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Crise, coerência e suas narrativas

Saiba o que não fazer para não gerar uma segunda crise específica para o seu negócio; a cobrança sobre as empresas é imensa, maior ainda do que era, e isso é compreensível – estamos todos com muito medo

Junia Nogueira de Sá
30 de julho de 2024
Crise, coerência e suas narrativas
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Se tem algo que a crise cobra das empresas é coerência. Em pensamentos, palavras, atos e omissões, como reza o famoso ato de penitência dos católicos.

Coerência é o que os gringos chamam, com aquele seu jeito prático de encarar o mundo, de _walk the talk_. Traduzindo e interpretando, falar e fazer. E é exatamente o que todo mundo fica de olho durante a crise, para conferir se o que a empresa fala que faz durante a bonança é o que ela faz mesmo quando chega a tempestade. Onde uma coisa encontra a outra, aí mora a redenção dos pecados.

Ocorre que, nesta pandemia, a cobrança em cima das empresas tende a ser ainda maior. Por duas razões. A primeira: a crise tem dimensões inéditas e atinge a todos, criando uma base de comparação também inédita na cabeça do público. Que não apenas junta o _walk_ com o _talk_, como junta o que a empresa A está fazendo com o que fazem a B, a C, a D no planeta todo (com a ajuda das redes sociais) e tira suas conclusões. Para o bem e para o mal.

A segunda razão é que, também por conta das dimensões e do ineditismo, estamos todos com muito medo. É muito fácil gerar uma segunda crise, de confiança, dentro da crise original por isso. Em especial, se as empresas usarem narrativas tortas.

E o que é uma narrativa torta? Numa crise como a que estamos atravessando, coisas como:

1. Uma narrativa cheia de certezas. Porque quando ninguém tem respostas, quem aparece com todas elas só pode estar mentindo ou sendo ingênuo. Melhor seria criar uma linha de comunicação empática, das declarações do CEO às campanhas de mídia, que tenha a humildade de dizer: também não sabemos direito o que fazer agora, mas estamos trabalhando duro para descobrir. Soa mais humano e, portanto, verdadeiro.

Neste capítulo, aliás, um conselho: é mandatório deixar as informações especializadas para os especialistas. Sempre, por maior que seja a tentação. Quem não tem formação nem experiência no currículo para falar de vírus não pode dar uma aula sobre vírus, para ficar em um único exemplo. Isso também tem a ver com coerência.

2. Uma narrativa que vem cheia de um otimismo estridente. Do tipo “tudo vai passar, vai ficar bem e seremos felizes novamente”, em especial vinda de marcas e de negócios cuja linha de comunicação nem sempre teve essa estridência. É só ligar a TV  ou o computador agora e ver como isso destoa, pulando de alegria no meio de notícias do caos, da dor e da confusão que marcam estes dias. Parecem narrativas produzidas em outro planeta, ou que alguém esqueceu de, prudentemente, tirar do ar.

O momento é de falar do que nos importa a todos, ou seja, de solidariedade, esperança e luz no fim do túnel. Com responsabilidade e sobriedade, um toque de leveza porque estamos todos com a corda esticada no limite e, se for o caso, algum humor. Mais do que isso, é não entender a importância, no mundo ultraconectado, de seguir uma estratégia de contexto (tema para outra coluna). Não tem como produzir bons resultados, seja em vendas, seja em imagem.

3. Uma narrativa que não combina com a prática. Empresas fazendo _lives_ para falar do futuro e doações milionárias quando, da porta para dentro, estão demitindo empregados, cortando salários ou pouco se lixando para a saúde mental do time em _home office_ para manter a roda girando. Ou ainda as que estão estabelecendo jornadas de trabalho sem se preocupar com a segurança sanitária da equipe, só para poder comunicar que estão produzindo para o bem-estar de quem está em isolamento quando, na verdade, a ordem é faturar – e tirar proveito da situação.

Há centenas de (maus) exemplos aqui, mas o resumo é um só para quem ainda não aprendeu a lição: só se lidera pelo exemplo. E o exemplo começa dentro de casa, literalmente: o público interno. Isso também é coerência em estado puro.

E mesmo que tudo esteja mudando com a pandemia, certamente o apreço dos stakeholders por empresas e negócios coerentes com seus propósitos e valores não vai mudar. Pelo contrário: a tendência é que cresça muito no “novo normal” que ainda vamos viver.

Junia Nogueira de Sá
Consultora especializada em gerenciamento de riscos e crises, gestão de reputação e relações institucionais, foi diretora de assuntos corporativos do Grupo Telefônica no Brasil e da Volkswagen do Brasil, além de ter coordenado a comunicação do Governo de São Paulo e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Foi também CEO da FleishmanHillard no Brasil.

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