Será que a bisavó da barata do filme Wall•E já nasceu? Se mudanças mais radicais e permanentes de fato estiverem a caminho, o que os líderes empresariais podem fazer?
Quando se quis acabar com a escravidão, no Brasil e nos Estados Unidos, gritaram: “Não podemos! Isso vai acabar com a economia e as pessoas vão morrer de fome”. Sempre que se quer tomar medidas de proteção ao meio ambiente, e contra os efeitos da mudança climática, gritam: “Não podemos! Isso vai acabar com a economia e as pessoas vão morrer de fome”.
Agora, quando se quer controlar a pandemia Covid-19 com a estratégia de supressão de vetores de transmissão e isolamento social horizontal que quase todo o planeta está adotando, a mesma linha de argumentação surge novamente: “Não podemos! Isso vai acabar com a economia e as pessoas vão morrer de fome!” Salta aos olhos a similaridade dos comportamentos das lideranças nos três casos, não salta? A opção parece ser sempre defensiva, reafirmando a própria ineficiência, perdendo a chance de inovar e desperdiçando o futuro. (Afinal, os afrodescendentes não foram incorporados como consumidores e trabalhadores; os produtos e serviços de maior valor agregado, amigos do meio ambiente, não foram aproveitados.) Agora, em tempos de Covid-19, o que podemos fazer em relação a essa mentalidade eternamente reativa, para a triste história não se repetir mais uma vez no Brasil? Nós da MIT Sloan Management Review, temos uma ideia: nenhum país do mundo estava preparado para essa pandemia, mas Coreia do Sul, Taiwan e Alemanha, mais uniformemente mergulhados na quarta revolução industrial, estão se saindo melhor do que os outros. Então, há o que fazer e são coisas da nossa alçada – vai da eficiência por meio dos dados e da tecnologia à inovação e construção de um futuro diferente. A seguir, postamos algumas provocações para a reflexão dos leitores:
1. Em primeiro lugar, os trade-offs colocados por alguns são falsos e é preciso que os gestores e empreendedores os abandonem de vez, rompendo o padrão histórico descrito na abertura deste texto. Trade-off entre saúde física e econômica. Trade-off entre estratégia de supressão dos vetores de transmissão e estratégia de minimização do contágio (ou isolamento horizontal versus isolamento vertical). Trade-off entre individualismo e coletivismo. Trade-off entre visão de curto prazo e o médio e o longo prazo do outro lado. Essas escolhas não existem enquanto tais, e são dados devidamente analisados que evidenciam isso. Alguns duvidam de haver dados suficientes, por conta de subnotificações e afins, como um certo professor da Califórnia, mas se os casos asiáticos não fornecem dados suficientes, é porque as expectativas estão irrealistas. (By the way, cadê os defensores das decisões baseadas em dados?) Como ter certeza de que essas escolhas não procedem? Bem, estatísticas mostram que, em epidemias, a saúde das pessoas e a economia seguem na mesma direção. Prova disso é a estimativa de que o PIB pode despencar menos, entre 8% e 10% no ano, se a pandemia durar menos (caso do “shutdown”. Ou o PIB pode despencar 30%, como preveem alguns bancos, se a pandemia durar mais tempo (com volta rápida às atividades). A análise dos dados coletados tanto prova que a supressão é mais eficaz que a minimização quando se trata de limitar a duração da pandemia, quanto aponta o coletivismo como um modelo mais eficaz que o individualismo para isso. Por fim, para a maioria dos negócios, o curto prazo simplesmente virou pó; ele é só um pedágio a pagar para o que virá depois, no, este sim, relevante período pós-crise. Em outras palavras, o que vocês deveriam estar trabalhando principalmente são o médio e o longo prazo. O empresário Abílio Diniz foi um dos que mostraram, publicamente, ter entendido a nova lógica. 2. Deve-se aproveitar o momento para enxergar as próprias ineficiências e entender como é possível superá-las. Algumas ineficiências localizadas já ficaram muito claras, desde a incapacidade de testar pessoas em escala para a Covid-19 até a escassez de leitos nos sistemas de saúde, passando pela insuficiência de planos de contingência governamentais para ocorrências extremas. Mas, o que dizer das ineficiências da sua empresa? Como solução possível, a transformação digital é um dos caminhos, mas está longe de ser o único. IMPORTANTE: Ocorrências extremas, como já vem sido avisado há uns cinco anos pelo menos, surgem em intervalos cada vez mais curtos. E estamos falando tanto de epidemias – a gripe aviária foi até 2004, a gripe suína entre 2009 e 2010 e o Ebola, em em 2014, – como de desastres ambientais dramáticos derivados da mudança climática. Nas ineficiências sempre existem oportunidades. (Ao menos, startups e unicórnios sabem disso – vocês viram a nova funcionalidade do “co-watching” de Instagram, Netflix e outros, não viram?!) 3. Temos de nos reavaliar do ponto de vista ético, área em que temos deixado MUITO a desejar – especialmente, os líderes brasileiros, que deveriam um compromisso com a ética superior ao do restante dos mortais. Como disse o professor de filosofia de Harvard Michael Sandel recentemente no _New York Times_, em entrevista a Thomas Friedman, a abordagem utilitarista, de tomar decisões p0ndo na balança custos e benefícios, nunca poderia prevalecer numa situação em que vidas humanas se encontram em risco. No entanto, tem prevalecido abertamente no discurso de alguns líderes empresariais e governamentais. Eles não verem nada de errado nisso é algo extremamente preocupante. Como Sandel enfatizou, é necessário que se volte a priorizar o bem comum. 4. Devemos trabalhar com o cenário de que, depois dessa tragédia mundial, as mudanças tendem a ser as mais radicais possíveis – no capitalismo, na sociedade, nas organizações, no estilo de vida de cada um de nós, em tudo. Um artigo da revista irmã _Tech Review,_ assinado por seu editor-chefe Gideon Lichfield, afirma que nada será como antes e cita e “economia shut-in” (algo como trancado dentro de casa) como o potencial novo paradigma. Poderíamos falar em economia do digital + delivery. Um estudo do banco JP Morgan publicado em 21 de fevereiro último (que pode ser conferido aqui, por exemplo) alerta para catástrofes da mudança climática, com limitações de água, fome, conflitos, mais extinções na biodiversidade e doenças como decorrência. Ninguém quer ouvir ou ler esse tipo de coisa, mas, infelizmente, pode ser que a bisavó da barata do filme _Wall•E_ já tenha nascido.
Moral da história: não é caso para desespero, mas devemos entender que estamos entramos em outra fase do ciclo de vida do planeta Terra. A boa notícia é que nunca tivemos tantos recursos para enfrentar seus prováveis desafios como agora. Mas, como a pandemia da Covid-19 vem deixando claro, ainda nos falta o modelo mental necessário para colocar os recursos criativamente em prática. Garanto que a MIT Sloan Review Brasil vai estar aqui, ao seu lado, para ajudar nisso. PS1: Um artigo de Jonathan Portes, professor de economia e políticas públicas do King’s College London, publicado hoje no jornal _The Guardian_, aponta uma falha no raciocínio do presidente dos EUA, Donald Trump, quando ele sugeriu que a queda do PIB se traduz diretamente em menor expectativa de vida para a população. Isso teria vindo de um paper que vazou ainda em revisão na publicação científica _Nanotechnology Perceptions,_ segundo o qual a queda no PIB reduz a expectativa de vida média. Como diz Portes, isso não procede (segundo muitos dados). Uma recessão de curta duração normalmente não reduz a expectativa de vida. Na verdade, contra-intuitivamente, a recessão não prolongada aumenta a expectativa de vida (descontados os possíveis suicídios), porque nela as pessoas eliminam outras causas de morte, como os acidentes de trânsito. PS2: Agradeço à amiga Pati Rabelo por me indicar o artigo do Jonathan, ao meu irmão Thiago Salles Gomes por me mostrar a entrevista com o Sandel no NYT, e ao conselheiro da MIT Sloan Review Brasil e amigo Denis Garcia, por acompanhar a _Tech Review_ com o mesmo afinco com que acompanha nossa SMR e comentá-la no conselho.”