Paris prometeu reduzir radicalmente as emissões dos Jogos. Veja o que os organizadores aprenderam enquanto organizavam o evento – e o que pode ser aplicado a outros.
Cumprir metas de descarbonização pode exigir uma quantidade frustrante de tempo. É uma maratona fora do padrão, com um traçado cheio de ambiguidades, que faz muitas empresas quebrarem a cabeça para descobrir por onde começar.
Esses “maratonistas” podem aprender muito ao observar outros que estão desbravando o mesmo percurso. Especialmente o maior evento esportivo do ano. O esforço acelerado de redução de carbono feito pela equipe organizadora dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris pode ser bastante útil.
Em 2017, em uma disputa apertada com Los Angeles, Paris venceu a candidatura para sediar a Olimpíada deste ano. Uma das principais razões pelas quais o Comitê Olímpico Internacional (COI) acabou escolhendo a cidade foi o compromisso declarado do comitê Paris 2024 de reduzir as emissões de gases de efeito estufa pela metade em comparação com as quantidades médias emitidas nos preparativos e nas operações dos Jogos de Londres (2012) e Rio de Janeiro (2016).
O comitê teve sete anos para atingir a meta. Para vencer esse desafio ambicioso, implantou um processo de descarbonização à medida que aprendia a lidar com ele.
Sua experiência oferece quatro lições importantes para outras estruturas que estão começando ou avançando em suas próprias jornadas de descarbonização. Vamos a elas.
A equipe de Georgina Grenon, diretora de sustentabilidade dos Jogos de Paris, elaborou um “orçamento” básico para as emissões de carbono como referência para a infinidade de atividades necessárias para se preparar, operar e encerrar a Olimpíada. O time começou separando essas atividades em três categorias principais: transporte, obras e operações.
Para cada atividade identificada, estimou os níveis básicos de emissões, associados aos materiais e à energia utilizados. Esses números moldaram uma estimativa geral de onde viriam as emissões de carbono.
A equipe determinou as linhas de base usando uma análise cuidadosa de edições anteriores dos Jogos e de outros grandes eventos esportivos. As metas de redução refletiram as estimativas mais altas possíveis.
Para surpresa da equipe, as três categorias de atividades representaram, cada uma, cerca de um terço do orçamento de base. Isso significava que a economia não poderia ser totalmente obtida a partir das operações. Era preciso buscar oportunidades consideráveis de redução de emissões também no transporte e nas obras.
Para encontrar como essas economias poderiam ser feitas, a equipe analisou as emissões geradas por cada produto comprado. A Olimpíada tem dimensões colossais: são mais de 1 milhão de itens esportivos, de bolinhas de tênis de mesa a trampolins, que serão usados em competições arbitradas e transmitidas para o mundo todo com o uso de 85 mil monitores, computadores, telefones e outros equipamentos técnicos.
Ao todo, essas competições envolverão 15 mil atletas, além de outros credenciados, que precisarão de hospedagem e alimentação. A oferta de cama e comida também precisa incluir, obviamente, os turistas que viajarão a Paris para assistir aos Jogos ao vivo.
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Serão 13 milhões de refeições, 18 milhões de copos de bebida, além de 13 milhões de ingressos, que, para serem comercializados e distribuídos ao público, precisam de canais de venda. A origem de todos esses itens teria um impacto direto nas emissões, e a maioria das decisões importantes de abastecimento precisaria ser tomada anos antes.
A pegada de carbono relacionada às compras foi muito difícil de calcular: o trabalho, capitaneado por Caroline Louis, especialista em economia circular, levou mais de um ano. Ela achou a experiência bastante gratificante, pois jogou luz sobre o que é preciso para levar adiante o processo de descarbonização.
Veja como a pegada de materiais se distribuiu:
O pódio das emissões de carbono
Transporte do público e obras permanentes são os campeões da poluição
A equipe de sustentabilidade da Olimpíada de Paris estimou que o evento, ao longo dos anos de preparação e dos 16 dias de Jogos, consumirá algo em torno de 1,5 milhão de toneladas de CO2. A origem dessas emissões se divide em três partes de peso quase idêntico: 34% de transporte, 33% de operações e 33% de obras (ver gráfico a seguir).
A equipe percebeu que, para reduzir as emissões relacionadas às compras, ela teria que se concentrar nos materiais usados nas construções. Isso significou revisitar os projetos e a entrega das estruturas para que elas exigissem quantidades menores de material. Mais que isso: deveriam ser reaproveitadas ou recicladas após os Jogos.
A equipe desenvolveu diretrizes sobre os requisitos de projeto para instalações e mobiliário que atendessem a esses critérios. Os rigorosos orçamentos de carbono ajudaram no alinhamento da organização.
Todas as licitações foram submetidas a uma avaliação que levava em conta a segunda vida útil dos materiais. As orientações estipulavam que os materiais provenientes de infraestruturas temporárias tinham de ser reciclados ou reutilizados na França.
A equipe também decidiu que os contratos de serviços, em que o fornecedor seria proprietário dos materiais, seriam priorizados: 90% das instalações dos Jogos Olímpicos são de propriedade de fornecedores ou patrocinadores, que são responsáveis por entregar os materiais e gerenciar sua segunda vida após o evento.
Isso estimulou algumas soluções criativas. Por exemplo, a Lyreco, empresa responsável pelo fornecimento de móveis, criará um mercado de segunda mão em que venderá itens usados durante os Jogos.
Depois de construir e mobiliar instalações, a maior fonte de materiais necessários (9%) diz respeito ao atendimento às pessoas. Para cumprir a meta de 50% de redução de carbono, o time planejou diminuir as emissões relacionadas a compra, preparação e entrega de alimentos para cerca de 1 kg de CO2 por refeição servida. Isso exigiu várias escolhas radicais.
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Os acordos com a Lyreco e a Coca-Cola exemplificam a importância das parcerias e do pensamento ecossistêmico na redução da pegada de carbono e do uso de materiais. O mesmo pensamento foi aplicado para o fornecimento de energia. Se olharmos para a importância da confiabilidade e segurança energética para a Olimpíada, a sua organização depende de geradores a diesel para os principais eventos. Os Jogos de Londres, por exemplo, usaram 4 milhões de litros de diesel.
É um evento assistido por mais de 3 bilhões de pessoas, então evitar apagões é uma necessidade absoluta para as emissoras. Na verdade, a confiabilidade energética é uma dor de cabeça constante para todos os grandes eventos televisionados, devido às grandes somas que os canais de TV pagam aos organizadores.
Depender de geradores a diesel não combina com a ambiciosa redução da pegada de carbono que Paris havia estabelecido. Para diminuir essa dependência sem comprometer a segurança energética, as equipes de sustentabilidade e energia desenvolveram um novo modelo de fornecimento em de três camadas, que teve apoio substancial dos parceiros de energia EDF e Enedis (que também são patrocinadores oficiais dos Jogos).
Para começar, todos os eventos – em locais permanentes ou temporários – terão acesso à rede elétrica francesa, a primeira camada de energia. Em tese, ela tem total capacidade de atender às demandas dos Jogos. Essa eletricidade é 95% isenta de emissões, porque é, em grande parte, gerada por meio da energia nuclear e de energias renováveis.
Para garantir a segurança energética necessária, no entanto, os principais locais terão um segundo acesso à rede, que funciona como um backup. Geradores de biodiesel ou hidrogênio compõem a terceira camada na medida do possível, servindo como uma fonte alternativa. Eles serão ativados somente se ambas as conexões com a rede falharem.
Espera-se que a estrutura de três camadas ofereça algo próximo a 100% de confiabilidade. É menos provável que ela falhe do que o sistema com geradores a diesel. Essa abordagem, apesar da redundância que implica, é inédita na história dos Jogos, e tem a promessa de se tornar o novo padrão na indústria de eventos.
A equipe de sustentabilidade de Paris também garantiu que todos os locais serão abastecidos com eletricidade 100% gerada por fontes renováveis: um contrato assinado com a EDF rastreia a fonte de eletricidade até seis parques eólicos em terra e dois parques solares. Há uma instalação de energia solar na vila dos atletas e no centro aquático, além de unidades de geração temporárias e inovadoras, incluindo uma fazenda solar flutuante no Sena e uma cobertura fotovoltaica para o serviço de transporte de atletas.
Todo esse movimento gerou repercussões interessantes para o ecossistema energético na França. Os Jogos de Paris aceleraram as melhorias planejadas para a confiabilidade do sistema francês.
As empresas nacionais de energia instalaram quilômetros de rede de alta tensão subterrânea para apoiar o acesso à rede secundária. Também foram criados pontos de conexão em locais-chave, que permitirão que quaisquer eventos futuros nesses locais se conectem à rede e reduzam a dependência de geradores a diesel. O modelo de distribuição também garantiu financiamento estatal para a ser implementado em 300 cidades da França, reduzindo emissões de carbono para futuros eventos fora de Paris.
Essa organização deixa uma lição. Quebrar algumas paredes por meio de parcerias pode levar a benefícios inesperados no ecossistema que talvez não se veja a priori.
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As organizações têm que conviver com certas características inerentes ao seu negócio que são difíceis de mudar. Embora o transporte represente cerca de um terço da pegada de carbono dos Jogos, a equipe de sustentabilidade enfrentou um desafio: tinha pouco ou nenhum controle sobre os principais componentes de transporte, como viagens aéreas de espectadores.
Mas ela ainda poderia reduzir as emissões se pudesse diminuir a necessidade de transporte rodoviário para acessar eventos. Por isso, tomou uma série de medidas, entre elas:
Realizar o maior número possível de eventos dentro de um raio de 10 km da Vila Olímpica: 85% dos atletas serão acomodados a até 30 minutos de deslocamento para os locais do evento.
Estimular o uso de bicicletas: os espectadores da Île-de-France (região da França onde fica Paris) poderão chegar aos eventos pedalando, já que os locais dos Jogos são servidos por uma rede de 418 km de ciclovias, que inclui 88 km de novas rotas protegidas.
Nessa frente, a equipe de sustentabilidade trabalhou em estreita colaboração com atletas e delegações. Em março de 2024, quatro países europeus já haviam se comprometido a vir de trem. A medida foi bastante divulgada com o objetivo de incentivar os cidadãos a viajar para Paris também de trem.
Não dá para pedir que todo mundo deixe de ir de avião. Mas a organização da Olimpíada está mostrando que muito pode ser feito localmente. Todas essas medidas têm a importante função de sinalizar mudanças comportamentais duradouras.
Acreditamos que a jornada de descarbonização dos Jogos Olímpicos de Paris é um bom exemplo para os organizadores de próximas edições e de outros eventos. Mas é algo que exige compromisso de alto nível, fortes alavancas de execução (incluindo orçamentos de carbono rigorosos) e ferramentas de análise (como aquelas que avaliam o uso de materiais), além de parceiros alinhados e uma liderança corajosa, motivada e pronta para repensar procedimentos.
Esse esforço também está criando um legado. Prevemos que os profissionais que os Jogos educarão e capacitarão começarão a transferir sua própria experiência prática para muitas outras organizações.
Os contratos específicos de sustentabilidade que os Jogos de Paris celebraram para as obras, o modelo de fornecimento de energia para os eventos, o abastecimento de alimentos e os mercados de segunda mão podem ter um impacto duradouro e amplo. Não apenas para futuros Jogos Olímpicos e outros eventos, mas também para os negócios e a sociedade.