A disrupção causada pela pandemia tende a acelerar o surgimento de novos players movidos a dados e altamente escaláveis; eles não vão “disruptar” os negócios tradicionais, e sim causar uma colisão entre as curvas de valor
Toda vez que fazemos uma busca no Google, compramos no Alibaba ou na Amazon, pedimos um Uber, reservamos um Airbnb, um fenômeno ocorre. A entrega de valor não é feita por meio de processos de negócios tradicionais operados por funcionários, gestores, engenheiros de produção, supervisores e representantes de atendimento ao cliente; essas empresas entregam valor por meio de software e dados. Apesar de seres humanos desenharem os sistemas, são os computadores que fazem o trabalho: eles produzem resultados de busca, identificam e recomendam produtos (e estabelecem seus preços), selecionam um motorista, encontram um anfitrião. Essa realidade define não uma empresa digital típica, mas um novo tipo de empresa digital, construído sobre uma base digital integrada.
Trata-se de um tipo de empresa que acumula dados dos clientes, faz a mineração desses dados para obter insights e produz modelos preditivos para apoiar decisões-chave. Um tipo que, com frequência, é capaz de dar a seus clientes uma experiência superior, com muito menos funcionários do que os concorrentes, pois tem dados e inteligência artificial (IA) no centro e trabalho humano à margem. Players com esse perfil estão surgindo em vários setores da economia e vêm colidindo fortemente com os players estabelecidos, como é o caso do Airbnb, que já superou a rede Hilton em 2018 e está a caminho de superar a Marriott.
As colisões estão forçando os líderes de companhias estabelecidas a reexaminar a maneira de fazer negócios em ambientes nos quais alguns seguem regras radicalmente distintas. Mudanças pequenas, incrementais, promovidas pelos incumbentes não parecem mais ser suficientes. Eles precisam alterar fundamentalmente o modo de reagir a informações e de interagir com consumidores e usuários, o que significa repensar seus modelos de operação por inteiro.
Observemos as colisões no mercado global de viagens, por exemplo, no qual não é só o Airbnb que representa essa máquina de crescimento movido a dados; também marcas como Booking.com, Kayak e Priceline (todas de propriedade da Booking Holdings) se centram em software e dados para promover escala, escopo e aprendizado sem as restrições operacionais tradicionais. Em novembro de 2019, o valor de mercado da Booking Holdings era quase o dobro da Marriott. Em vendas de diárias, Airbnb e Booking ocupam posições de liderança.
Como efeito das colisões, os operadores tradicionais do setor se concentram, fazendo fusões e aquisições, e alguns tentam se digitalizar. Em uma corrida contra o tempo para se manter competitiva contra as máquinas de crescimento, a Marriott fez (em 2016) a fusão com a Starwood, muito forte em dados, e também vem rearquitetando seu modelo operacional.
ENTENDENDO A NOVA DINÂMICA
Se as necessidades do usuário são atendidas por um novo modelo operacional que digitaliza algumas das tarefas mais cruciais à entrega de valor, isso torna muito mais fácil crescer em escala. Enquanto empresas com modelos operacionais tradicionais têm retornos decrescentes conforme escalam e conforme aumenta o número de clientes atendidos, quem tem modelos operacionais digitais pode obter retornos crescentes com a escalada. A colisão ocorre quando as curvas de valor dos modelos tradicional e digital se cruzam veja o gráfico da página 53.
Apesar de sabermos que nada cresce para sempre e de termos certeza de que o valor gerado por modelos operacionais digitais um dia entrará num platô, o potencial de escala parece de fato ilimitado. Na verdade, o crescimento de alguns desses modelos operacionais digitais perderá velocidade apenas no caso de uma falha catastrófica, como um enorme escândalo de privacidade ou uma violação de segurança cibernética, ou ainda se houver preocupações regulatórias sobre concentração de mercado e proteção de dados do consumidor.
Os exemplos do setor de viagens mostram como IA, aprendizado e efeitos de rede podem andar de mãos dadas para criar uma proposta de valor que cresce rapidamente em uma série de ciclos de autorreforços. À medida que o modelo operacional desenvolve mais conexões, também desenvolve novas oportunidades de gerar e acumular dados. Com mais dados, surgem mais oportunidades para melhores serviços e maiores incentivos para terceiros se conectarem. Isso, por sua vez, aumenta o potencial de aprendizado e amplifica os efeitos de rede. Em geral, quanto maior a rede, quanto mais dados gerar, melhor o algoritmo, e maior o valor que ele pode oferecer.
Esses ciclos de autorreforço na rede e nos aprendizados fazem uma grande diferença para a natureza de competição. Nos modelos operacionais tradicionais, o valor que pode ser entregue começa a se nivelar à medida que a organização cresce. Isso geralmente implica que os novos entrantes podem ameaçar os operadores históricos, porque as vantagens de escala destes são significativas, mas não intransponíveis. Os novos entrantes podem ser tanto pequenas pousadas boutiques como modelos de operação digital, só que, nestes casos, as restrições tradicionais vão desaparecer e o valor entregue continuará a aumentar em velocidade cada vez mais maior.
Isso tem grande impacto sobre a competição. Como os modelos operacionais digitais capturam mais valor, o espaço de captura de valor deixado para os players tradicionais diminui, tornando cada vez mais difícil para as empresas tradicionais sustentarem uma oferta lucrativa. Airbnb e Booking fazem as marcas e experiências conquistadas com muito esforço pelas empresas hoteleiras tradicionais virarem commodities. Por exemplo, pesquisas mostram que o Airbnb interfere na capacidade das redes de hotéis de proteger seus preços durante períodos de alta demanda (quando um evento especial como uma convenção ou o Super Bowl chega à cidade). Aumentando a oferta de camas alternativas, o Airbnb coloca um teto nos preços que os hotéis podem cobrar, em benefício dos consumidores e em prejuízo dos resultados financeiros dos hotéis.
UM PADRÃO QUE SE REPETE: VAREJO E MÍDIA
As histórias do Airbnb e do Booking estão se tornando comuns em outros setores. Os serviços de computação na nuvem da Amazon e Microsoft estão substituindo os softwares e soluções de
hardware tradicionais; fintechs como Wealthfront e Kabbage estão mordendo os calcanhares de bancos estabelecidos e firmas de investimentos; plataformas de marketplace como Alibaba, JD.com e Amazon estão sobrepujando varejistas tradicionais. As transformações são profundas, com implicações sérias em três fronts:
• A maneira como as empresas desenham seus modelos de negócio (ou seja, como elas criam e capturam valor).
• A maneira como executam seus modelos operacionais (como entregam valor).
• As dinâmicas competitivas e as estruturas de mercado de seus setores.
Vamos discutir em mais detalhe o que está acontecendo em dois setores: varejo e mídia.
Varejo. A Amazon foi fundada em 1994 e estava entre os primeiros varejistas online, estabelecendo um padrão para outros varejistas online, incluindo Drugstore.com, JD.com e Pets.com. Com o tempo, os varejistas online criaram plataformas, e a Amazon ampliou e aprofundou seu mercado com milhares de terceiros que oferecem milhões de produtos. Em essência, a Amazon tornou-se uma Sears e Kmart aumentadas, mas sem precisar de lojas físicas ou do transporte de grandes quantidades de estoque.
Os varejistas tradicionais conseguiram competir com a primeira geração de varejistas online razoavelmente bem; as grandes mudanças não ocorreram instantaneamente. Por exemplo, a capacidade de os varejistas online usarem dados e analytics ainda era bem limitada e, como outros, eles sofreram com os gargalos da cadeia de fornecimento. Alguns varejistas online (Pets.com e Drugstore.com, para citar dois) se mostraram incapazes de atender às necessidades do cliente de maneira melhor do que a dos varejistas tradicionais e saíram do negócio.
No entanto, a Amazon achou uma maneira de enfrentar varejistas tradicionais usando uma plataforma operacional centrada em dados. E transformou a experiência de varejo. A transformação foi além de simplesmente transferir as transações para a internet; houve uma abordagem operacional fundamentalmente diferente, baseada na análise do cliente centrada em dados e em IA, a fim de personalizar a experiência de compra. As cadeias de fornecedores se concentraram em software, deslocando mão de obra do núcleo do processo para a borda (por exemplo, na seleção de produtos das prateleiras dos armazéns), o que removeu os gargalos e restrições de escala tradicionais. No fim de 2010, os pontos fracos dos varejistas tradicionais estavam à vista, ilustrados pelo desaparecimento de muitos players, incluindo Toys “R” Us, Sports Authority, Sears, Nine West, Kmart e Brookstone.
Demorou um pouco para os varejistas online descobrirem o modelo operacional certo e o implantarem, mas, uma vez que conseguiram fazê-lo, os varejistas tradicionais passaram a enfrentar desafios como nunca antes.
Entretenimento. O primeiro modelo operacional centrado em dados e software a colidir com os players tradicionais da indústria do entretenimento foi o Napster, no fim dos anos 1990, o que permitiu que as pessoas digitalizassem e compartilhem suas músicas online – evitando os pagamentos habituais aos vários players da indústria da música e oferecendo música como um serviço “gratuito”.
Apesar de sua imensa popularidade, o Napster se viu diante de muitas questões legais que levaram a seu fechamento em 2001. Após o fim do Napster, Apple Music, Spotify e outros entraram em colisão com a distribuição de música tradicional, transformando, por fim, modelos de negócio e operacionais para a distribuição de música nos Estados Unidos e além. Basicamente, eles converteram a despesa de aquisição de música que os consumidores individuais faziam caso a caso (resultando em uma biblioteca de música caseira limitada) em um serviço de assinatura mensal, oferecendo músicas ilimitadas em qualquer lugar, a qualquer hora. Spotify, YouTube e Apple agora são os principais hubs para o fluxo de música em boa parte do mundo.
Batalha semelhante ocorreu em vídeo. Embora a RealNetworks tenha lançado o primeiro streaming de vídeo pela internet em 1997, ela logo atraiu concorrentes como Microsoft e Apple, e, por fim, YouTube e Netflix. Os dois últimos ofereceram propostas de valor mais atraentes para os consumidores, além de operações mais escaláveis e modelos operacionais baseados em software, dados e IA.
Contudo, o mercado de vídeo mostra que, apesar das semelhanças nos modelos operacionais, diferenças significativas de modelos de negócio podem levar a diferenças no grau de competitividade. O YouTube, com um modelo de negócio baseado na agregação de uma enorme comunidade de pequenos provedores de conteúdo, domina o compartilhamento de vídeo. Ao tirar proveito dos fortes efeitos de rede, tornou-se um verdadeiro hub de compartilhamento de vídeos. Em contraste, os serviços de streaming de vídeo premium que a Netflix oferece vêm de um conjunto mais concentrado de conteúdo profissional de estúdios de produção. Embora os dados e as vantagens de aprendizado da Netflix sejam importantes, não é possível para ela concorrer com as vantagens do efeito de rede do YouTube em escala, que é obtido pelo compartilhamento de vídeos graças à capacidade da empresa de agregar conteúdo de uma vasta variedade de fontes. Essa fraqueza permitiu que várias empresas, como Hulu, Amazon e Apple, também entrassem na produção de conteúdo e competissem diretamente com a Netflix. Sem acesso a fortes efeitos de rede, esses provedores estão tentando diferenciar-se com uma gama mais focada de conteúdo exclusivo, por meio de relações com produtoras e integração vertical.
Como grupo, Netflix, Apple e Amazon também estão colidindo com emissoras de TV por assinatura, assim como as novas plataformas de distribuição de conteúdo em vídeo baseadas na internet que escalam rápida e globalmente. Ameaçados por concorrentes mais eficientes centrados em dados e IA, e atentos à devastação que ocorreu em outras indústrias, players de mídia tradicionais estão lutando para reagir, fundindo-se com provedores de conteúdo e serviços de internet para rearquitetar suas operações em torno de um núcleo digital.
O provedor de cabo digital Comcast fez grandes progressos ao introduzir e atualizar sua plataforma Xfinity X1. A Disney está seguindo o exemplo com seu serviço de ESPN+ e Disney+ Serviços. Ao contrário do segmento de compartilhamento de vídeos no qual atua o YouTube, o ambiente de streaming de conteúdo premium provavelmente será bem concorrido no futuro próximo.
A mudança na indústria do entretenimento põe em evidência questões interessantes: (1) ser o primeiro não é garantia de sucesso; (2) a transição para um modelo operacional digital, focado mais em dados, AI e redes digitais, espalha-se por todo o setor; e (3) apesar da convergência nos modelos operacionais, os players enfrentam diferentes tipos de competições – como YouTube e Netflix.
COMO A COLISÃO DIFERE DA DISRUPÇÃO
É claro que colisão e disrupção estão intimamente relacionadas. Conectam-se historicamente por uma “lei” cujo nome remete ao cientista da computação Melvin Conway, que observou que as organizações são forçadas a executar atividades (design, no exemplo original) que refletem os padrões de comunicação dominantes na própria organização. A lei de Conway explica por que a arquitetura física de produtos ou serviços desenvolvidos por empresas reflete as arquiteturas organizacionais destas.
Se olharmos para um projeto de desenvolvimento de produto tradicional, veremos grupos separados dedicados ao design de cada componente ou subsistema. Mas como essa arquitetura facilita para as organizações executar tarefas semelhantes repetidas vezes, também dificulta a resposta à mudança, causando inércia.
Em um artigo de 1990, os economistas Rebecca Henderson e Kim Clark argumentaram que inovações “arquitetônicas” – que exigem mudança na arquitetura dos componentes tecnológicos – são uma ameaça particular para as empresas estabelecidas. O estudo explicou o desaparecimento e a subsequente obsolescência de muitas empresas notáveis que não conseguiram alterar suas arquiteturas organizacionais para conseguir criar inovações arquitetônicas de produtos, como a RCA, que não conseguiu miniaturizar seus rádios de mesa em face da concorrência da Sony – que usava tecnologia RCA.
A ideia de inércia arquitetônica também está no centro da teoria da disrupção de Clayton Christensen, descrita pela primeira vez em 1995. No entanto, a disrupção, como o próprio Christensen apontou, tem sido invocada para descrever situações em que não se aplica realmente. A Uber, por exemplo, não está realmente disruptando o tradicional negócio de táxis; colide com ele. A colisão, ao contrário da disrupção, envolve mais do que introduzir uma inovação tecnológica ou a reformulação do modelo de negócio ou da proposta de valor; ela diz respeito ao surgimento de um tipo completamente diferente de empresa. Em resultado, defender-se da colisão não acontece simplesmente com uma spin-off digital, com um laboratório no Vale do Silício ou com uma unidade de negócios digital. Requer reconstruir o núcleo do negócio e mudar a forma como a organização trabalha, reúne e usa dados, reage a informações, toma decisões operacionais e executa tarefas operacionais. Em última análise, requer reconstruir o modelo operacional, com o software fazendo o que muitos trabalhadores faziam no passado. Isso vai bem além de alterar os padrões de comunicação humana nos quais Conway se concentrou.
PRINCIPAIS TAKEAWAYS * Depois da pandemia, é bem provável que surja um número maior de novos entrantes digitais, potencialmentetransformando as empresas estabelecidas em “commodities”. * Na lógica da colisão, as empresas estabelecidas até conseguem resistir aos novos players, mas só em um primeiro momento; com o tempo, se não reagirem à altura, tendem a ser descontinuadas. * Enquando disrupções podem ser abordadas com spin-offs e uma unidade de negócios digital, colisões exigem reconstruir todo o modelo operacional da empresa, com software, dados e inteligência artificial.