrar soluções que beneficiem todas as pontas da sociedade. Não se trata de wishful thinking. Existem processos e metodologias reais para aproximar esse debate do centro de nossas políticas públicas, estratégias de negócios e projetos de inovação.

Entre todos os movimentos que tenho acompanhado nessa direção, as iniciativas de Design from the Margins me parecem um dos mais promissores caminhos para desbloquear toda a potência de indivíduos e grupos colocados à margem da sociedade. Assim como diz o nome (design pelas margens, em uma tradução livre), os projetos de DTM são baseados no desenvolvimento de produtos a partir das demandas de usuários ignorados pelo mercado tradicional. As pessoas com deficiência estão entre as principais delas, mas estamos falando de todo e qualquer grupo minorizado que tenha suas necessidades abandonadas pela lógica imediatista do consumo de massa.

DESIGN FROM THE MARGINS: INOVAÇÃO DAS BORDAS PARA O CENTRO

Ao focar nas demandas de grupos com necessidades marginalizadas, os projetos de DTM terminam revelando soluções que beneficiam todas as pontas da sociedade

De maneira geral, empresas e governos costumam focar no desenvolvimento central de projetos para apenas depois se preocupar com a acessibilidade. O que o movimento de Design for The Margins propõe é inverter essa lógica e pensar na inclusão e na diversidade como fontes de geração de valor para produtos e serviços desde o início dos projetos. Além dos benefícios de acessibilidade, esse tipo de inovação pelas bordas pode revelar soluções inovadoras para toda e qualquer pessoa. Um exemplo simples do seu poder de transformação é citado por Cesar McDowell, professor do MIT.

Para demonstrar o potencial de projetos de DTM, McDowell costuma apontar como uma política de rebaixamento das calçadas em esquinas americanas fez mais pela população do que promover a mobilidade de cadeirantes. No longo prazo, a institucionalização do design inclusivo nas cidades revelou vantagens que vão da redução de acidentes para corredores à facilidade de deslocamento para carrinhos de bebês. Não é um caso pontual. A história está repleta de histórias de projetos que vão muito além das rampas e revolucionaram serviços e mercados — e que nos mostram como podemos ir além das rampas e das vagas de estacionamento prioritárias.

Não faltam exemplos de ideias e tecnologias desenvolvidas para acessibilidade que mudaram os rumos da história da humanidade. O telefone foi inspirado por um experimento de comunicação para pessoas surdas (saiba mais abaixo). O teclado e a primeira máquina de escrever foram criados pelo engenheiro inglês Henry Mill para permitir que a condessa Carolina Fantoni da Fivizzano, uma mulher cega, pudesse escrever cartas. As telas touchscreen, hoje presentes nas mãos de bilhões de pessoas, tiveram seu desenvolvimento altamente influenciado por soluções de acessibilidade.

A INVENÇÃO DO TELEFONE: COMO UM PROJETO DE ACESSIBILIDADE MUDOU O MUNDO

Filho de uma mãe surda, Alexander Graham Bell, desenvolveu o telefone a partir de uma tecnologia de acessibilidade. A ideia que deu origem a uma das maiores invenções dos últimos séculos veio de uma pesquisa realizada por seu pai, Alexander Melville Bell, que desenvolveu um instrumento capaz de converter sons em figuras. O projeto, que tinha como objetivo ajudar pessoas surdas a se expressarem melhor, inspirou Graham Bell a iniciar seus primeiros estudos sobre novos formatos de comunicação, resultando nos experimentos de transmissão à distância de sons por eletricidade e na criação do primeiro telefone da história.

Em um país onde apenas 25% das pessoas com deficiência conseguem concluir o ensino médio, falar sobre acessibilidade como política pública ou estratégia de negócio pode parecer um sonho distante. Porém, mais do que começar a sonhar, devemos começar a sonhar na direção certa. E isso envolve uma mudança profunda na maneira pela qual desenvolvemos talentos e abrimos oportunidades no mercado de trabalho. Não basta apenas preencher cotas estabelecidas por lei — lembrando que as pessoas com deficiência recebem salários 31% menores em média. Precisamos incorporar novas vozes e pontos de vista no desenvolvimento de tecnologias, produtos e serviços.

Não há inovação sem diversidade. As iniciativas de Design From the Margins mostram que isso é muito mais do que um discurso afirmativo. Vou citar um caso prático. Em 2016, após uma série de denúncias sobre racismo em sua plataforma, o Airbnb montou uma força-tarefa composta por especialistas em direitos civis e funcionários negros para pensar em funcionalidades ligafas a demandas e desafios específicos de usuários negros — que, na época, tinham 16% menos chances de terem pedidos de locação aceitos. O projeto levou à criação do Instant Book, uma ferramenta que permite a reserva prévia sem a autorização dos proprietários dos imóveis. A funcionalidade está hoje entre as mais populares da plataforma.

No caso dos grupos de PcDs esse tipo de diferencial competitivo está ligado à própria perenidade das soluções que criamos para o mercado. Seja por um pé quebrado, seja por algum quadro de saúde mais grave, em algum momento da vida, a maioria de nós irá passar por algum tipo de condição de locomoção, cognição, visual ou auditiva. Na próxima década, o número de brasileiros e brasileiras com 60 anos ou mais deverá passar de 11,3% da população. A pirâmide etária está se invertendo rapidamente. Por isso, precisaremos sair das bordas com a mesma velocidade para explorar tecnologias que acompanhem o nosso processo de envelhecimento. Pensar num mundo acessível é pensar sobre todos nós.

Crédito da imagem: Shutterstock, com inteligência artificial”

Grazi Mendes
Grazi Mendes está como head of diversity, equity & inclusion na ThoughtWorks Brasil, consultoria global de tecnologia, é professora em programas de desenvolvimento de lideranças e cofundadora da Ponte, hub de diversidade e inclusão. Acumula cerca de 20 anos de experiência em gestão estratégica, branding, design estratégico, liderança e cultura, com atuação em empresas nacionais e multinacionais de segmentos diversos.

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