A maioria está perdendo dinheiro, iludida pela possibilidade de “o-vencedor-levar-tudo”, mas isso é ilusão. Além disso, novas frentes, como a da edição genética, serão mais desafiadoras
Não é difícil ver como a tecnologia digital e a inovação rapidamente transformaram nosso mundo nos últimos 30 anos. As empresas mais importantes do mundo – Microsoft, Apple, Amazon e Google – aproveitaram o poder das plataformas para atingir rápido crescimento e hegemonia no mercado conforme seus produtos e serviços permeiam nosso cotidiano. Se a revolução industrial foi construída pelas fábricas e suas chaminés, as mudanças que vemos hoje estão organizadas em torno das plataformas digitais.
Só que, do mesmo modo como essas plataformas cresceram em tamanho e escala, a oportunidade para abusar do poder delas também se torna cada vez mais real. Elas se tornaram uma faca de dois gumes – que podem ser usadas tanto de maneira positiva como negativa. Como reguladores e concorrentes devem responder aos excessos? Como os empreendedores e gestores podem buscar crescimento com plataformas de maneira responsável? Esses são os tipos de perguntas que os especialistas no assunto Michael A. Cusumano, Annabelle Gawer e David B. Yoffie se fazem em seu livro mais recente, “The Business of Platforms”, com base em 30 anos de pesquisas sobre o assunto. Confira a conversa da editora de conteúdo digital da MIT Sloan Management Review, Ally MacDonald, com os autores a seguir, em uma versão editada e condensada.
Vocês têm estudado plataformas há um bom tempo. O que os mantêm interessados no assunto?
Michael Cusumano: Há muita confusão e exageros em torno das plataformas. Nós queríamos dispersar um pouco essa euforia usando dados da realidade. Como criam e gerenciam plataformas para ganhar dinheiro? Como se certificar de que as plataformas sejam positivas, e não negativas, tanto para a economia quanto para a sociedade? Foram nesses tipos de perguntas que pensamos quando decidimos pesquisar o assunto e escrever o livro.
Quais são as principais distinções entre tipos de plataforma que os líderes precisam entender hoje?
Michael Cusumano: Nós encontramos plataformas em praticamente todos os setores de atividade. As empresas de plataforma unem diferentes atores de mercado de uma forma que gera efeitos de rede – segundo os quais o valor que cada usuário recebe aumenta conforme mais usuários adotam a plataforma. Nós dividimos as plataformas em duas categorias básicas: plataformas de inovação e plataformas de transação. O primeiro tipo facilita a inovação externa, e o segundo facilita a troca de informações, bens ou serviços.
Também é importante entender que algumas empresas criam os dois tipos de plataformas e as utilizam para reforçarem uma à outra. É disso que falamos quando nos referimos a uma empresa de plataforma híbrida, um modelo de negócio que não era aparente quando escrevemos nosso primeiro livro, em 2002, sobre liderança de plataforma.
O que vocês procuravam na coleta de dados?
Michael Cusumano: Nós buscávamos determinar se as plataformas são mais eficientes do que suas concorrentes não-plataformas nos mesmos segmentos de indústria. Então, fomos até a lista _Forbes Global 2000_ e identificamos empresas de plataforma que surgiram com o computador pessoal, a web e os mercados _mobile_. E o resultado foi: sim, as plataformas são mais eficientes. Elas basicamente obtêm a mesma quantidade de receitas com metade do número de pessoas, porque estão acessando recursos fora da empresa e criando um negócio sem realmente possuir o mesmo número de ativos que as empresas de comparação.
Mas há um mito sobre quão comuns essas plataformas são. Na _Global 2000_, nós identificamos apenas 43 empresas que se adequam à categoria de uma “plataforma digital” pós-computadores pessoais. Mesmo entre essas empresas, muitas são uma mistura de empresas de produto e de plataforma. As que sobreviveram e se tornaram empresas de capital aberto muito poderosas são relativamente raras.
Entre as plataformas digitais que realmente existem, a maioria são plataformas de transação. Parte do motivo é que criar uma plataforma de inovação é mais difícil. Isso implica empreendedores de plataforma apresentando uma tecnologia que outras empresas vão adotar como fundamental para sua empresa e daí construir produtos e serviços. Pense nos sistemas operacionais, por exemplo. Por que razão nós temos só uma plataforma de software dominante para computadores desktop e só duas para smartphones? Porque efeitos de rede poderosos entre usuários e aplicações tornam esses mercados “o-vencedor-leva-tudo” ou “o-vencedor-leva-quase-tudo”.
O que os dados indicam sobre o fracasso de empresas que são plataformas?
Michael Cusumano: Tentamos contar quantas tentativas fracassadas havia para cada uma das plataformas bem-sucedidas. O que acontece é que empresas que são plataformas fracassam a um nível comparável ao fracasso no empreendedorismo de forma mais geral. O percentual de plataformas sobreviventes em nossa pesquisa foi de 17% – além das 43 plataformas digitais bem-sucedidas, houve 207 empresas fracassadas que nós conseguimos identificar.
Também é importante observar que você pode obter sucesso em certos níveis, como “valuation”, mas não necessariamente em um nível de negócio. Pense na Uber. A Uber ainda não é bem-sucedida como empresa. Ela perdeu US$ 1,8 bilhão em 2018 e US$ 4,5 bilhões em 2017, o que sugere que há algumas falhas sérias em seu modelo de negócio, e que precisam ser corrigidas. Parte do problema é que a Uber dá subsídios aos seus dois lados de usuários – aos motoristas e aos passageiros. Em vez de apenas receberem comissões por corrida, por exemplo, a Uber paga os motoristas uma taxa estabelecida e bônus para que se unam à plataforma. E a Uber mantêm o preço das corridas inferior ao dos táxis ou outros concorrentes. O capital de risco tem sido necessário para financiar esses subsídios de motorista e passageiro. A Uber também utiliza a estratégia do trabalhador de contrato independente para manter os custos baixos, mas isso faz com que 12,5% de seus motoristas se demitam todo mês – a cada nove meses, a Uber perde e substitui todos os seus motoristas. É uma desvantagem significativa. A verdade é que a maioria das empresas que são plataformas mas não têm capital aberto perde dinheiro.
Annabelle Gawer: Algumas dessas empresas estão dispostas a perder tanto dinheiro porque acreditam que, no futuro, haverá um mercado de “vencedor leva tudo”. E esse é um dos mitos que nós destruímos no livro.
A teoria tradicional das plataformas diz que sempre que você tem um negócio de plataforma terá efeitos de rede, e nós concordamos com isso. Mas a ampla crença de que, onde houver efeitos de rede, haverá espaço para apenas um ou dois vencedores no final, essencialmente um monopólio, cria uma situação complicada. As empresas de plataforma passam a acreditar que precisam eliminar suas rivais a todo custo, o que é uma estratégia tão arriscada, por quatro razões. Em primeiro lugar, nem sempre haverá um vencedor.
Em segundo, vencer não tem a ver apenas com efeitos de rede – é preciso assegurar que os usuários estejam tão satisfeitos com sua oferta a ponto de achar desnecessário utilizar múltiplas plataformas_._
Em terceiro lugar, elas também precisam reduzir o impacto de nicho e de concorrentes diferenciados.
Por fim, como em qualquer negócio tradicional, todas as empresas que são plataformas precisam construir barreiras de entrada significativas para que novos concorrentes não continuem aparecendo.
No livro vocês falam sobre o tradeoff entre abertura e curadoria para empresas de plataformas. Como é essa troca na prática?
Michael Cusumano: Quando uma plataforma tenta controlar ou fazer a curadoria de atividades e participação na plataforma, ela pode diminuir diretamente os efeitos de rede – além de esse controle ser uma grande despesa, como no caso de o Facebook contratar 30 mil pessoas como moderadoras de conteúdo. Além disso, do lado econômico, o Facebook admitiu que o conteúdo que lhe permite vender a maioria dos anúncios é feito de fake news que viralizam. Então, no curto prazo, limitar a participação ou a atividade com conteúdo pode resultar em uma plataforma menos vibrante e economicamente menos bem-sucedida, pelo menos em efeitos de rede de curto prazo. Já no longo prazo nenhuma empresa não é sustentável se permite atividade criminal, conteúdo falso ou atos ilícitos em sua plataforma.
David Yoffie: Vimos que uma área subdesenvolvida pelas empresas de plataforma foi a de governança – as regras e procedimentos que limitam e controlam a atividade que acontece ali. Essas regras foram vagas, e precisam ser reforçadas e aplicadas. As empresas devem criar departamentos para monitorar as atividades e potencialmente controlá-las e. Os 30 mil monitores de conteúdo do Facebook não devem ser suficientes. As empresas têm de intensificar essas atividades de monitoramento, o que vai aumentar os custos. Elas utilizam inteligência artificial e ferramentas de machine learning, mas precisam de mais pessoas também. Nós defendemos ainda que precisa haver mais transparência nas condições impostas aos usuários. Eles precisam entender com mais clareza exatamente qual comportamento é aceitável na plataforma e qual não é.
Como os executivos das empresas de plataforma podem se dispor a liderar a autoregulação quando a disrupção digital é uma vantagem competitiva tão interessante?
David Yoffie: Um dos exemplos que utilizamos no livro é a decisão da Amazon de começar a pagar impostos a todos os estados onde atua nos Estados Unidos. Legalmente, ela não é obrigada a fazer isso. Empresas de plataforma deveriam reconhecer a possibilidade de mudanças regulatórias acontecerem, e se antecipar – será doloroso quando elas acontecerem.
Michael Cusumano: Imagine se o Airbnb concorda em ser governado por regulamentos de hotéis. Ou se empresas como a Uber, a Lyft ou a Deliveroo decidem contratar motoristas em tempo integral como funcionários regulares, com todos os benefícios e salários melhores. Isso seriam exemplos de mudanças regulatórias que podem ocorrer. A cidade de Nova York já está se mexendo para aumentar o salário mínimo para trabalhadores de economia compartilhada.
Alguns dizem que as plataformas não existiriam sem a estratégia do trabalhador temporário – a economia gig é que teria mantido seus custos 30% menores que os das empresas convencionais. Pode ser, mas isso não significa necessariamente uma boa estratégia de negócios no longo prazo. Conforme discutimos, a Uber perde três quartos de sua força de trabalho a cada seis meses. Esse tipo de caos não é um bom jeito de construir uma empresa estável, com funcionários engajados e clientes satisfeitos ao redor do mundo.
Annabelle Gawer: A ironia é que as empresas que foram bem-sucedidas nesses primeiros dias de faroeste, ignorando as leis e alcançando posições de domínio, vão se beneficiar de mais regulações, porque isso colocará um grande peso sobre as novas entrantes.
Em termos dos novos campos de batalhas das plataformas, qual será o papel que as tecnologias emergentes como a IA vai desempenhar?
David Yoffie: Falamos sobre dois casos emergentes diferentes no livro que são baseados em IA – veículos autônomos e reconhecimento de voz.
Se você pensar qual é o futuro das empresas com veículos autônomos, o negócio que era de plataforma vai ter de mudar fundamentalmente: agora vai oferecer um serviço e precisará ter uma frota de carros própria e gerenciá-la. Ela deixa de ser uma plataforma e não há batalhas entre plataformas.
Já as coisas que vemos acontecer no mundo do reconhecimento de voz remetem a uma clássica guerra de plataformas. Os principais atores continuarão sendo a Google e a Amazon, e talvez a Apple. Nós provavelmente veremos alguns players de plataforma da Coreia e da China ainda, e prevemos alguma dificuldade de as plataformas desempenharem tão bem como no mercado de smartphones.
Michael Cusumano: Nós também descobrimos que o jeito de pensar da plataforma pode incentivar a inovação em setores que não tínhamos considerado antes. Dois exemplos que discutimos no livro são computação quântica e edição genética.
Computadores quânticos na verdade não são digitais; são dispositivos analógicos. Eles dependem de efeitos quânticos para fazer cálculos que, ao menos em teoria, serão impossíveis com computadores digitais convencionais. Nesse espaço, vemos algumas empresas e universidades construindo plataformas de inovação. Mas elas não vão muito longe até que haja um ecossistema para gerar aplicações e serviços, como criptografia e comunicações seguras, e até que sejam otimizadas.
Cada participante tenta replicar o que aconteceu na computação convencional para estimular a criação de aplicativos de terceiros, ferramentas de programação (API) e serviços – do tipo computação quântica como serviço economia da recorrência. Algumas empresas já lançaram serviços assim, inclusive, incluindo a Microsoft e a IBM. A computação quântica vai se tornar mais importante como um novo tipo de plataforma de inovação nas próximas duas décadas, mas ainda é familiar porque ainda envolve tecnologia de informação. A edição genética, porém, é diferente e se move mais rápido – as aplicações já estão sendo desenvolvidas e utilizadas hoje. Vemos algumas universidades e empresas-chave, inclusive startups, emergindo com algumas empresas farmacêuticas maiores.
Os players da edição genética precisarão construir um ecossistema acerca de algumas das principais tecnologias, como a CRISPR. Uma parte dessa atividade já está acontecendo. Vemos empresas e universidades criando blocos de construção e kits de ferramenta – alguns são publicamente disponíveis, utilizando métodos de fonte aberta, e alguns são controlados por patentes, mas amplamente licenciados.
Vemos muitas patentes hoje em dia relacionadas com plataformas de software e smartphones, mas o campo de tecnologia de informação se beneficiou muito do conhecimento compartilhado e de acordos de licenciamento cruzado. Já no mundo biotecnológico e farmacêutico, a corrida é para encontrar uma patente que se torne um remédio multibilionário. A competição lembra um jogo de soma zero com silos fechados de inovação, em vez da abordagem de crescimento conjunto que vimos nos ecossistemas de smartphone.
Seria bom que a indústria farmacêutica e biotecnológica pudesse abraçar uma filosofia menos “soma zero”, como a vista em plataformas de outros setores.