PENSAMENTO CRÍTICO 5 min de leitura

Jornadas heróicas e o workporn corporativo

Muitas empresas criam um ambiente de vigilância silenciosa, onde “mostrar serviço” e “parecer produtivo” se tornam o padrão e tem como efeito a “diluição” da autenticidade. Este artigo é um convite a quebrar esse padrão

Paulo Emediato
Jornadas heróicas e o workporn corporativo
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Algo está fora do lugar. Seja na glorificação de um momento de superação ou na espetacularização do cotidiano corporativo, as narrativas que consumimos e reproduzimos diariamente têm se distanciado cada vez mais da realidade. Vivemos um teatro onde empresas, marcas e pessoas apresentam sua “versão social” — uma projeção idealizada que, em 2020, apelidei de “workporn”.

No LinkedIn, cada história de demissão vira um épico de “encerramento de ciclos,” brindes corporativos são transformados em símbolos de amor eterno, e cada novo emprego é celebrado como se fosse a conquista da Copa do Mundo. O mais estranho é que até as demissões, experiências naturalmente difíceis, agora vêm embaladas em narrativas de gratidão e superação. Não há espaço para desgastes naturais, para tristeza ou frustração.

O script é sempre o mesmo: honra, aprendizado, superação. Até o ChatGPT deve estar enjoado das mesmas frases. Parece haver uma obsessão em converter todas as experiências, inclusive as dolorosas, em narrativas heróicas que servem mais para impressionar os outros do que para refletir a verdade.

O problema não está apenas nas narrativas individuais, não me leve a mal. O problema está é na dinâmica coletiva que elas alimentam. Empresas criam um ambiente de vigilância silenciosa, onde “mostrar serviço” e “parecer produtivo” tornaram-se requisitos básicos de sobrevivência.

Pois é. E estudos em psicologia já comprovaram que evitar emoções negativas não resolve nada. Pelo contrário, comportamentos como esses aumentam os níveis de ansiedade e depressão. Suprimir sentimentos transforma pequenas feridas em grandes cicatrizes.

Mesmo assim, o ciclo continua: colaboradores exaustos enaltecem culturas organizacionais que os drenam; empresas divulgam seus “propósitos” enquanto ignoram o impacto que têm na saúde mental dos seus times; e timelines alimentam uma competição insana por validação.

O preço desse ciclo é…

O fato é, me parece, que ficamos tão ocupados criando versões idealizadas de nós mesmos e das organizações que esquecemos uma verdade incômoda, mas libertadora: as coisas nem sempre são bonitas. A raiva, a tristeza e os problemas fazem parte da experiência humana tanto quanto a alegria e a realização. Inclusive, são essas emoções que dão mais significado às conquistas genuínas. É nessa honestidade que reside o verdadeiro crescimento.

O “workporn” vai além de posts motivacionais ou exageros corporativos. Ele cria uma desconexão perigosa entre a realidade e a fantasia. Colaboradores glorificam suas demissões, compartilham publicamente narrativas de amor ao trabalho enquanto, nos bastidores, lutam contra burnout e desmotivação. Essa discrepância alimenta um ciclo de frustração: quanto mais idealizamos o ambiente profissional, mais insatisfeitos ficamos com a realidade.

As empresas, por sua vez, não são inocentes. Em busca de atrair e reter talentos, muitas promovem uma cultura de “propósito” forçado — a ideia de que tudo o que fazem é nobre, transformador e impecável. Mas, na prática, esse discurso raramente é acompanhado de ações consistentes. 

E agora, o que fazemos com isso?

A solução não está em transformar nossas timelines em muros de lamentações. Também não precisamos abandonar a celebração dos momentos de vitória. Mas talvez seja hora de introduzir mais autenticidade nas nossas narrativas. Admitir que nem tudo são flores, que falhar faz parte, e que algumas experiências são simplesmente ruins. Não precisamos agradecer por tudo, nem transformar cada tropeço em uma lição épica.

A maior consistência, tanto para indivíduos quanto para empresas, nasce da verdade. Sim, a verdade pode ser desconfortável, mas é ela que nos tira da superficialidade e nos ajuda a evoluir. Narrativas autênticas criam conexões reais — algo que nenhuma versão idealizada ou post formatado jamais conseguirá fazer.

É hora de quebrar o padrão, de sermos honestos com nossas histórias, e de lembrarmos que nem tudo precisa ser um comercial de 30 segundos. A vida real é mais complicada do que isso — e é exatamente isso que a torna interessante.

Paulo Emediato
Paulo Emediato trabalha com inovação em diversos contextos e organizações desde 2011. Atualmente é o CMO da Oxygea, um fundo de corporate venture capital e venture building, no qual lidera relacionamentos com o ecossistema focados em sustentabilidade e transformação digital na indústria. Como managing partner da DesignThinkers Group no Brasil, liderou projetos em mais de 100 clientes. Foi empreendedor no setor de educação e atua como professor de inovação e negócios na Miami Ad School e PUC Minas.

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