Um sanduíche inusitado – viral de um lado e tecnológico do outro – nos transforma em recheio insosso. Precisamos entender o caráter místico do que está acontecendo e buscar um novo tipo de conhecimento
É singular o fato de que, munidos de tanta tecnologia, estejamos ainda tão reféns da indiferença da natureza à hegemonia de nossa espécie.
O desenvolvimento científico mais significativo que transformou o modo como processamos informação – o microchip – promete, munido dos mais sofisticados algoritmos, alcançar a superinteligência. Mas nem ele é capaz – ainda – de impedir os estragos econômicos e sociais que a Covid-19 impõe ao mundo.
Esta maravilhosa partícula computacional ainda engatinha diante desta quintessência parasitária que não se enquadra nas categorias das plantas, dos animais ou das bactérias. Enquanto as microscópicas pastilhas de silício, sobrepostas em camadas múltiplas de circuitos eletrônicos, são capazes de processar milhares de instruções por segundo, os vírus, de outra sorte, dispõem de espantosa capacidade reprodutiva: não é necessário computar nada além do que a lenta e progressiva invasão nas células.
É dali que retiram, de modo parasitário, a energia para sua sustentabilidade. Se de um lado o microchip depende de nossa ciência para encontrar energia para o seu funcionamento, de outro, o vírus ignora a nossa ciência e simplesmente nos transforma em milhares de geradores celulares. É isso que dá ao vírus o poder de “manufaturar” em velocidade muito superior à manufatura dos microchips.
De acordo com Katherine J. Wu, Ph.D. em microbiologia de Harvard, há estimativas de que em nosso planeta existam quase 10 milhões de milhões de vírus individuais (10 à 31ª potência). Segundo Wu, “_…o suficiente para atribuir um a cada estrela do universo 100 milhões de vezes._”
Esse sanduíche inusitado – viral de um lado e tecnológico do outro – nos transforma em recheio insosso. Prensados entre a soberba de que a tecnologia possa enfim nos assegurar até mesmo a imortalidade, e o descaso com o preciso mecanismo de equilíbrio de forças da natureza, resta-nos apenas um estreito espaço pastoso, onde movimentamos nossa ciência, reféns do alcance de nossa racionalidade e observação.
Aliás, é assim que muitos filósofos consideram a nossa condição de compreensão do mundo. Eles denominam tal condição de _princípio_ _antrópico_. Tal princípio é um conceito filosófico que considera que qualquer dado que possamos encontrar sobre o funcionamento do universo e da natureza, de modo a ser observado como tal, está sujeito às possibilidades restritas de observação que a vida consciente e racional é capaz de dispor. Nada mais além. Em outras palavras, vemos o que podemos ver com aquilo que temos para ver; o resto fica fora de alcance.
Mas o que está fora de nosso alcance exatamente agora, durante a pandemia? Talvez a questão flerte com certo misticismo, pois esse inusitado ataque viral atropela nossos mais sofisticados avanços tecnológicos, tornando-os tão rudimentares quanto os mecanismos utilizados para combater a gripe espanhola de 1918.
Surpreende o fato de que, mais de cem anos após a gripe espanhola – agora diante da Covid-19 –, nossas armas mais poderosas ainda sejam o isolamento social e o uso de máscaras. Mais inacreditável ainda é o fato de que não tenhamos um sistema de saúde preparado, após a lição histórica de 1918, para evitar a sobrecarga de internações.
À época, não havia tratamentos conhecidos para tratar a pandemia, nem mesmo antibióticos que pudessem combater a pneumonia. Não dispúnhamos de microchips. Não havia o contingente de cientistas analíticos ou a capacidade de processamento computacional para implementar modelos baseados em machine learning.
A referência ao caráter místico dessa pandemia, no momento em que a nossa ciência materializa as mais criativas histórias de ficção científica já contadas, pode ser exagero. Porém, para os que sustentam que a natureza é consciente – tal qual a _hipótese Gaia_ (que propõe que a biosfera e os componentes físicos do planeta compreendem um complexo sistema que mantém a homeostase climática e biogeoquímica) – soa como uma lição de humildade que diligentemente é imposta aos líderes mundiais, aos visionários “espetacularizantes” e aos cientistas que almejam brincar de Deus.
A possibilidade de que a vida pandêmica revele a nossa dificuldade em nadar contra a correnteza natural do planeta é, em grande medida, algo a considerar. No largo leito desse grande rio, perto das margens, onde o empuxo das águas é mais fraco, ocupamos o espaço estreito para a nossa ciência. É somente ali que é possível ir ao contrafluxo.
É na contramão desses estreitos, ali onde estamos à margem, que devemos mobilizar esforços lúcidos e objetivos. Diante da possibilidade de perdas de milhões de vidas, a ciência mais urgente é a ciência da vulnerabilidade. Quem sabe, assim, na próxima pandemia, não precisaremos manter a população reclusa enquanto preparamos os leitos que nos faltam nos hospitais. De outra sorte, serão mais uma vez apenas leitos cobertos de terra.