Responsáveis pelo planejamento estratégico muitas vezes não enxergam como o futuro pode contrariar projeções e surpreender a todos. É possível contornar isso com um raciocínio voltado para a simulação de diferentes cenários, que pode ajudá-lo a identificar ameaças (e oportunidades) escondidas nas sombras – ou que ainda nem surgiram
Existe um ponto cego que afeta o desempenho de executivos que participam de planejamento estratégico. Eles se concentram exclusivamente nos possíveis cursos de ação e dão pouca atenção ao futuro contexto socioeconômico e ambiental em que essas ações terão lugar. Ao longo dos nossos 70 anos (somados, é claro) de pesquisas, práticas e ensino, nós, assim como outros, pudemos observar que as lideranças de negócios tendem a trabalhar com uma única visão implícita de futuro.
Essa visão normalmente está enraizada em suas estratégias como um conjunto de premissas incontestes sobre o contexto futuro. Chamamos esses conjuntos de cenários fantasmas, por serem invisíveis – e porque eles podem aparecer para assombrar os executivos.
Um cenário fantasma surge quando um executivo projeta uma lista pequena de tendências explícitas e não se pergunta se elas podem mudar. Veja, por exemplo, a maneira como as chocantes mudanças climáticas vieram perturbar o transporte ferroviário no Reino Unido. No verão de 2022, temperaturas superiores a 40ºC foram registradas pela primeira vez no país. O calor nos trilhos de trem passou de 60ºC, o que fez com que eles entortassem, provocando cancelamento de viagens ou redução de velocidade em alguns trechos. Os trilhos haviam sido projetados para um ambiente em que a temperatura do ar não passaria de 27ºC. A rede ferroviária britânica foi concebida e construída para funcionar em um cenário que não era o de 2022, mas em um que deduziu, implicitamente, que o clima jamais mudaria.
Pesquisas sobre a percepção humana demonstraram que as pessoas distinguem um objeto do cenário quando o trazem para a frente, enquanto o restante recua. Nós podemos nos concentrar no objeto ou no cenário, mas nunca em ambos ao mesmo tempo. A clássica ilusão de óptica do Vaso de Rubin é um exemplo conhecido desse desafio de percepção. Ou vemos um vaso ou dois rostos de perfil, mas nunca o vaso e os rostos simultaneamente. Para enxergar as duas coisas, é preciso alternar as imagens.
É importante que os executivos percebam como a capacidade das pessoas de focar em um assunto pode também cegá-las em relação a uma informação do contexto. É comum vermos líderes deixando de ver o ambiente no qual aplicarão suas estratégias, e do qual elas dependem.
Eles podem ver a infraestrutura física, como os trilhos do trem, como um fundo relativamente estático, e dedicar sua atenção a tendências que parecem mais relevantes para o planejamento do negócio, como as preferências e hábitos do consumidor. Mas isso pode levá-los a implementar uma estratégia que seja atropelada por premissas não verificadas, mas entrelaçadas no panorama. Como uma onda de calor que deforma os trilhos do trem.
Deixar de verificar essas premissas embutidas no planejamento é arriscado, assim como não considerar os futuros alternativos possíveis por meio de um planejamento de cenários. Fazer essa simulação pode ajudar os executivos a explorar as possibilidades de suas estratégias em condições diversas. Para evitar cenários fantasmas, vamos examinar duas organizações globais com as quais trabalhamos no Oxford Scenarios Programme.
A companhia AXA tem 95 milhões de clientes em mais de 50 países, com produtos na área de seguros de acidentes, seguros de vida, poupança e gestão de ativos. Uma das metas estratégicas da empresa é manter sua posição de liderança na questão climática. Por isso, os executivos da AXA escolheram desenhar o contexto futuro dessa meta por um intervalo de tempo definido. Assim, poderiam observar as possíveis mudanças e como precisariam se adaptar, se necessário.
A empresa estava interessada em entender como as próximas tendências de ESG afetariam a meta estabelecida. Por exemplo, como o público reagiria se achasse que as organizações estavam camuflando seu impacto ambiental ou que suas credenciais de ESG fossem falsas? Portanto, em vez de deixar que os requisitos de ESG atuais criassem o cenário fantasma, a empresa buscou o que poderia ser o futuro do ESG. De forma mais ampla, a AXA quis entender outros contextos de sustentabilidade que poderiam surgir para as empresas.
Participantes e facilitadores do exercício de simulação trabalharam em grupos para olhar para o ambiente futuro. Um cenário projetou que seguradoras isoladas seriam engolidas por plataformas tecnológicas. Em outro, os governos implantaram normas de ESG que responsabilizavam escolhas estratégicas das empresas. Em uma terceira equipe, as mudanças climáticas foram mais rápidas que o esperado, fazendo com que as organizações tivessem que mudar suas prioridades para tentar lidar com a crise gerada ou então se concentrar apenas na redução de emissões, abandonando as agendas social e de governança.
Ao se empenhar no cenário fantasma e em suas igualmente plausíveis alternativas, a AXA pôde entender e continuar a entregar resultados superiores de ESG. Na empresa, esses insights foram usados para formular um conteúdo sobre futuros desafios de ESG e suas implicações para possíveis anúncios e compromissos a serem feitos. Eles ajudaram a AXA a começar a preparar estratégias alternativas. Afinal, uma performance que hoje é tida como excelente pode se tornar irrelevante no futuro.
A Swift (sigla em inglês para Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais) é uma cooperativa de associados que permite a troca de mensagens e serviços relacionados a pagamentos internacionais ao redor do mundo. Por ela circulam mais de 30 milhões de mensagens por dia para mais de 11 mil instituições em mais de 200 países e territórios.
Em 2021, os executivos da Swift se interessaram por saber mais sobre como moedas digitais, inclusive as emitidas por bancos centrais, poderiam evoluir nos anos seguintes. Naquele ano, as criptomoedas estavam crescendo vertiginosamente – já existiam 9 mil delas no mundo.
Mas a Swift não encarou essa explosão como o único pano de fundo possível. Seus executivos pararam para entender melhor quais outros movimentos poderiam acontecer, como eles formatariam o futuro ecossistema de moedas digitais e como isso poderia afetar a instituição. Por exemplo, economistas e outros especialistas já mencionaram a falta de um valor intrínseco de muitas moedas digitais, assim como suas preocupações quanto à segurança e confiabilidade das tecnologias que as sustentam.
Em alguns dos cenários desenvolvidos, a confiança nas moedas digitais iria desaparecer se a tecnologia não fosse transparente e os algoritmos fossem suspeitos. Em outros, as moedas poderiam ser manipuladas e, com isso, perderiam autenticidade. Em um outro, mais calamitoso, uma falta de confiança generalizada nas instituições financeiras lucrativas se espalharia para os provedores de moedas digitais, levando segmentos da sociedade a evitar se relacionar com ambos.
Para os participantes do programa de Oxford que vislumbraram esses cenários, não estava claro que os valores defendidos por aqueles que promoviam a tecnologia, nem os valores que a tecnologia supostamente habilitaria, seriam aceitos pelas instâncias regulatórias ou pela sociedade como um todo. Os executivos da Swift vêm explorando essas simulações desde então, o que trouxe ensinamentos ricos e divergentes sobre a maneira como as moedas digitais podem evoluir. Isso ajuda a Swift a evitar visões simplistas demais, que poderiam arrastá-la a um modismo passageiro.
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– Análises Swot (ou Fofa) – Quando analisam forças, oportunidades, fraquezas e ameaças, os líderes, implicitamente, presumem que o cenário é um só. Mas, sob outro contexto, riscos podem desaparecer e novas oportunidades podem surgir.
– Mapeamento de stakeholders – Executivos avaliam a atenção e o poder dos stakeholders atualmente e em um único cenário futuro esperado, com um contexto implícito de pano de fundo. Só que a importância dos stakeholders pode mudar se o contexto mudar de modo inesperado.
– Teoria dos jogos e jogos de guerra – Quando se aplica a teoria dos jogos, os movimentos da concorrência são pensados no contexto de um cenário fantasma. Em jogos de guerra, não pensamos em um futuro diferente do que aquele que já está chegando. Porém, cenários mutantes exigem novas táticas e novos combatentes podem surgir.
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Baseados em nossa experiência com o exercício de simulação de cenários para AXA, Swift e muitas outras organizações, criamos as sugestões a seguir para executivos que desejem visualizar seus próprios fantasmas. Veja a seguir.
1. Use a simulação de cenários para perceber premissas implícitas – Reconheça que toda estratégia organizacional pressupõe um cenário futuro que poucas vezes é questionado. Quer dizer, todo executivo escolhe um contexto, seja essa escolha consciente ou não. Fazer do planejamento desses cenários uma etapa regular do processo de formulação de estratégias garante duas coisas importantes: alerta os líderes de como turbulências podem mudar o panorama em que eles trabalham e reconhece que as condições atuais apresentam uma hipótese de futuro, não uma realidade imutável. Cada estratégia de uma organização presume uma projeção que frequentemente não é questionada.
2. Admita o dilema objeto-fundo – O objeto em que prestamos mais atenção (a estratégia da empresa) e o fundo que normalmente ignoramos (o cenário fantasma) não podem ser analisados com cuidado ao mesmo tempo. Os executivos precisam alternar entre os dois para examiná-los. A AXA se dedicou a explorar o futuro do ESG, em vez de supor que não haveria mudanças no modo como essas práticas são entendidas. A Swift se concentrou em entender os possíveis contextos futuros das moedas digitais, em vez de deduzir consequências baseadas nas tendências atuais.
3. Dedique tempo e recursos dos executivos ao problema – As organizações devem abrir tempo e espaço para que suas lideranças explorem as mudanças possíveis em fatores econômicos, políticos, tecnológicos, sociais e ambientais. Compare um punhado de cenários futuros com o cenário fantasma, em que a estratégia atual talvez tenha que se adaptar para se posicionar bem nos diferentes caminhos que o contexto pode percorrer. Algumas empresas e instituições têm até uma unidade dedicada ao tema, como o governo do Canadá e a Shell.
PARA QUE TODO ESSE ESFORÇO SEJA ÚTIL, os resultados da simulação de cenários devem ser retomados no processo de decisões estratégicas, e não reunidos em um relatório para serem guardados. Eles também devem ser disseminados pela organização para que as pessoas em todos os níveis possam examinar as possíveis implicações.
Para que uma estratégia seja bem-sucedida quando o contexto muda, os executivos precisam ter uma abordagem equilibrada, reconhecendo a importância do cenário em que suas ações se desenrolarão, mesmo que seja para planejar somente o próximo movimento. Executivos experientes sabem que devem vislumbrar e abraçar a mudança. Como no Vaso de Rubin, o truque é aprender a deslocar a atenção entre o objeto e o fundo para ver como o contexto pode se desenrolar sem deixar que sua estratégia fique sem base.
Principais takeaways
Processos de planejamento estratégico têm falhas que atrapalham o discernimento de executivos, que costumam, implicitamente, trabalhar com um único cenário futuro, e não vários.
Uma pequena mudança ou nova tendência pode chacoalhar um setor inteiro de maneiras que muitos não previam. Por isso, é preciso dar atenção tanto à estratégia da empresa quanto às mudanças no contexto em que ela atua.
Para evitar os chamados cenários fantasmas, invista em simulações e dedique tempo e recursos suficientes para mudar a estratégia sempre que necessário.
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Referências bibliográficas
1. P. Schoemaker, “Multiple Scenario Development: Its Conceptual and Behavioral Foundation,” Strategic Management Journal 14, no. 3 (March 1993): 193-213.
2. R.A. Nelson and S.E. Palmer, “Familiar Shapes Attract Attention in Figure-Ground Displays,” Perception & Psychophysics 69, no. 3 (April 2007): 382-392.
3. R. Ramírez and A. Wilkinson, “Strategic Reframing: The Oxford Scenario Planning Approach” (Oxford: Oxford University Press, 2016).
4. R. Ramírez, S. Churchhouse, A. Palermo, et al., “Using Scenario Planning to Reshape Strategy,” MIT Sloan Management Review 58, no. 4 (summer 2017): 31-37.