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Teoria da conspiração versus princípio da precaução

Comparar a suposta dominação das big techs ao risco existencial imposto à humanidade pelas mudanças climáticas, como faz o docudrama O Dilema das Redes, mostra total falta de noção, segundo nosso colunista

Carlos de Mathias Martins
29 de julho de 2024
Teoria da conspiração versus princípio da precaução
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Grandes cineastas como Francis Ford Coppola são pródigos em adaptar para a telona, e agora para a telinha da TV, todo tipo de teoria da conspiração. Em O Poderoso Chefão 3, provavelmente o melhor longa-metragem de todos os tempos, o Papa João Paulo I é assassinado por mafiosos italianos em conluio com o gângster americano Michael Corleone, apoiado por cardeais corruptos, todos interessados no espólio do Banco do Vaticano. Trinta anos depois, no filme O Dilema das Redes, provavelmente o pior docudrama de todos os tempos, 63 milhões de apedeutas teleguiados por mafiosos russos e com o apoio das redes sociais elegem o candidato laranja Donald Trump para a presidência dos EUA em 2016.

Com relação ao filme O Dilema das Redes em cartaz na Netflix, vale acrescentar que o conceito de manipulação nas redes sociais nada mais é do que a transformação digital das velhas teorias conspiratórias da comunicação. Todas descontruídas por diversos estudiosos incluindo o semiólogo italiano Umberto Eco que postulava a capacidade cognitiva única de cada receptor de uma dada mensagem, ante o suposto poder totalitário do emissor desta mensagem. Além dos ensaios sobre filosofia, semiótica e linguística, Eco escreveu diversos romances, entre eles O Nome da Rosa, cujo enredo retrata um complô tramado por monges beneditinos na Itália medieval.

Mas eu divago. Segundo os negacionistas do clima, a maior conspiração de todos os tempos é o consenso científico acerca do fenômeno das mudanças climáticas. Para estes teóricos do conluio ambientalista, as centenas de especialistas do painel de mudanças climáticas da ONU, as dezenas de academias de ciência ao redor do globo, os engenheiros da Nasa e milhares de cientistas, todos foram cooptados pelas ONGs que recebem dinheiro das big techs americanas que por sua vez elegeram o homem mau e laranja Donald Trump.

Percebe-se que complôs com mafiosos, monges e padres católicos são previsíveis e tediosos. Faltou incluir nessa urdidura a participação da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher que, em 1990, comparou a ameaça do aquecimento global à Guerra do Golfo e concluiu seu discurso na segunda conferência do clima da ONU sugerindo um acordo mundial para combater as mudanças climáticas. Na novilíngua brasileira, essa foi a única fraquejada da vida da Dama de Ferro, mas a primeira vez que uma liderança global da envergadura da baronesa Thatcher defendeu o princípio da precaução em uma conferência do clima.

O PRINCIPIO DA PRECAUÇÃO

O princípio da precaução estabelece que caso uma ação ofereça risco de dano severo ou irreversível à integridade de seres humanos e de ecossistemas naturais, na ausência de consenso cientifico irrefutável acerca de sua segurança, tal ação deve ser interrompida.

É fato que as evidências inequívocas da contribuição humana para a emergência climática e suas consequências, embora mapeadas, embutem margem de erro relevante dadas as incertezas associadas ao comportamento de fenômenos geofísicos ainda pouco conhecidos. Mas é fato também que o efeito do aquecimento global em sistemas complexos como o planeta Terra pode acarretar uma série de eventos catastróficos para a humanidade.

Como já comentamos aqui, a probabilidade de sobrevivermos a um único evento catastrófico é grande, entretanto, a probabilidade de sobrevivermos a uma série de eventos catastróficos tende a zero. Os relatórios do painel de mudanças climáticas da ONU – conhecido pela sigla IPCC – estão recheados de medidas estatísticas tais como nível de confiança e de probabilidades das hipóteses propostas por especialistas de diversas áreas do conhecimento científico. A leitura desses relatórios, embora árida, é uma excelente demonstração das limitações da ciência. Nenhuma métrica, nenhum parâmetro, é 100%. Ao contrário, as assertivas do IPCC são tipicamente cautelosas, e quando estabelecem a probabilidade de ocorrência de um dado evento apresentam os chamados “fuzzy boundaries”, ou limites difusos, em tradução livre.

Por exemplo, “very-high confidence” é o nível de confiança mais alto do relatório de 2019. E “exceptionally unlikely” é o termo que enuncia a probabilidade entre 0% a 1% de ocorrência de um evento climático no mesmo relatório. É nesse contexto que o princípio da precaução é reivindicado no combate às mudanças climáticas: independente da probabilidade de ocorrência de uma série de eventos catastróficos, a principal razão para agirmos imediatamente é o risco de arruinarmos os ecossistemas terrestres de forma irreversível.

Nessas circunstâncias que envolvem risco existencial para a humanidade, o ônus da prova é de responsabilidade dos negacionistas que se esforçam para abonar as ações que podem vir a causar dano irreversível ao nosso planeta.

RISCO EXISTENCIAL

Em diversos trechos do docudrama O Dilema das Redes, geeks do Vale do Silício comparam o complô de dominação das big techs ao risco existencial imposto à humanidade pelas mudanças climáticas. Não existe teoria da conspiração que consiga explicar esse paralelo absurdo.

Na pré-história da internet (antes das redes sociais), o típico apedeuta comunicava seus delírios a um circulo restrito de amigos íntimos, na mesa do bar ou na casa do tio do pavê. No presente em que vivemos, tais opiniões alcançam audiências altíssimas nas mídias sociais. Como dizia Umberto Eco, o verdadeiro drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.

N. da E.: Vale a pena também ler esta resenha do colunista Fabro Steibel sobre o docudrama.”

Carlos de Mathias Martins
Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com MBA em finanças pela Columbia University. É empreendedor focado em cleantech.

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