O palestrante Michael Schrage conversa com Silvio Meira, um dos maiores inovadores brasileiros e membro do conselho editorial da MIT Sloan Review Brasil. Na pauta, os desafios das empresas em geral – em particular, o desafio de dados
Aqui na redação da MIT Sloan Review Brasil estamos fazendo a contagem regressiva. Na próxima quarta-feira, dia 23 de outubro, acontece a primeira edição do nosso Frontiers, com o objetivo de explorar todas as fronteiras possíveis: a fronteira entre gestão e tecnologia, a fronteira entre presente e futuro, a fronteira entre revista e evento, a fronteira entre conhecimento teórico e prática, a fronteira entre mundo e Brasil. Esta primeira edição, somente para convidados, será dedicada à inteligência artificial e seu uso no ambiente empresarial: “IA como alavanca para o seu negócio”. Temos um line-up poderoso que conduzirá o mergulho no assunto, como você pode conferir aqui. Do MIT trazemos Michael Schrage, pesquisador da MIT Digital Initiative e consultor que atua com empresas do mundo inteiro. “Admiro muito a criatividade e o empreendedorismo brasileiros e quero acompanhar de perto quais aspectos da cultura brasileira, pessoal e profissional, serão explorados pelos inovadores digitais”, diz.
Nosso conselheiro Silvio Meira, uma das maiores referências em empreendedorismo inovador e em transformação digital do Brasil, conversou com Schrage na semana passada e nós registramos. Meira falou no apocalipse que ameaça as empresas estabelecidas do país nesta transformação digital, com o qual Schrage concordou – Schrage num tom mais otimista que o de Meira talvez –, e os dois ofereceram algumas soluções. Confira os highlights:
EMPRESAS PENSAM PEQUENO
Michael Schrage- Hoje, olhando para as tecnologias digitais, para as pesquisa que fazemos e o conhecimento que geramos no MIT e para empresas do mundo inteiro, tenho uma preocupação constante: muitas empresas – ou a maioria delas – ainda enxergam a transformação digital de uma maneira pequena. Elas pensam coisas do tipo “Como podemos fazer serviços de TI melhores? Como podemos administrar dados de forma mais eficaz e eficiente? Como podemos analisar, usar algoritmos e inteligência artificial, e machine learning para processar big data de forma mais produtiva?” Todas essas perguntas são boas, mas medíocres.
Uma pergunta muito melhor seria esta: “Como nós podemos usar essas tecnologias para criar novas capacidades e fazer coisas que literalmente não conseguíamos fazer antes?”. Transformação digital é transformar capacidades, não só nas nossas empresas, mas com nossos parceiros, com nossos canais, com nossos consumidores e clientes. Isso é a transformação da própria inovação, a nova TI, de que vou falar no Frontiers.
Silvio Meira- Você está absolutamente correto: as pessoas fazem perguntas medíocres sobre a transformação digital no geral, ou sobre a transformação da inovação. E vou além: talvez as melhores empresas não sobrevivam a esse período de transformação, sucumbindo ao que eu chamo de apocalipse digital. O que são melhores empresas? São as que têm bom sistemas de governança e alta performance no mundo analógico. Além de fazer as perguntas erradas, elas cometem o equívoco de pensar sobre o digital como digital. Por isso, no Brasil, vejo os gestores pensando que podem comprar a mudança digital. Não podem.
Schrage- Concordo completamente! E esses gestores pensam até pior; pensam que podem terceirizar para o departamento de TI.
Meira- Exato, é quase trágico. A tecnologia não é “A” mudança. Trata-se de um processo profundo de desaprender métodos, estilos e indicadores de performance do passado, para centrar a empresa ao redor de seus clientes, para entender os mercados digitais – em rede –, para entender a importância da interface com o usuário final. As empresas acham que basta desenvolver um aplicativo ou uma plataforma tecnológica e isso vai resolver tudo. Não! É preciso desenvolver novamente a própria empresa, quase do zero.
GOVERNANÇA DE DADOS TEM DE SER LEVADA A SÉRIO
Schrage- Concordo quase 100%, fazer tudo igual apenas colocando na nuvem, por exemplo, é só ganho de eficiência incremental, não é a transformação fundamental que se mostra necessária. Só não sou tão pessimista quanto você quanto às melhores empresas não sobreviverem. Acho que, se uma empresa tradicional levar a governança de dados a sério, administrando dados como um recurso, ela conseguirá pegar o caminho certo para a criação eficaz de novas capacidades. Quando falo em governança, falo em facilitar para as pessoas o processo de agregar bases de dados e de usar esses conjuntos de dados para iniciar o treinamento de alguns tipos de processos automatizados.
Meira- O que mais temos visto nas empresas brasileiras talvez sejam conversas do tipo “vamos usar o que temos de dados para treinar IA para criar diálogos com o consumidor final”. Só que isso é tão desprovido de sentido… Ninguém está pensando nos dados como deveria: para realmente mudar como a maneira de lidar com o ciclo de vida do cliente.
Schrage- Posso dizer que, nos Estados Unidos, a maioria das empresas que vão para o educação executiva na MIT Sloan pode até ter pilotos e alguns experimentos interessantes, mas apenas começam a perceber o X do problema da governança de dados: o de que pilotos são bons para um conjunto de dados limitado. Se você quer uma transformação do modelo de negócio e da empresa, você tem de fazer isso com quase todos seus dados. Iniciativas de inteligência artificial e machine learning não têm escala sem os dados. Outro problema com que as empresas estão começando a lidar tem a ver com a tensão de como fazer a transformação necessária. Devemos dar a clientes e parceiros APIs (interface de programação de aplicações) para que eles possam fazer um trabalho sozinhos, ou nós queremos fazer isso para eles?
E, nesse sentido, você está certo sobre a sobrevivência. As empresas que nasceram digitais, ou que sempre viram informação como um bem, tendem a avançar bem mais nesta nova economia que as tradicionais, pois olham para o digital como uma forma de fazer o que fazemos de um jeito melhor. Para as tradicionais, a “digitalização” é só um tempero – ou um ingrediente – em vez da refeição inteira. E isso não vai funcionar.
Em defesa delas, apenas digo que há uma limitação de orçamento para cuidar disso. Muitas estão tão apavoradas por conta dos crimes cibernéticos e questões de segurança que acabam gastando mais do seu orçamento em segurança que em inovação.
SITUAÇÃO ÚNICA SOBRE DADOS
Meira- Tem uma coisa a ser acrescentada nisso. A maioria dos analistas e das empresas brasileiras creem que se parecem com os Estados Unidos quando falamos sobre TI e dados etc., mas nós nos parecemos, na verdade, com a União Europeia. Para você ter uma noção, a legislação brasileira sobre proteção de dados e privacidade a LGPD que acabou de ser aprovada e vai ser válido a partir de agosto de 2020, é em algumas partes mais rígida e pune de forma grave que o GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados). Então, o ciclo de vida da informação no Brasil e a administração disso vai ser uma coisa de vida ou morte para a maioria das empresas de todos os tipos no país. E isso cria uma situação muito única, tanto no Brasil quando na UE, União Europeia, o que torna boba aquela capa da _The Economist_ sobre os dados serem o novo petróleo.
Aqui, no Brasil, e na União Europeia, dados não são o novo petróleo, são o novo urânio. Podem ser usados para gerar energia, mas são muito perigosos se chegarmos perto deles, e mais perigosos ainda se formos guardar após o uso. O urânio, depois de ser usado, se torna ainda mais perigoso que antes de ter sido usado para gerar energia.
Schrage – Gostei dessa metáfora.
Meira – Não é totalmente minha. Vi uma comparação com a era nuclear num em 2017, só adaptei para urânio risos. Então, quando você olha para dados no Brasil no futuro próximo, e eu já vejo isso nos conselhos dos quais faço parte, como Magazine Luiza e MRV, a pergunta é: Queremos realmente ter esses dados, aqui, conosco? E por quanto tempo? Porque não conseguir proteger dados e a privacidade dos usuários num sentido extremo, pode prejudicar muito as empresas. As empresas do Brasil estão pensando nos dados de uma forma totalmente diferente de como pensam nos Estados Unidos hoje.
Schrage- Bom, isso é muito interessante. Vou fazer dois comentários rápidos. O primeiro é que o Brasil corre o risco de ficar mais para trás, ou DE não avançar tudo que poderia se tiver muitas limitações regulatórias e culturais em relação aos dados.
Meira- Com certeza.
Schrage- Antes de fazer a segunda consideração, tenho uma pergunta, Silvio: quando você fala a frase como “ciclo de vida da informação” com gestores seniores de empresas brasileiras grandes, eles entendem do que você está falando?
Meira- Não, na maioria dos casos. Esse é um grande obstáculo que temos, inclusive.
Schrage- Isso me leva ao segundo comentário: o não entendimento disso pelos executivos remete à estagnação dos negócios.
NEM OS BANCOS…
Meira- Fato. E não há uma solução simples para isso. Por exemplo, os bancos aqui são forçados, pela regulamentação nacional do Banco Central, a manter informação sobre todas as transações e cadastros de usuários por cinco anos. Recentemente eu perguntei ao presidente de um dos maiores bancos brasileiros sobre a governança desses dados, ele chamou seu profissional de TI e este passou 5 minutos explicando para mim o que eles fizeram em relação ao ciclo de vida da informação no banco. Então, eu perguntei : “Quando foi a última vez que você deletou uma informação de qualquer um aqui, do banco?”, ele disse “Nunca, nós não deletamos nada; não sabemos o que podemos deletar”. Significa que nem os bancos fazem gerenciamento de ciclo de vida de informação aqui.
Esse é um problema que afeta todos os tipos de empresas, na verdade. Mas, no caso dos bancos brasileiros, eles usam grandes quantias de dinheiro para manter 13, 15 sistemas de informação diferentes, por conta de aquisições que fizeram, por exemplo…
Schrage- Isso é insano. Eu trabalhei um pouco com o JPMorgan Chase, com o Jamie Dimon, e ele era muito bom em exigir não só a consolidação dos sistemas, mas a interoperabilidade dos dados. E tem uma frase, sabe, “complemente, cerque, complemente, substitua”. Voce tem alguns sistemas existentes, você os cerca com sistemas mais ágeis digitalmente, você complementa esses sistemas com análises de valor agregado das experiências do usuário, e então você substitui tudo, você os supera, porque você construiu uma camada que basicamente torna esses sistemas obsoletos.
Agora, falando sobre uma perspectiva maior de solução, existem estratégias a adotar para resolver isso, e acho que no sistema financeiro nos Estados Unidos, nós fizemos um bom trabalho. Fintechs como disruptoras estão forçando os serviços financeiros tradicionais dos Estados Unidos a se tornarem ainda mais ágeis e sofisticados digitalmente.
Agora, quando me perguntam o que negócios estabelecidos precisam fazer, eu digo – concordando com você, Silvio – que, em primeiro lugar e o mais importante, é que eles precisam gerenciar dados como um ativo. Dentro dos limites da lei, claro. Mas têm de gerenciar dados como um bem também deve significar levar a sério o ciclo de vida da informação e os pontos importantes daquele ciclo de vida, porque esses pontos importantes ou vão competir com seu modelo de negócio ou vão facilitá-lo para você realmente monetize sobre os dados.
Outro ponto é olhar para os processos internos e os que envolvem os clientes, e pensar: “Como eu transformo esses processos em plataformas digitais?”. “Como eu converto processos e produtos em plataformas?”. Porque o jeito mais certo de tornar uma plataforma mais valiosa é torná-la mais digital e orientada por dados.
Para as empresas que decidirem não ir atrás de fazer essas coisas, a palavra apocalipse utilizada pelo Silvio é apropriada. É difícil ver como eles conseguirão se manter.
REAGIR EM TEMPO REAL, AGIR DE FORA PARA DENTRO
Meira – Permita-me acrescentar uma coisa, Michael. Há, em vários mercados, essa necessidade extrema de gerenciar bem o ciclo de vida das informações, mas também é preciso que isso seja feito em tempo real. Não reagir aos eventos que ocorrem em seu campo de ação em quase tempo real pode significar a morte igualmente.
Schrage- Eu, novamente, concordo com você. E essa é a meta. Mas você tem que começar de algum lugar.
Meira- Claro.
Schrage- E há, claro, outros problemas a enfrentar, como o fato de a maioria das empresas estar voltada para o retorno sobre ativos, o ROA, o que significa que elas estão focando de dentro para fora, não de fora para dentro como fazem as Netflixes do mundo, as Amazons do mundo, as Alibabas e Tencents. As plataformas destas começam com a pergunta: “Como agregamos valor para as pessoas que nos usam?”. E isso é muito diferente de dizer: “Esses são nossos ativos, como os tornamos mais valiosos?”. É uma mudança grande de mindset que está em jogo.
Meira- Os incentivos que temos no Brasil também são um problema. Temos ainda um mercado mais ou menos fechado. O Brasil tem vivido sob um tipo de regime de substituição de importação pelos últimos 70 anos ou algo assim. Você tem algo tipo 25 marcas de carros com fábricas no Brasil, mas sói uma, que é a mais recente e a mais automatizada, da Fiat Chrysler, é capaz de exportar alguma coisa por conta de questões de produtividade. Estamos muito atrás em termos de um número de coisas que a maioria dos países já resolveu atualmente, incluindo os Estados Unidos, nos anos 40, Europa há mais tempo, e os chineses dos anos 90 para cá. Nós não temos nem uma plataforma digital brasileira que seja competitiva, até mesmo na América Latina. Os únicos que conseguiram fazer uma foram os argentinos com o Mercado Livre. Vivemos um tipo de Idade da Pedra digital.
Schrage- Mas o Brasil tem o mesmo talento empreendedor e técnico que temos nos Estados Unidos. Aposto que você tem estudantes que são capazes de criar coisas que concorreriam com o Spotify.
Meira- Isso é verdade, temos muitas pessoas que podem fazer isso.
Schrage- Bom, ficaremos felizes em recebê-las no MIT, se elas não acharem uma maneira de fazer as coisas no Brasil. risos
Meira- Isso é parte do problema. risos Schrage- E também oportunidade…. o digital tem criado tensões interessantes entre soberania e globalismo, entre o pessoal e o social. E é por isso que o Frontiers, o evento do qual faremos parte em São Paulo, é tão importante.”