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Futuro

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Planejar sem sonhar é condenar-se ao passado e à repetição

Diante de um ano tão desafiador como o que estamos fechando, é urgente retomar a arte de sonhar para fazermos com que 2021 seja melhor

Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

20 de Dezembro

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Artigo Planejar sem sonhar é condenar-se ao passado e à repetição

“Sonhos são poderosos. Eles são repositórios de nosso desejo. Eles animam a indústria do entretenimento e impulsionam o consumo. Eles podem cegar as pessoas para a realidade e dar cobertura ao horror político. Mas também podem nos inspirar a imaginar que as coisas poderiam ser radicalmente diferentes do que são hoje e, então, nos fazer acreditar que podemos progredir em direção a esse mundo imaginário.” (Stephen Duncombe, em livre tradução)

O que sonhamos? É com essa frase que começo qualquer iniciativa pela primeira vez. Não importa se no início de um projeto, um planejamento estratégico, uma conversa de acompanhamento de jornada ou um novo desafio. Eu sempre começo pelo sonho.

Mês passado eu li um livro muito bacana, O Oráculo da Noite, de Sidarta Ribeiro. A obra e boa parte da pesquisa do neurocientista brasileiro é dedicada ao sono e aos sonhos. Para ele, os sonhos são uma elaboração alquímica de pensamentos e uma antecipação de possibilidades. Os sonhos têm uma função de oráculo probabilístico que alguns povos originários preservaram até os dias de hoje. Sidarta conta que a arte de sonhar é uma coisa muito antiga e que o sonho sempre foi importante na história. Temos mais de 300 mil anos acumulados de saberes e experiências profundas com a tradição do sonho.

Durante o sono, a mente reverbera memórias para gerar possíveis simulações de futuros. Para gerar perspectivas. Sonho é recurso do cérebro para criar respostas. Ainda que de uma maneira aleatória. Por isso, muitas vezes, aquilo que é sonhado jamais acontece. Todavia, o que é sonhado sempre modifica o curso do futuro, porque modifica a emoção das pessoas que sonham. Se sonhar é parte da nossa história, o ato de narrar os sonhos foi fundamental para que evoluíssemos, gerando uma explosão de conhecimentos. Quando compreendemos isso, percebemos que sonhar é uma potente ferramenta de planejamento que vem sendo negligenciada nos últimos dois séculos.

Brigando com o sono

Com o avanço da sociedade, luz elétrica, tevê e dispositivos digitais vêm invadindo as noites com as atividades do dia. Encurtamos o tempo de sonhar e abdicamos deste farol de perscrutar o futuro. A civilização ocidental, industrial e capitalista abraçou a técnica e abandonou o sonho como espaço de revelação, de viagem e aprofundamento de ideias.

Não sei quanto a você, mas para mim o adormecer era uma espécie de luta. Já ouviram a expressão "ela briga com o sono"? Eu era uma dessas pessoas que começava a embarcar no sono, percebia isso, e despertava mais uma vez. Quase um ciclo infinito até o raiar do dia.

Meu sono foi afetado pelos apelos e urgências da rotina. As responsabilidades, o volume de tarefas, o sentimento de que as horas do dia não bastam para tudo o que eu pretendia fazer. Acordar antes de acordar, resolvendo coisas antes de resolvê-las, equacionando problemas, antecipando, de forma tola, o que seria cumprido de maneira mais eficiente depois de uma noite bem dormida. Acordava, em diversas ocasiões, mais exausta do que estava na noite anterior. Isso acontece contigo?

Lapsos de memória, atenção superficial e intermitente, dificuldades de reter e organizar informações. Não é difícil imaginar como uma má qualidade de sono pode afetar a nossa vida e a capacidade de planejar futuros. O mal-estar da civilização está relacionado com a nossa dificuldade de ter sonhos coletivos.

Pra gente chegar em um lugar melhor, o primeiro passo é conseguir imaginar um lugar melhor. Ampliar horizontes para criar futuros melhores. Já existe saber e capital para que todos no mundo vivam bem. A produção mundial de alimentos já é suficiente para que toda a população esteja nutrida, mas ainda temos pessoas passando fome. Planejar não foi e não será suficiente para resolver esta última parte da equação. É preciso que sonhemos os sonhos uns dos outros. Quando a gente sonha junto, sonho é potência.

Avalie seus sonhos. Quantos deles são sonhos coletivos, ou seja, que interessam a mais pessoas do que você e os seus? E está tudo bem sonhar em ter um emprego melhor, uma casa maior ou qualquer outro objeto de desejo. Mas podemos e precisamos bem mais do que isso. Para além dos lugares e objetos que te pertencem, estão os desafios do mundo que nos abriga, como casa-comum.

Conexão sonho-futuro

Sim, existe uma conexão potente entre sonho e futuro.

Dos tipos de futuro que conheço tem um que gosto mais. O primeiro, podemos chamar de futuro provável – onde o passado é fator condicionante. Fazemos projeções com base nos históricos e tendências que se ocupam de tentar responder à pergunta: o que será?

Um segundo tipo de futuro é o futuro possível – nele entendemos que o presente desafia. Olhamos para as previsões lidando com as possibilidades que consideramos serem exequíveis. A busca é por responder: o que pode ser? No entanto, meu tipo de futuro preferido é o desejável.

Se o futuro não existe, ele pode ser sonhado. Assim, futuro desejável é a expressão de vontades sobre como transformar a realidade para criar alternativas preferíveis. Nesse sentido, não buscamos responder "o que será?", nem tão pouco "o que pode ser?", mas usamos a pergunta potente: o que sonhamos ser?

Onde nascem os futuros desejáveis se não nos sonhos?

Se o sonho desprovido de lógica é vazio, a lógica desprovida do sonho é deserta. Quando a criação do novo está na mesa, resignar-se ao provável ou ao possível é condenar-se ao passado e à repetição. Para o economista Eduardo Giannetti – autor do livro "O Valor do Amanhã" – nas dinâmicas da vida, o futuro responde à força e à coragem do nosso querer. A nossa capacidade de sonhar nutre a realidade, reembaralha as cartas do provável e subverte as fronteiras do possível.

Dois mil e vinte e um está aí, batendo na porta e pode ser fruto do que desejamos, se for um sonho coletivo. Diante de um ano tão desafiador como o que estamos fechando, é urgente retomar a arte de sonhar. Nossos sonhos são nossos horizontes. Mas para ter sonhos é preciso cuidar do sono.

Recuperando o lugar do sonho

Dormir bem, descansar e respeitar o poder da imaginação de novos caminhos, tanto quanto respeitamos números, gráficos e planilhas na elaboração dos nossos planos.

Dizem que o segredo está em criar hábitos e rotinas. Dormir no mesmo horário, acordar oito horas depois, até mesmo nos fins de semana. Deixar as telas de lado – celulares, notebooks, tevê – uma hora antes de se deitar. Não levar livros para a cama, não trabalhar na cama. E caso sobrevenha uma crise de insônia, não lutar contra ela por mais de meia-hora. Sair e fazer qualquer atividade relaxante até sentir sono novamente. O exercício de meditação ajuda. Realizar uma coisa de cada vez, uma prática para assenhorar-se do pensamento, para que a cabeça não se agite a ponto de não permitir o corpo parar.

Precisamos tornar o sonho um assunto importante. Registre seus sonhos para você e narre-os para os seus afetos. Vamos trazer de volta o sonho ao lugar que ele já ocupou na história da humanidade.

Sonhar é futuro. E o futuro para nós é urgente.

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Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

Grazi Mendes está como head of diversity, equity & inclusion na ThoughtWorks Brasil, consultoria global de tecnologia, é professora em programas de desenvolvimento de lideranças e cofundadora da Ponte, hub de diversidade e inclusão. Acumula cerca de 20 anos de experiência em gestão estratégica, branding, design estratégico, liderança e cultura, com atuação em empresas nacionais e multinacionais de segmentos diversos.

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