DIREITOS HUMANOS 7 min de leitura

O papel das pessoas brancas no combate ao racismo

Sim, esse também é o lugar de fala de quem não é negro – e a comunicação antirracista é uma das ferramentas para combater o preconceito e a discriminação

Ernesto Xavier
Ernesto Xavier
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Ricardo (nome fictício), um rapaz de cerca de 20 anos, vivia em uma favela da zona norte do Rio de Janeiro e estudava na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Certo dia, ao voltar para casa, foi abordado por policiais para ser revistado por três vezes em menos de 30 minutos. Na terceira abordagem, ele questionou o motivo para ser parado de novo, e o policial respondeu: “Não tenho culpa se você é um cidadão padrão para revista”.

Esse relato é de 2015 e poderíamos pensar que se trata de um caso isolado. Porém, em 2013, o Comando da Polícia Militar de Campinas deixou vazar um relatório com uma ordem para priorizar a abordagem de indivíduos de cor parda ou negra. 

Não é coincidência. 

O racismo é o alicerce que sustenta a sociedade brasileira. Todos os acontecimentos sociais, econômicos, religiosos e políticos são sustentados pelas relações de poder estabelecidas pelo racismo. Essa sociedade – não se esqueçam – foi fundada e construída por meio da exploração de trabalho escravo indígena e negro. 

A partir dessas relações de exploração é que as identidades foram construídas, as conexões se formaram, as riquezas (de uns) se estabeleceram, os privilégios surgiram, as visões negativas ou positivas se afirmaram, a pirâmide social nasceu e as cores de quem vencia ou perdia as batalhas do dia a dia ficaram evidentes.

O que é o racismo estrutural?

O termo “racismo estrutural” começou a se popularizar no Brasil a partir do lançamento, em 2018, do livro “O que é racismo estrutural?”, do advogado e atual ministro dos direitos humanos Silvio Almeida. O termo, porém, foi banalizado: de forma errônea, foi utilizado para isentar pessoas racistas de suas falhas e crimes. 

Se o racismo é “estrutural”, como alguém pode não ser racista? O racismo passaria, segundo essa interpretação, a ser inevitável, pois “não fui eu, foi a estrutura”.

O racismo no Brasil é estrutural porque a construção do país como o conhecemos só foi possível por conta da exploração de trabalho escravo e da desumanização de pessoas negras e indígenas. 

Mesmo após a proibição da exploração de trabalho escravo indígena em 1757 e da abolição da escravidão de negros, em 1888, as relações de poder e as posições sociais de negros e brancos se mantiveram.

Toda dificuldade possível é colocada para que as pessoas negras não consigam se movimentar socialmente nem lutar de maneira organizada por direitos. Esse é o fundamento do racismo estrutural.

A escravização de pessoas negras vindas da África não seria possível sem o aval da Igreja. Foi a Igreja Católica que estabeleceu que negros não tinham alma, portanto estavam em pé de igualdade com animais ou objetos e podiam ser vendidos. Com a permissão da Igreja, a elite se sentia isenta de culpa pelos maus-tratos e podia lucrar à vontade.

Agora pense no Brasil de 1872 com 1,5 milhão de escravizados (entre brasileiros e africanos), cerca de 15% da população nacional. O tráfico negreiro tinha sido proibido em 1831; com a lei Eusébio de Queirós (1850) e a do Ventre Livre (1871), o número de negros libertos crescia pouco a pouco. 

No entanto, eram esses negros libertos que recebiam uma miséria para realizar serviços, eram expulsos de suas residências nas reformas urbanas, tinham acesso precário à saúde, eram em grande analfabetos, perseguidos pela polícia e presos, proibidos de se manifestarem religiosamente a não ser pela fé cristã e impedidos de obter terras (ou sofriam dificuldades).

O controle do ser humano negro, hoje maioria da população, dá-se em todos os âmbitos da sociedade. Para que o sistema seja aquele em que pessoas pretas e pardas (que estão na base da sociedade) continuem servindo a elite (branca), é necessário que o racismo esteja presente em tudo. 

Leia também: Combata o racismo, palavra por palavra, de Denise Hamilton

O controle não se dá apenas pelo aparato policial. Foi (e é) necessário dificultar o acesso à educação de qualidade, a bons salários, à saúde, ao saneamento básico, a boas moradias, ao transporte público, à cultura, à autoestima, ao reconhecimento de sua história e heróis, à religiosidade e até ao amor. 

Toda dificuldade possível é colocada para que as pessoas negras não consigam se movimentar socialmente nem lutar de maneira organizada por direitos. Esse é o fundamento do racismo estrutural.

A opressão pelo racismo recreativo

Sendo assim, instituições públicas, empresas privadas, órgãos de justiça e segurança, escolas, hospitais, canais de TV e agências de publicidade atuam de maneira direta e indireta para que o estado das coisas se mantenha inalterado. 

Isso só é possível porque aqueles que estão no comando de todos esses organismos são pessoas não-negras, que atuam, sem pensar (ou não), para que seus semelhantes continuem no poder, sem realmente questionar e agir para mudar as relações raciais que dividem a nação entre negros e não-negros, entre quem pode subir e quem deve permanecer na base, entre quem vive e quem sobrevive.

“‘Aí é que é a mesa dos cotistas?’”, gritou a professora – e em seguida gargalhou. Os ocupantes da mesma mesa em que ela estava riram também. Fazia referência a um rapaz negro e a mim, sentados juntos em uma festa de aniversário em que 90% dos convidados eram professores doutores da universidade e alunos de graduação e pós-graduação.”

Racismo recreativo é a reprodução sistemática de estereótipos que estigmatizam pessoas negras com a desculpa da brincadeira, da piada, da descontração. 

Vanessa (nome fictício), na época com 24 anos, assistente social da Defensoria Pública do Estado do Paraná, contou-me essa história em que o racismo se disfarça de brincadeira. A fala da professora carrega uma mensagem: “este lugar não é para vocês”. 

Sim, as cotas são importantes, mas o que estava estabelecido naquele espaço era que aquela minoria negra só estava ali porque teve um “benefício”, pois essas pessoas não teriam capacidade de disputar uma vaga com outras não-negras. 

Esse é o discurso. Colocado como uma piada, a pessoa negra carrega a responsabilidade de decidir a maneira como irá reagir: ficar calada e evitar problemas? Reclamar e ser desacreditada, já que era uma “brincadeira”?

O que classificamos como racismo recreativo é a reprodução sistemática de estereótipos que estigmatizam pessoas negras com a desculpa da brincadeira, da piada, da descontração. 

Leia também: “O que o ‘dinheiro inteligente’ diz sobre CEOs negros”, de Curtis L. Wesley II, Hermann A. Ndofor, Enrica N. Ruggs e Derek R. Avery

Algo importante a ser dito: a brincadeira só existe quando todos se divertem. Se um indivíduo se sente incomodado, a brincadeira deixa de existir. E mesmo que nenhuma pessoa negra reclame, é importante analisar que tipo de “brincadeira” se faz, atentando para preconceitos que são naturalizados.

Pessoas negras, em geral, acabam se calando diante do racismo recreativo, pois estão cansadas, em minoria ou não querem parecer raivosas e entrar em conflito. Muitas vezes, em ambientes de trabalho, a situação piora, pois há o receio de ser malvisto, de perder o emprego, de ficar marcado como alguém que “reclama de tudo”.

Como pessoas brancas podem ser antirracistas

Em uma sociedade em que pessoas negras são minoria (ou inexistentes) em espaços de poder, cabe às pessoas brancas antirracistas (que todos deveriam ser) utilizar seu lugar de fala

Aqui cabe desmistificar o termo para mostrar que a responsabilidade de combater a discriminação usando a comunicação antirracista assertiva é dos brancos. Não tenho a pretensão de esgotar um conceito tão complexo como lugar de fala em apenas algumas linhas, mas acredito que alguns pontos simples e até práticos possam ajudar na caminhada antirracista.

Para começar, todos têm lugar de fala. Você se assustou? Sim, todos podem falar sobre tudo, desde que compreendam que falarão a partir da sua perspectiva e circunstância. Ou seja, homens podem falar sobre mulheres, brancos podem falar sobre negros, neurotípicos podem falar sobre atípicos e por aí vai. 

No entanto, compreenda que seu lugar de fala, não sendo alguém que sente aquela dor na pele, é diferente de quem vive a experiência do racismo, do machismo, do capacitismo, entre outras. Você não terá o protagonismo de fala naquele assunto.

Utilize o seu capital social para chegar a lugares em que pessoas negras não estarão ou não terão vez para falar.

Em 1983, em entrevista a um canal de TV que transmitia videoclipes, o cantor David Bowie questionou o entrevistador do canal sobre a ausência dos clipes de artistas negros na programação. 

Bowie, um dos mais aclamados artistas do mundo, branco, estava utilizando o espaço que lhe foi dado e o poder que tinha para questionar o racismo evidente nos canais de televisão. Ele não sentia na pele aquela dor, mas entendia a importância de se juntar à luta, mesmo não sendo o protagonista. 

Ele utilizou o seu lugar de fala, da sua perspectiva, para falar sobre racismo. Outros artistas negros possivelmente não teriam esse espaço para falar nem o poder de influenciar os poderosos da grande mídia a mudar um padrão racista em suas empresas. Então, ele, branco, foi lá e fez.

O mesmo pode ser feito por qualquer pessoa, entendendo a sua perspectiva e posição nesta luta (e em tantas outras). Essa é a principal noção que eu gostaria que você, leitor ou leitora, tivesse sobre o conceito de lugar de fala. 

Utilize o seu capital social para chegar a lugares em que pessoas negras não estarão ou não terão vez para falar. Fale. Engaje-se. Estude. Abra espaço para outra pessoa negra ter poder. Esse pode ser o seu principal papel no antirracismo. Não utilize a suposta “ausência” de lugar de fala para se calar diante do preconceito.

Comunicação contra o racismo

Muitas vezes o preconceito está no não dito. A ausência de negros em espaços de poder e visibilidade é uma manifestação do preconceito, da estrutura racista. A solidão do negro em espaços majoritariamente brancos, fazendo com que esse negro não consiga reivindicar seus direitos, atuar de maneira satisfatória e saudável, é uma manifestação do preconceito. 

Não é necessário xingar alguém de macaco para ser racista. O racismo está presente no silêncio e na invisibilidade. Então use o seu lugar de fala para ser antirracista.

Na caminhada como um homem negro brasileiro, na qual sofri as mais diversas facetas do racismo, compreendi que as ferramentas de combate ao racismo não seriam oferecidas espontaneamente pelo sistema escolar, pela mídia, pelas corporações ou por governos. 

Quem se beneficia de um sistema que o mantém no poder não quer perder privilégios. Porém, com a expansão e a democratização da internet, as vozes contrárias ao racismo passaram a ganhar mais espaço. 

Se antes os canais de TV não passavam videoclipes de cantores negros, agora o público negro, também consumidor, pressiona para que artistas negros apareçam. O boicote dói no bolso. Os princípios ESG exigem um compromisso com a diversidade e inclusão.

A Antropologia, aliada à Comunicação Social – minhas formações acadêmicas –, me deu as ferramentas necessárias para decifrar os códigos socias do racismo brasileiro e entender a maneira como eu poderia chegar aos indivíduos com esses conhecimentos de maneira simples e direta. 

Ter essas ferramentas do antirracismo nas mãos e não as levar ao maior número de pessoas possível, especialmente àquelas que detêm o poder e que podem, efetivamente, hackear o sistema, não era uma opção. Para colaborar com a formação de agentes antirracistas, criei, por exemplo, um curso sobre o tema (detalhes no final deste texto).

O racismo brasileiro age no silêncio, na ausência. Ele não está na lei. Ele está na prática diária de exclusão e invisibilidade. Por isso, letramento racial, relações étnico-raciais e antirracismo deveriam estar na grade curricular com a mesma importância de matemática e português. 

Sendo preto ou branco, entender o que faz nossa sociedade ser tão desigual e combater a origem dessa desigualdade é o ato primordial de cidadania. 

SERVIÇO

Curso: Comunicação Antirracista na prática 

Data: 24 de agosto

Local: São Paulo (SP)

Informações: no site www.storytalks.com.br/antirracista1

Ernesto Xavier
Ernesto Xavier
Ernesto Xavier é jornalista e apresentador de TV na Rede Globo e na TV Escola, mestre em Antropologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e preparador de palestrantes no TEDx Salvador. Fala sobre relações étnico-raciais, história negra e gênero em palestras e nas redes sociais.

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