Sob à luz da história, tendo como referência o incidente internacional do Canal de Suez, e do efeito Gell-Mann de amnésia, este artigo discute as implicações das decisões tomadas na conferência da ONU sobre mudança do clima e os compromissos firmados.
[À medida que as cortinas se fecham pós-COP 28, líderes empresariais, formuladores de políticas e ativistas ambientais continuam a digerir as implicações das decisões tomadas e dos compromissos firmados na conferência da ONU sobre mudança do clima. O verdadeiro trabalho começa agora, com implementações e ações concretas. Este artigo, escrito no rescaldo da conferência, é publicado num momento de reflexão e planejamento estratégicos, oferecendo uma perspectiva crítica e atual sobre os acontecimentos.]
Em julho de 1956, o então presidente do Egito – Gamal Abdel Nasser – decidiu nacionalizar a empresa operadora do Canal de Suez, à época controlada por acionistas franceses e britânicos. Em novembro do mesmo ano, paraquedistas franceses e britânicos aterrizaram no Canal de Suez com o objetivo de recuperar o controle da empresa e do tráfego marítimo da região. A pressão política dos EUA, União Soviética e ONU para um cessar fogo imediato culminou com a retirada das tropas franco-britânicas poucos dias antes do Natal daquele ano e, em abril de 1957, a operação do Canal de Suez retornou à normalidade, mas já sob o comando do estado egípcio.
Historiadores consideram a crise do Canal de Suez como o ocaso da hegemonia global exercida pelo Império Britânico. Quando as forças armadas da saudosa Rainha Elizabeth bateram em retirada de Porto Said, o mundo acordou para Jesus e percebeu que a outrora superpoderosa Grã-Bretanha deixara de controlar o tabuleiro geopolítico global.
O incidente internacional serviu também para confirmar a máxima de Winston Churchill, Charles de Gaulle e Henry Kissinger: países não têm amigos nem inimigos, somente interesses.
O termo “efeito Gell-Mann de amnésia” foi cunhado pelo renomado escritor americano Michael Crichton, conhecido por obras como Jurassic Park e por suas palestras sobre mudanças climáticas. Em 2002, Crichton apresentou esse termo para descrever um paradoxo observado entre especialistas ao confrontar a cobertura midiática sobre suas áreas de expertise e outros campos do conhecimento.
A inspiração para o nome veio de Murray Gell-Mann, um cientista americano laureado com o Prêmio Nobel de física em 1969 por sua contribuição ao estudo das partículas subatômicas. Segundo Crichton, Gell-Mann frequentemente se incomodava com análises rasas da imprensa sobre os assuntos que ele dominava.
A palavra amnésia no termo “efeito Gell-Mann de amnésia” faz alusão à incoerência de especialistas que identificam a superficialidade em matérias jornalísticas sobre assuntos de sua especialidade, tal como a física para Gell-Mann e o Show Business para Crichton, mas continuam acreditando – sem questionar – em conteúdos da imprensa que versam sobre temas que fogem a suas expertises.
Quando me deparo com analistas na imprensa escrita ou televisiva contestando a liderança do presidente da COP 28 – conferência da ONU sobre mudança do clima –, o Sultão Al Jaber dos Emirados Árabes, por defender um cenário de transição energética global que inclua a exploração do petróleo, começo a questionar todo o noticiário produzido no nosso Brasil.
A COP 28 foi realizada em Dubai na primeira quinzena de dezembro do ano passado e, para surpresa de quase ninguém, nações exportadoras de petróleo defenderam uma redução gradual – ou phase-down – na utilização de combustíveis fósseis.
Entretanto, aparentemente, jornalistas e ativistas que vivem num metaverso sem gasolina, mas com iPhone, contavam com o apoio dos países produtores de petróleo para que os acordos negociados na COP 28 decretassem a eliminação completa – ou phase-out – dos combustíveis fósseis. Mais uma vez: países não têm amigos, somente interesses.
Na lógica da realpolitik, o mundo entenderia a capitulação da liderança emiradense na defesa da transição gradual para uma economia de baixo carbono como o momento Suez dos países petroleiros. Tratados climáticos, tal como o Acordo de Paris, não são vinculantes. Um documento assinado em Dubai não revoga a lei da oferta e da demanda, tampouco autoriza os fuzileiros navais americanos a invadirem os países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) para forçá-los a diminuir a produção de petróleo.
É fato, porém, que acordos climáticos voluntários definem as bases para tratados comerciais, e me parece bastante razoável que países importadores de petróleo utilizem o Acordo de Paris para justificar barreiras tarifárias aos combustíveis fósseis. O metaverso brasileiro navega nesse cenário de protecionismo climático deitado em berço esplêndido, contando com os trilhões de dólares do mercado global de créditos de carbono.
A realidade, entretanto, é menos promissora. Enquanto o desmatamento ilegal da Amazonia é basicamente um problema que pode ser resolvido por ações de comando e controle, o desmatamento do bioma Cerrado é mais complexo: não existe dinheiro no mercado de carbono para remunerar o agricultor brasileiro com o mesmo retorno financeiro auferido pelo plantio da soja.
Aposto um pacote de biscoito Globo que, nos próximos Global Stocktake – quando as nações fazem um balanço das iniciativas para cumprimento das metas de redução de emissões no âmbito do Acordo de Paris –, nossos países amigos irão defender os seus interesses e ameaçar nossa pauta de exportação com uma sobretaxa de carbono por causa do desmatamento no Cerrado.
Por fim, muito se tem falado sobre o fundo de perdas e danos aprovado logo no primeiro dia da COP 28 para apoiar países pobres no enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas. As doações voluntárias de países ricos totalizam até o momento aproximadamente US$ 700 milhões. No Brasil, esse montante seria considerado dinheiro de pinga. No Oriente Médio, é dinheiro de arak mesmo.”