Empresas brasileiras, usuárias ou fornecedoras, devem se preparar para a reforma tributária
A adoção de padrões internacionais de tributação consagrados pode remover barreiras que ainda afastam investidores e players internacionais e trazer para o Brasil maior participação na expansão da inteligência artificial (IA).
A operacionalidade do novo sistema tributário nacional, cuja definição caminha para o final no Congresso Nacional, exigirá uma profunda adequação tanto do poder público quanto do setor privado. Esse é o cenário, de desafios e oportunidades, apontado por especialistas quando o tema é a tributação da IA e seus impactos sobre a operação das empresas, sejam usuárias ou fornecedoras dessa tecnologia.
“Eu estou otimista com o caminho que o País está tomando. Minha preocupação é com a implementação. O operacional tem de estar bem equacionado”, afirma Luiz Roberto Peroba, sócio da área tributária de Pinheiro Neto Advogados, referindo-se à adoção do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). “A maior preocupação na reforma é a tributação no destino, como será definido isso. Quando se fala em tecnologia, o conceito de destino é mais fluido e o PLP 68 (que regulamenta a reforma) não exaure todas as questões. Temos de aguardar”, comenta Bianca Xavier, professora da FGV Direito RJ.
A IA já marca o século XXI como inovação revolucionária, transformando a sociedade e inúmeros setores da indústria, comércio e serviços com tecnologias avançadas e aplicações que vão desde assistentes virtuais até diagnósticos médicos e educação. À medida que a tecnologia avança, os desafios inerentes à inovação ganham força e a questão da tributação emerge como um desafio crucial para empresas e reguladores: a regulamentação da reforma tributária cria uma camada de expectativas, reforçando preocupações, e abre horizontes novos.
Em discussão no Senado Federal, onde será modificado, e aguardado para uma segunda tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024 pode ser aprovado ainda este ano e enviado à sanção presidencial – a proposta figura entre as prioridades da equipe econômica e dos presidentes das Casas do poder legislativo. Além do IVA, a reforma cria o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS).
A tributação da inteligência artificial tem dois vetores mais sensíveis e a evolução do panorama atual está no radar de toda empresa inserida na economia digital. Tomadores de decisão e especialistas estão atentos à tributação das soluções de IA, que exige maior clareza na classificação jurídica da relação entre a empresa fornecedora e o cliente, e à potencial tributação da coleta e comercialização de dados, ativo cada vez mais presente e estratégico no mundo dos negócios.
O desafio brasileiro é gerar mais segurança jurídica e reduzir a necessidade, ou a incidência, de contencioso jurídico. A reforma tributária em curso unifica os principais tributos sobre o consumo de bens e serviços, que são cobrados com alíquotas diferentes nas esferas federal, estadual e municipal.
Após sua vigência, impostos como o PIS, COFINS, IOF, ICMS, ISS e IPI deixam de existir: entram em vigor o IVA e IBS. Para isso, será cumprido um período de transição, para que todos os atores – pessoas físicas e jurídicas – se adequem ao novo modelo.
Hoje, a tributação das soluções de IA está relacionada à identificação do tipo de solução e da natureza jurídica da relação estabelecida entre a empresa fornecedora de IA e seu contratante. Para certos consumidores, a IA pode se apresentar como atividade de manipulação de dados visando a uma melhoria de desempenho ou a geração de informações novas. Nesse caso, a IA pode ser considerada uma prestação de serviços, considerando o conceito amplo de serviços que vem sendo adotado pela jurisprudência do STF em casos fiscais.
Outros consumidores adquirem licenças de soluções de IA, seja para uso interno, seja para comercialização com terceiros. É a situação de uma agência de marketing, por exemplo, que contrata um fornecedor de IA para disponibilizar a solução e usá-la na criação de conteúdo. Para isso, são firmados contratos de licença de uso e a transação pode ser equiparada, para fins fiscais, a uma licença de uso de software, considerando o conceito de “programa de computador” previsto na legislação. A tributação, consequentemente, deve seguir essa classificação jurídica da transação.
“Hoje há insegurança jurídica muito grande. Tudo o que vem no campo da tecnologia enfrenta dificuldade de se enquadrar, ou a empresa está submetida ao ICMS ou ao ISS, que são entes e alíquotas diferentes”, esclarece Xavier. Para a professora da FGV, a implementação da reforma tributária a partir de 2027 pode acabar com o horizonte de incerteza que pressiona as empresas hoje. “De 2027 a 2032, teremos uma transição gradual para um sistema com o IVA e IBS”.
“Essa é uma preocupação importante com a reforma: a classificação correta de produtos e serviços”, aponta Peroba. Segundo ele, essa definição impactará, inclusive, o uso de contratos múltiplos – ou bundle, na terminologia corporativa – típicos da economia digital, que remunera produtos e serviços de um fornecedor no mesmo instrumento. “O mérito do IVA é sair da classificação, o imposto é cobrado sobre a transação independente do que foi transacionado”. Para o especialista do Pinheiro Neto, essa é uma vantagem que deve levar à redução de disputas judiciais envolvendo o uso de IA.
A tributação da captura e comercialização de dados inseridos em soluções de IA é outro aspecto sensível no campo da tributação e nebuloso no contexto da reforma tributária. Hoje, muitas empresas de IA oferecem serviços gratuitos a clientes e usuários mediante a coleta e o processamento de dados pessoais. Tais informações são usadas de formas diversas como a customização de serviços, desenvolvimento de novos produtos e, até mesmo, comercialização de outras soluções a terceiros.
A consolidação do dado como vetor estratégico de negócios fortalece a dúvida se o acesso gratuito a soluções de IA mediante o fornecimento de dados pode ser tributado. “Os dados viraram um produto, são um grande ativo e, como qualquer ativo ou marca de uma empresa, exige certeza em torno da característica e de como enquadrar no ICMS ou ISS”, pondera Xavier. “O que acontece é a venda do intangível. Hoje é um ativo sem tributação”. Segundo ela, a questão é se haverá uma tributação específica. “A lei do ISS prevê a tributação de dados, há uma discussão se é produto ou serviço. Esse debate teremos até 2032, enquanto houver a transição de modelo”, avalia.
“A temática sobre a tributação dos dados é complexa, não há consenso sobre a melhor forma de se abordar o tema”, afirma Peroba. O especialista de Pinheiro Neto comenta a experiência acumulada no estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, por exemplo, onde foi apresentado um projeto de tributo sobre a coleta de dados (data mining tax): a proposta cria uma espécie de imposto seletivo (excise tax) que incide sobre a coleta de dados de cidadãos residentes no estado. O contribuinte seria o coletor dos dados, não o usuário, e o tributo é devido a um valor fixo mensal por residente que tem seus dados coletados.
Um terceiro aspecto, mais geral e que preocupa todos os segmentos produtivos do Brasil neste momento, é a calibragem das alíquotas e a carga tributária resultante da reforma. O cenário desenhado pelo governo federal e pelo Congresso Nacional apontam para um possível aumento da carga, também para o setor de tecnologia, mas é cedo para afirmar. Esse fator deve entrar no radar das empresas também. “Quatro categorias terão descontos, isso já se sabe. De toda forma, a promessa do projeto não é reduzir, mas manter a carga”, diz Peroba.
Na avaliação do especialista, o setor de serviços vinha sendo subtributado e as empresas de tecnologia devem esperar por uma carga maior. “Mas veja, isso será mostrado pela realidade, já que teremos um regime de transição lenta e gradual”, destaca. Para ele, definido o arcabouço e a nova calibragem, todos os setores da economia terão tempo para se adequar e absorver as mudanças.
“Ter a maior alíquota do mundo não é motivo de orgulho e a reforma está muito focada em manter a arrecadação. O projeto carregou nos prestadores de serviço, que estão pagando a conta da reforma tributária”, comenta Xavier. “É preciso pensar se no Brasil, que não é evoluído em tecnologia, cabe um arcabouço tributário como esse. É importante evitar carga tributária que nos deixe cada vez mais para trás, de forma a atrair e trazer investidores de fora pra cá”, acrescenta a professora da FGV.
Para o sócio de Pinheiro Neto, a mudança no sistema tributário brasileiro é um caminho sem volta e as empresas devem começar a se preparar para o novo tempo que virá das mudanças no arcabouço tributário produzindo cenários e cálculos, simulando a transição do seu negócio para o novo modelo, e revisitando os contratos em curso, aferindo o teor de suas cláusulas de tributação. “É essencial estimar a necessidade futura de capital de giro e saber quem paga a conta no caso de mudança na tributação”, avisa Peroba.