Mais sobre o colunista

7 min de leitura

Mudanças da IA no mercado mostram que precisamos reinventar o sistema educacional

A inteligência artificial está mudando o seu trabalho. Você está preparado? Possivelmente não, porque a escola e a universidade não nos prepararam para um cenário em que soft skills serão cada vez mais estratégicas do que hard skills

Alexandre Nascimento
12 de julho de 2024
Mudanças da IA no mercado mostram que precisamos reinventar o sistema educacional
Este conteúdo pertence à editoria Tecnologia, IA e dados Ver mais conteúdos
Link copiado para a área de transferência!

Antigamente, eram somente aqueles que exerciam atividades físicas, braçais, que se sentiam ameaçados pela automação. Isso mudou. Se a inteligência artificial já ajuda a diagnosticar doenças, muitas são as profissões abaladas pela IA – e muitos são os profissionais que podem se ver ameaçados por ela.

Não estou falando de futuro. Dependendo da ocupação, tecnologias atuais podem automatizar pelo menos 50% das tarefas cotidianas. O tsunami da automação inteligente combina a capacidade “cognitiva” da IA para compreender uma situação e tomar uma decisão de como agir em tarefas operacionais.

Muitos dos robôs usados são softwares de uma tecnologia chamada automação robótica de processos (RPA, na sigla em inglês). Eles são capazes de emular humanos interagindo com outros sistemas digitais, permitindo, por exemplo, automatizar ações em sistemas de gestão.

Esses robôs têm a vantagem de possuir memória e velocidade de processamento muito superiores à capacidade humana. Assim, tarefas que demandam interação com o mundo digital podem ser automatizadas – e com vantagens. Por isso, segundo a consultoria McKinsey, dependendo da velocidade de adoção dessas tecnologias, entre 400 e 800 milhões de vagas de emprego poderão deixar de existir até 2030.

Paradoxalmente, nos últimos anos, temos percebido uma crescente dificuldade das empresas em preencher vagas. Enquanto algumas ocupações estão ficando desatualizadas e gerando menos postos de trabalho devido ao progresso da tecnologia, outras estão cada vez mais solicitadas, como cientistas de dados, engenheiros de IA e desenvolvedores de software.

> Apenas no ano passado, a demanda por especialistas em ciência de dados e desenvolvimento de software para celulares cresceu em torno de 500% e 600%, respectivamente.

Uma estimativa da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom) apontou que o setor de tecnologia deverá gerar em torno de 800 mil vagas até 2025.

Esse paradoxo é uma evidência de que há um fenômeno em curso no mercado. A própria natureza do trabalho está passando por uma transformação, e isso tende a se acentuar.

Independentemente de nossas ocupações, realizamos nossas atividades por meio de uma combinação de tarefas. Algumas são de natureza mais técnica e outras, mais humana. As tarefas mais técnicas demandam hard skills, que são aqueles conhecimentos e habilidades que aprendemos ao longo dos anos de preparação e treinamento que temos na escola, faculdade, em especializações e no próprio trabalho.

Exemplos dessas habilidades são diagnosticar uma doença a partir de exames médicos, realizar cálculos para dimensionar uma estrutura ou identificar um defeito numa máquina. Essas tarefas geralmente são mais repetitivas e possuem uma fundamentação técnica que as torna mais fáceis de serem reproduzidas por algoritmos. Por essa razão, elas são os principais alvos da automação inteligente.

Mas e a demanda crescente pelas capacitações técnicas em ciência de dados, IA e desenvolvimento de software? Pode parecer contraditório, mas muitas das atividades que esses profissionais realizam também estão sendo automatizadas por várias ferramentas, como as que permitem construir modelos de IA de forma automática ou mesmo criar aplicativos sem a necessidade de aprender uma linguagem de programação.

Ainda assim, a demanda por profissionais que saibam utilizar e extrair o melhor dessas ferramentas continuará existindo por um bom tempo. São atividades complementares.

Por que não aprendemos soft skills na faculdade?

Por outro lado, uma parte das tarefas que executamos durante nossa jornada de trabalho demanda as chamadas soft skills, ou habilidades comportamentais, como pensamento crítico, criatividade, negociação ou capacidade de resolver problemas complexos.

Apesar de alguns avanços recentes permitirem a criação de ferramentas de apoio a algumas delas, essas tarefas são pouco repetitivas, pois possuem uma grande variabilidade na forma de execução, nas informações que são usadas e geradas e nas suas características.

Há muitas sutilezas envolvidas, com resultados muito distintos. Por essa razão, é muito mais difícil que algoritmos de IA reproduzam totalmente essas habilidades, pelo menos em seu estágio atual de desenvolvimento. Portanto, elas são muito menos suscetíveis à automação do que as atividades mais dependentes de hard skills.

Consequentemente, a transformação digital e a automação inteligente estão criando uma demanda crescente por profissionais com um conjunto de habilidades comportamentais bem desenvolvidas. De fato, nas áreas mais automatizadas de um negócio, o descompasso entre a demanda e a oferta de profissionais com os soft skills necessários tende a ser maior.

> A automação está deslocando a natureza do trabalho para atividades que exigem mais habilidades humanas à medida que as empresas se tornam mais atualizadas tecnologicamente.

No entanto, os profissionais de recursos humanos têm relatado dificuldade em recrutar candidatos com habilidades comportamentais desejadas. Pudera. Pessoas inovadoras e criativas, com capacidade de solucionar problemas complexos, ter raciocínio crítico, lidar com situações ambíguas e, ainda por cima, se comunicar bem não são tão fáceis de encontrar.

Isso ocorre porque o sistema educacional foi desenhado para atender às necessidades de um mercado que demandava, majoritariamente, habilidades técnicas. Dentro de um paradigma surgido na Revolução Industrial, fomos educados para realizar trabalhos com ênfase em produtividade, eficiência e padronização para obter economia de escala. Aprendemos a sistematizar nosso trabalho e a convertê-lo em uma série de tarefas repetitivas.

De certa forma, podemos dizer que uma ênfase mais mecanicista (uma teoria da filosofia determinista) acabou permeando e modelando o nosso modelo de educação e a cultura profissional até os dias de hoje. Isso formou uma lacuna no desenvolvimento e aperfeiçoamento de soft skills fundamentais como a criatividade, a inovação e o pensamento crítico. Esses são alguns dos diferenciais da inteligência humana e que, infelizmente, se tornaram escassos no momento em que as organizações e a sociedade mais precisam.

O momento exige a atualização do sistema de ensino, da formação profissional, das estruturas organizacionais e de carreiras e dos modelos de gestão para desenvolver todo o potencial dos diferenciais humanos. Com isso, será possível maximizar os resultados que podemos obter com a combinação das melhores habilidades comportamentais com a automação inteligente.

> Mudanças estruturais são geralmente mais lentas do que os avanços tecnológicos.

Diante da profunda mudança na natureza do trabalho pela qual estamos passando, para garantir a empregabilidade no médio e longo prazos e aumentar as chances de sucesso, esses profissionais deverão focar o quanto antes no desenvolvimento das soft skills mais demandadas e nas hard skills que envolvam a utilização da IA e da automação inteligente no apoio à realização de suas atividades profissionais.”

Alexandre Nascimento
Alexandre Nascimento realiza pesquisas aplicadas em tecnologias inovadoras ligadas a algumas das principais universidades do mundo, como o próprio MIT, Stanford e Singularity University, e é empreendedor em série, hoje sediado no Vale do Silício. Tem trabalhado com desenvolvimento de inteligência artificial desde 1998, possuindo diversas patentes na área.

Deixe um comentário

Você atualizou a sua lista de conteúdos favoritos. Ver conteúdos
aqui