A transformação requerida aos executivos em posições de liderança agora passa necessariamente pela compreensão de que o “poder de poder” já não é perene diante das transformações digitais que se vive. O relevante é o poder de saber
Conta-se que, certa feita, o presidente de uma grande empresa de tecnologia decidiu visitar um velho sábio da aldeia de Hemu, quase à fronteira da China com a Mongólia. O executivo, depois de anos à frente de organizações complexas, abdicando de seus interesses pessoais, viu-se desfigurado, como se o seu único trunfo em vida tivesse sido apenas a sua carreira.
Apesar de todo o seu empenho em conseguir a audiência, a ele foi concedido o direito a fazer apenas duas perguntas. Ao encontrar com o velho, sentou-se diligentemente, encarando a testa do ancião que nem sequer levantou os olhos. Depois de instantes, perguntou: “_Grande Senhor, poderias me dizer quem sou eu?_”. Sem hesitar, com voz calma e suave, o sábio respondeu: “_Você pode ser quem você quiser_”.
O executivo hesitou um pouco. Havia se dedicado à carreira, ao sucesso profissional, ao currículo de conquistas e resultados sólidos. Porém, sentia falta de algo. Tinha a consciência de que todos os anos de estudo das melhores práticas de negócios, das mais fundamentais tendências do setor, dos métodos mais sofisticados, não lhe garantiam a fundamental sabedoria da vida. Pois estava ele ali, diante daquele monge cujos gestos e olhos pareciam interagir com algo divino. Não hesitou em fazer a segunda pergunta: “_Posso ser sábio_?”. O velho, sem qualquer alteração na expressão, respondeu: “_O sábio sou eu_”.
Essa história ilustra o traço essencial das posições de liderança (liderança entendida aqui de maneira tradicional, como posição hierárquica superior) nas empresas e organizações: você só ocupa essa posição quando lhe é concedida essa autorização. Mesmo que seja o fundador da empresa, o líder está ali por conta do mercado, uma autorização dada incontestavelmente pela carteira ativa de clientes. Não houvesse clientes, não haveria razão para a manutenção da empresa e, consequentemente, ele não teria o que ou a quem liderar.
Em grande medida, todo líder ocupa a posição por autorização de outra parte, seja o mercado, o contratante, o superior imediato, o povo de um país, um grupo social, etc. Tal condição impõe o caráter provisório do líder e sua provisória responsabilidade de servir a um propósito.
Uma pesquisa de 2018, realizada por uma rede social, constatou que grande parte dos líderes organizacionais desempenharam, em início de carreira, atividade profissional de consultoria. A alusão ao caráter provisório da função de consultor é bastante razoável, tanto no caráter temporário da tarefa para o qual o profissional é contratado quanto para o caráter de servir a certo propósito. A mesma pesquisa relata ainda que os futuros líderes, ao serem efetivados nas empresas, predominantemente desempenham função de _business development_. De maneira semelhante ao caso do consultor, é sensato assumir que a responsabilidade de _business development_ é função temporária, pois pressupõe o projeto estruturante do negócio, servindo ao propósito de consolidar uma operação. Parece que os líderes já possuem certa propensão ao provisório.
O caráter provisório da posição de liderança nas organizações pode ser compreendido de maneiras diversas, principalmente em relação ao propósito. Estudo da Infopro Learning de 2017 registrava que apenas 18% das empresas consideravam seus líderes “muito efetivos” no atingimento de metas. Dado este que reforça a ideia de que havia muita gente provisoriamente por aí.
Convém observar que o aspecto da _autorização_ que é concedida ao papel de líder – e a inegável relação com a dimensão provisória desta atribuição – é muito mais sutil do que se imagina. Deixando de lado aquela já arcaica máxima que avisa que “_você não é líder; você está líder_”, sobra pouco por dizer. Porém o que sobra é exatamente o que impõe aos líderes atuais a reinvenção do ofício. Para aqueles que almejam longevidade em suas posições de liderança – ou seja, que desejam ver renovadas as suas sucessivas autorizações para ocupar tal lugar – a imperativa transformação precisa acontecer no âmbito do _poder_ (entendido aqui como _direito de agir_ ou _concessão_).
Veja que ao entendermos o poder como direito de ação ou concessão, reembarcamos o significado de _autorização_. Estar autorizado a agir desta ou daquela maneira é um poder magnífico. Mas há que se entender que a autorização se dá por duas vias distintas: ou em razão de que nos foi concedido _o poder de poder_, ou em razão de termos o _poder de saber_. Seja este ou aquele, ter o poder permite liderar. Mas, em ambos os casos, o caráter provisório do poder não está descaracterizado. Com o poder de poder fazer o que lhe vier à cabeça, o líder está autorizado apenas enquanto servir ao propósito de quem o colocou na posição. Sua jornada é provisória na medida em que depende de outrem. Já com o poder de saber fazer algo que outros não sabem, a liderança é conquistada pelo caráter de que o conhecimento serve ao propósito de resolver uma situação ou problema. Ou seja, nessa condição, o caráter provisório depende do desempenho do próprio líder. Apenas no caso em que esse conhecimento seu perdesse a serventia, sua posição enfraqueceria.
A transformação requerida aos líderes, então, passa necessariamente pela compreensão de que o poder de poder já não alcança perenidade diante das transformações digitais que se vive. O ecossistema digital pune com muita rapidez e premia com a mesma velocidade. Além do mais, trata-se de um ecossistema bastante instável: quem foi punido pode, em outra circunstância, redimir-se e alcançar relevância; quem era referência pode se tornar irrelevante. O fio da navalha que arrepia o pescoço dos líderes atuais advém dessa grande pedra de amolar que gira incansavelmente nas entranhas de 1,45 bilhão de sites onde navegam 4,3 bilhões de usuários (fonte: olhar digital). Não há poder de poder que possa servir de escudo para este feixe contínuo de influências que variam segundo a monumental correlação de dados, correlação esta que se modifica na mesma velocidade em que mais e mais dados são depositados no ecossistema digital.
O único poder relevante em tal circunstância é o poder de saber. O líder que entende isso, que empenha sua vida profissional para compreender que é pelo conhecimento que se alcança relevância, terá maiores chances de estender a sua provisória posição (no âmbito do conhecimento, os fundamentos científicos do funcionamento da mente humana são particularmente determinantes). E é exatamente o caráter provisório de servir ao propósito de estar sempre em constante revisão de seus conhecimentos que perpetua a liderança. Porém, neste caso, o significado de provisório precisa ser entendido pela sua primeira derivação, que remete à etimologia da palavra; do latim _pro + videre_: _ver à frente._ Para liderar, é preciso _ver à frente_ e assim afirmar sem hesitação: “_O sábio sou eu_”.