Os esforços em direção a uma economia circular estão ganhando tração, principalmente na Europa, onde nos últimos anos as atividades relacionadas à circularidade aumentaram e estão impactando diversas indústrias e mercados
Imagine-se em uma aventura: você sai em uma navegação ao redor do planeta em um veleiro com apenas a quantidade de recursos que você consegue carregar na embarcação. Agora, pense que tudo é um recurso: roupas para diversas condições climáticas, itens de primeiros socorros, água potável, alimentos, instrumentos de navegação. Nesse tipo de situação, é inevitável usar tudo de forma inteligente e com o menor desperdício possível, pensando no reaproveitamento dos itens limitados que você tem.
Foi assim que Ellen MacArthur, uma velejadora britânica, percebeu a importância da economia circular. Sua viagem, em 2005, fez com que ela quebrasse o até então recorde de circum-navegação mais rápida da história. Quatro anos depois, Ellen criou a fundação que leva seu nome e levanta diversas campanhas ambientais, entre elas a visão de economia circular nas cidades.
A circularidade diz respeito à retroalimentação, em ciclos. Após a Segunda Guerra Mundial, estudos revelaram a natureza complexa e imprevisível no planeta, que lembrava mais o metabolismo do corpo, em que todo processo gera um resíduo biológico, do que uma máquina, cujo funcionamento é previsível.
Com a tecnologia atual, é mais fácil perceber que, para praticar a economia circular, não se deve apenas reduzir impactos da economia linear, isto é, a tríade produção – uso – descarte. O ciclo, quando completo, gera oportunidades em longo prazo, seja de ordem econômica, ambiental ou social.
Segundo a Ellen MacArthur Foundation, a circularidade está baseada na junção de dois ciclos:
– Biológico: alimentos e outros materiais (como algodão e madeira) são projetados para retornar ao sistema por decomposição visando regenerar sistemas, tais como o solo.
– Técnico: recuperação de componentes e materiais por meio de reuso, reparo, remanufatura ou reciclagem.
O conceito encontra suporte em várias teorias recentes, como a blue economy, de Gunter Pauli, que afirma que não basta substituir produtos e processos. “É necessário entender como os sistemas funcionam. Precisamos melhorar o sistema como um todo, não reduzir poluição. O ecossistema permite que tenhamos um modelo econômico mais baseado em empreendedorismo e inovação, baseado na natureza”. Pauli inclui, como exemplo, o trabalho do professor Jorge Alberto Vieira Costa, em Porto Alegre, no que ele chama de “”cascatamento de ingredientes e energia”.
Agricultura não é o único campo em que isso ocorre. O trabalho de Costa, no Rio Grande do Sul, consiste em reutilizar o gás carbônico (subproduto da queima do carvão em termoelétricas), que é um rico nutriente para a spirulina, uma alga riquíssima em proteína e minerais para suplementos alimentares e biocombustíveis. O subproduto, que antes seria um problema ambiental, vira uma matéria-prima de alto valor.
Segundo pesquisa realizada pela Accenture em 2020, seis fatores foram identificados como aceleradores da adoção dessa circularidade.
A conscientização do consumidor final já vinha em ascensão, e seu ritmo de crescimento acelerou-se ainda mais em meio à pandemia da Covid-19. Segundo o estudo da Accenture, 60% dos consumidores disseram que compraram produtos mais ecológicos e sustentáveis nos últimos cinco anos, e 90% acham que a pandemia aumentará o foco no meio ambiente. Um outro bom exemplo vem de Marcelo Souza, em artigo de MIT Sloan Review Brasil. Assim como fez MacArthur, esses mares nunca d´antes navegados estão prontos para serem desbravados.
“A Walmart do Canadá já parou de embalar individualmente alguns produtos com filme plástico. A Infarm, que atua em Berlim e outras cidades alemãs, cultiva verduras e ervas nas dependências dos supermercados, o que, além de proporcionar uma excelente experiência de compra ao cliente (a de comprar produtos colhidos na hora), elimina completamente embalagens e emissões de CO2 com o transporte”, afirma Souza, CEO das Indústrias Fox, empresa de engenharia com soluções para reciclagem, eficiência energética, logística, remanufatura, análises técnicas e tecnologia da informação.
Como consequência do item anterior, as indústrias (não apenas as químicas) acabam optando por se adaptar a esse novo modelo de consumo, que leva em conta a sustentabilidade. Isso leva a um compromisso voluntário, anterior a qualquer tipo de regulação, de gerar transformação em processos.
Aqui, temos exemplos interessantes de quem está a bordo nessa jornada. A Braskem, que detém várias iniciativas em economia circular, está construindo uma linha de reciclagem com capacidade para transformar cerca de 250 milhões de embalagens em 14 mil toneladas de resina pós-consumo de alta qualidade por ano.
Outro importante player do ramo industrial é a Cargill Brasil, que reduziu a quantidade de plástico em suas embalagens de óleo vegetal, eliminando 161 toneladas de plástico anualmente. Em gases de efeito estufa, isso representa 390 toneladas a menos lançadas na atmosfera.
A importância do compromisso voluntário envolve toda a cadeia: logística, entrega e pontos de venda. A demanda por plásticos, no futuro, certamente não será a mesma.
Um mercado global de US$ 1 trilhão, só em 2020, parece bastante promissor, certo? É isso que os chamados fundos verdes (ainda pouco representativos no Brasil) somam globalmente. Grandes gestores de fundo de investimentos, motivados pela demanda global, estão aos poucos mudando o cenário no Brasil.
Para 2030, estão previstos 43% de redução nas emissões de gases do efeito estufa, em relação aos níveis de 2005. Some a isso a mudança contínua nos critérios de investimento dos investidores em títulos e ações.
O Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3 (ISE B3), por exemplo, permite comparar a performance das empresas listadas com base em conceitos ESG, que englobam eficiência econômica, equilíbrio ambiental, justiça social e governança. No primeiro semestre de 2020, o desempenho do ISE B3 foi superior ao do índice Ibovespa. Logo, o desafio posto à mesa parece claro: é necessário embarcar nesse veleiro.
Em 2015, no Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a uma redução gradual de emissão de gases do efeito estufa, sendo o dióxido de carbono o principal. Em 2019, só o Brasil lançou quase 78 milhões de toneladas do gás no ar.
As metas são 37% de redução para 2025, atingindo os 43% em 2030, citando o item anterior. Se, por um lado, mar calmo nunca fez bom marinheiro, o caminho não demonstra águas tão agitadas assim. A indústria automobilística é um bom exemplo, despejando investimentos cada vez maiores em eletrificação da frota, com acordos surgindo constantemente sobre a eliminação completa de combustíveis fósseis em algumas regiões.
O que, em alguns casos, causa verdadeiras tormentas dignas da fúria do Deus dos Mares, Netuno, aqui, representa um grande passo evolutivo para todo o setor. No Brasil, em 2010, foi criada a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) que organiza a forma como o país lida com o lixo, exigindo dos setores público e privado transparência no gerenciamento de resíduos.
Como já discorremos no item 2, em que muitas indústrias já deram um passo à frente para firmar compromissos voluntários, o cenário de regulamentação crescente conta não apenas com o apoio do setor privado, mas terá incentivo para que vire uma vantagem competitiva. A partir do momento em que todo o setor precisar cumprir as regras, quem tiver saído na frente, voluntariamente, terá menos necessidade de adaptação e poderá contribuir de forma ativa e concreta para o setor e para a sociedade.
Navegar é preciso, já dizia o poeta Fernando Pessoa. Seja no veleiro de MacArthur, seja no Chrome, Firefox ou Edge. Assim como na web, novos participantes estão entrando no mercado para satisfazer a necessidade de novas tecnologias.
Um estudo descobriu que existem mais de 100 fornecedores de tecnologia, visando um mercado estimado de US$ 120 bilhões para plásticos reciclados. Seja com unidades próprias de tecnologia de reciclagem ou por meio de cooperação com startups de tecnologias verdes, a necessidade não se limita ao processamento de resíduos.
Plataformas para o comércio de reciclados, softwares empresariais para reduzir o desperdício e tecnologia de triagem são apenas algumas esferas desse ecossistema que podem (e devem) ser tocadas.
Em conjunto, esses fatos e números implicam em mudanças substanciais para as indústrias. A narrativa e as imagens na mídia em torno da sustentabilidade e da economia circular são atraentes – o apelo ESG não é um verniz, mas uma nova prática que deve ganhar corpo a cada ano, uma vez que envolve temas diversos, desde computação em nuvem a normas financeiras.
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O Fórum: Pensamento Digital é uma coprodução de MIT Sloan Review Brasil e Accenture.“