Nos EUA, os eventos abertos de empresas de tecnologia são meios para elas fortalecerem seus ecossistemas e exercerem sua cidadania corporativa; no Brasil, isso é novo
“A VTEX é estrangeira, certo?!” Algumas pessoas me fizeram essa pergunta na semana que acabou.
Não, não é. Essa empresa de tecnologia que atua em 28 países nasceu em 1999 no Rio de Janeiro e continua sob controle brasileiro, apesar de seu destaque crescente no mercado mundial de e-commerce baseado na nuvem. Isso por si só já valeria um post no blog da MIT Sloan Review Brasil, uma vez que nossos líderes empresariais desistentes do páreo tecnológico ainda podem querer mudar de ideia. Porém, na semana em que a VTEX organizou a sétima edição de seu megaevento VTEX Day, e trouxe como palestrante o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, é preciso priorizar outro assunto: o da empresa cidadã e militante.
Na América do Norte, eventos abertos de empresas – para clientes, parceiros e quem mais se interessar – são assunto velho, sobretudo entre as empresas de tecnologia, que os utilizam para mobilizar seu ecossistema. Basta pensar em eventos como o F8 do Facebook, o Dreamforce da Salesforce, o SAS Global Forum do SAS, ou o WWDC da Apple – este, por sinal, acontece a partir desta segunda-feira, 3 de junho. São eventos de lançamento de produtos, de educação (imersiva) dos usuários, de construção de comunidade por meio de relacionamentos presenciais num mundo baseado em contatos a distância. E, muito importante, esses eventos são um exercício de cidadania e militância corporativa, uma nova maneira de de influenciar a sociedade e, assim, dar recados aos governantes.
As empresas organizadoras desses eventos geralmente convidam palestrantes externos alinhados com seus valores e causas (e recados). Diferentemente de uma organização cujo ganha-pão são os eventos, que se preocupa em oferecer um mosaico das principais ideias em voga, as companhias tech chamam gente com a qual têm sintonia. Como Marc Benioff, o fundador da Salesforce, que no Dreamforce de 2018 recebeu Al Gore, ex-VP dos Estados Unidos e ganhador do Nobel da Paz pela defesa do meio ambiente – um palestrante totalmente alinhado com o esforço de carbono zero da empresa.
No Brasil, um evento aberto como o VTEX Day ainda é a exceção à regra, no entanto. A subsidiária do SAS vai fazer uma edição brasileira do SAS Forum, também nesta semana, e a Votorantim promoveu recentemente uma série de eventos por conta da celebração de seu centenário, mas trata-se de algo incomum. Consigo pensar em várias razões para que esses eventos se multipliquem aqui, desde uma maneira mais inteligente de fazer marketing (B2B e B2C) e branding empregador na era digital até o fortalecimento da ideia de ecossistema, mas quero destacar o fato de serem os novos vetores da cidadania e da militância corporativas num país que padece com a dificuldade que governo e empresariado têm em se relacionar direito.
Desde a Operação Lava-Jato, as companhias brasileiras estão quietas. Na verdade, os empresários brasileiros nunca foram muito participativos publicamente. Em 1978, oito dos maiores chegaram a desafiar o regime militar com uma carta em que se posicionaram publicamente em favor da redemocratização do país – a carta era assinada por Antonio Ermírio de Moraes, José Mindlin, Cláudio Bardella e outros. Alguns, como os fundadores da Natura, também tiveram uma participação interessante na década de 2000, com a criação do Instituto Ethos. Mas, historicamente, foram poucas as contribuições públicas orientadas a construir um país melhor (não contam as pressões por benefício tributário a um setor). Em grande parte, isso ocorreu porque sempre houve o joio misturado com o trigo, com muitas empresas influenciando o Estado inescrupulosamente (no mais amplo sentido desse advérbio) e a mídia séria colocando sob desconfiança todas e quaisquer aproximações.
Só que estamos no século 21, e a nova economia exige dos governos que apoiem estrategicamente suas empresas para que estas consigam ser competitivas em parâmetros globais e para que as economias nacionais possam ser fortes. Como criar a aliança necessária num país cuja tônica é a falta de confiança entre o público e o privado? Lembro de ouvir Ozires Silva elogiar esses tipos de aliança em outros países e queixar-se da passividade do empresariado brasileiro ante o governo para construir tais alianças. (Para quem não associou o nome à pessoa, Ozires Silva fundou o que foi uma das poucas empresas brasileiras a atuar na vanguarda mundial de um setor, a Embraer.) Aparentemente, empresários da nova economia, como Mariano Gomide de Faria e Geraldo Thomaz, fundadores e co-CEOs da VTEX, acharam uma resposta: ao fazerem um evento aberto a um público de 15 mil pessoas, que não tem como passar despercebido, e ao convidarem Obama para falar, eles estão se fazendo ouvir. (E não brincaram em serviço, porque só o fee de Obama era estimado em US$ 400 mil em 2017 e, segundo múltiplas fontes, já subiu acima de US$ 1 milhão – e ainda há os gastos com toda a equipe de segurança que o acompanha.)
Num dia que a cidade de São Paulo teve manifestações de rua a favor da educação, também a bandeira levantada no VTEX Day foi a educação – e isso foi mostrado de todas as maneiras possíveis, para que não restassem dúvidas. Em primeiro lugar, os lugares VIP, na primeira fila da plateia, foram ocupados por professores e não presidentes de empresas. Em segundo lugar, a apresentação musical foi dos Meninos do Morumbi, ONG que reúne educação, música e dança. Em terceiro lugar, subiram ao palco Viviane Senna, presidente do Instituto Ayton Senna, voltado à educação, e a professora Debora Garofalo, que foi finalista do maior prêmio de educação do mundo por inovar nessa área ensinando robótica com sucata e englobando diversas áreas do conhecimento para essa finalidade. Em quarto lugar, lançou um desafio educacional para jovens, que envolvia conectar múltiplos conhecimentos – STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática) e de humanidades –, justamente a nova visão da educação. Por fim, o keynote speaker, Obama, criou uma fundação para educar a próxima geração de líderes do mundo e é absolutamente comprometido com o assunto.
Educação não pode ter sido uma escolha fortuita da VTEX. As companhias brasileiras já estão sofrendo com a oferta limitada de profissionais preparados para trabalhar na nova economia. Falta-nos uma base de consumidores mais robusta no mercado doméstico. E tendemos a perder muitas oportunidades por causa disso tudo. Como Mariano Gomide disse, a VTEX acredita que o Brasil pode se posicionar como o maior provedor de serviços digitais do mundo, assim como a Índia virou a maior fornecedora de serviços de call center – mas, para isso, são necessários profissionais qualificados. Aqui vai um resumo da conversa, em itens:
• Educação tem de ser a prioridade. Para Obama, líderes, organizações e países têm de aprender a valorizar os professores, como modo de valorizar a educação. E a gênese disso está no entendimento do impacto da educação sobre pessoas e países. Obama deu seu próprio exemplo. Sua mãe o educou para ser curioso e para gostar de ler, e o fez acreditar que assim poderia ser o que quisesse na vida. Uma professora da quinta série o fez sentir orgulho de ser quem era, um menino diferente de todos os outros (era um menino afro-americano entre brancos, recém-chegado da Indonésia, no Havaí). “O poder dos professores de instilar confiança em um criança é enorme”, destacou. Outra professora, na universidade, o influenciou a seguir a carreira política, pois o levou a ingressar na luta antiapartheid – e ela ainda lhe deu uma lição fundamental quando ele ficou ressentido por não estar brilhando mais no movimento, ao perguntar se participava pelo ego ou pela causa. “Foi quando entendi que a causa é que era importante e que eu tinha de ser útil a ela”, disse. E quanto ao impacto da educação sobre um país? Obama foi direto ao ponto: “Não há mercado forte sem educação; não há economia forte sem educação”, afirmou em certo momento. Vale acrescentar o que ele acrescentou: educação não é apenas saber ler, escrever e fazer contas; o pensamento crítico é crucial, ainda mais num mundo dominado por máquinas.
• Dá tempo de o Brasil virar o jogo. Todos sabemos que a melhoria da educação é um esforço de longo prazo, mas, na visão de Obama, muita coisa pode começar a ser feita de imediato. Ele citou a China, que criou um solo fértil para sua economia quando começou a proteger as patentes, o que equivale a proteger quem estudou para desenvolver algo novo. Ele também citou a Finlândia, que se preocupa em remunerar bem o professor e em dar-lhe um status elevado na sociedade. “Um professor não pode ganhar um centésimo do que ganha um banqueiro de investimento”, comentou. Ou as melhores mentes sempre vão preferir ser banqueiras a professoras. Obama citou o círculo virtuoso da inclusão pela educação que aconteceu nos Estados Unidos, uma sociedade que era tão desigual quanto a brasileira – as duas com escravidão manchando sua história. “Quanto mais pessoas eram incluídas, mais sucesso os Estados Unidos tinham.” Comparando o Brasil com os Estados Unidos, as duas sociedades com maior diversidade populacional em todo o planeta, e enfatizando que isso é uma enorme vantagem competitiva nos tempos atuais, Obama também comentou que as desvantagens existentes, se forem canalizadas adequadamente, podem ser “um motor para o sucesso”. Ele comentou que isso aconteceu em seu caso e que pode acontecer com qualquer pessoa, mas é possível estender a ideia para empresas e para países.
• Os melhores líderes têm um processo. De modo geral, Obama criticou os líderes que querem encaixar a realidade em suas opiniões preexistentes para não ter o desconforto de analisar a realidade como ela é, mesmo que vá contra suas opiniões. “Um líder sempre tem pontos cegos, por isso ele tem de confiar num bom processo de decisão: cercar-se de pessoas com pontos de vista e experiências diversas e lhes fazer boas perguntas”, afirmou. O ex-presidente dos EUA confia no futuro de qualquer país, organização ou pessoa que consiga se apoiar em redes de pessoas diversas. Um líder também não deve reclamar dos problemas difíceis, em sua visão, pois é para tomar decisões difíceis que serve uma pessoa em posição de liderança. “Nenhum problema que chegou a mim foi fácil; só vinha o que era complexo, grave, que ninguém mais podia decidir”, contou. E ele tinha de tomar sua decisão tendo um grau de confiança de 55% nos dados, em média. “Por exemplo, não havia certeza de que era Osama Bin Laden mesmo o suspeito que haviam localizado. Mas eu tomei a decisão sabendo que o processo de decisão estava correto. Eu confiei no processo.” Obama fez sua autoavaliação: não acertou sempre, mas acha que teve um índice de acertos acima da média. Indagado sobre seus maiores motivos de orgulho, Obama citou vários, do Obama Care (programa de healthcare para os menos favorecidos agora desmontado por Trump) a ter criado duas filhas “normais” no meio da loucura que é a vida na Casa Branca, passando por não ter vivido nenhum escândalo em oito anos no poder. “É totalmente possível ter grande poder sem ser corrupto”, disse, sob aplausos entusiasmados. Obama também foi bastante aplaudido quando falou de sua frustração de não poder aumentar o controle sobre a posse e o porte de armas nos Estados Unidos (o que ele relacionou aos trágicos tiroteios em escolas) e quando frisou a importância de as causas sempre virem antes dos egos dos líderes.
• O futuro e uma nova mentalidade. “Não adianta termos aplicativos maravilhosos e uma realidade virtual espetacular se o ambiente lá fora não nos deixar respirar”, afirmou Barack Obama, frisando a importância da proteção ambiental no mundo atual. E ele fez questão de dizer que o desafio não é responsabilidade apenas dos líderes de governos, mas dos líderes empresariais também. Obama ainda criticou o aumento da desigualdade associado às mega-corporações de tecnologia. “Se as pessoas que enriquecem não querem devolver à sociedade, tem algo muito errado; precisamos redesenhar nossa mentalidade. Hoje achamos que nosso poder e nosso valor estão no que possuímos. Isso não é verdade. Nosso poder e nosso valor estão em sermos capazes de ajudar os outros”, comentou, pedindo uma revolução de valores.
• Aprender a correr riscos é obrigatório; há um jeito de fazer isso. Sabe qual foi um fator-chave que Obama identificou na base do sucesso sua carreira – além da educação e do processo de liderança com diversidade, já mencionados? E além da sorte? (Sim, ele se lembrou de dar crédito à sorte.) Não foi a coragem, como tantos dizem; foi a capacidade de controlar o medo de fracassar. Num um país em que a aversão ao risco é bem alta, seja em âmbito pessoal, organizacional e até governamental, isso é bem importante de compartilhar. “O medo do fracassar é o que mais impede as pessoas de terem sucesso, porque as impede de tentar coisas”, garantiu o ex-presidente. Obama compartilhou com a plateia seu “modus operandi” quando esse medo surgia. “Toda vez que eu tinha medo de experimentar algo e fracassar, eu ficava pensando: ‘já fracassei antes e sobrevivi’.” Ele recomendou atenção especial a quem está a nossa volta, que por amor nos quer poupar do sofrimento que um fracasso impõe, e acaba sabotando nossa ousadia, nossa disposição de tentar coisas e correr riscos.
Nenhum presidente do Brasil foi mencionado na conversa entre Obama e Thomaz, mas, se o leitor interpretou que houve recados enviados indiretamente a Jair Bolsonaro e a Luís Inácio Lula da Silva, não está sozinho. Entre as 15 mil pessoas da audiência (10 mil dentro do auditório principal e 5 mil acompanhando pelos telões na área de exposição), parte parece ter entendido a mesma coisa – a julgar pela cadência e pelo volume dos aplausos.
O subtexto importa menos, para a finalidade deste post. Importa que as perguntas feitas por Geraldo Thomaz a Obama, e as respostas que este lhe deu, coroaram uma narrativa corporativa que é também um movimento de cidadania típico da nova economia, intencional ou não. Isso é pouco usual no Brasil e é algo de que nosso país precisa – se quiser recuperar a capacidade de crescimento econômico, se quiser ter algum protagonismo internacional nos tempos que virão. Façamos votos para que mais empresas sigam o exemplo da VTEX e defendam, barulhenta e publicamente, a educação e outras causas importantes para o progresso do Brasil.
PS de dia útil – O post subiu no final de semana e, nesta segunda-feira às 6 da manhã, recebo uma mensagem de WhatsApp de uma amiga querida, jornalista, _connoisseur_ de empresas por dentro, como PR, dando o feedback dela para este texto: “Muito bom!. Mas… ainda desconfio que há grande parte de marketing – no sentido raso – nas supostas causas de vários… sou cética até às unhas dos pés”. Com a qualidade de digitação que o sono me permitiu (risos), respondi o seguinte: “A intenção importa menos que a ação nesse caso… Tanto as causas quanto o marketing de causas têm o mesmo efeito”. O comentário da minha amiga foi ótimo, porque me deu a oportunidade de fazer um adendo importante: não se trata de abrir mão do ceticismo. O fato é que, seja qual for a intenção dos fundadores da VTEX (e não tem como eu estar na cabeça do Mariano Gomide e do Geraldo Thomaz para saber qual é), esse tipo de evento que inclui causas é uma nova forma de comunicação das empresas com seus diversos stakeholders e pode ter impacto real. Uma ótima semana para todos!