É possível enxergar algo bom no distanciamento social a que a pandemia nos obrigou? Definitivamente, sim. Os autores deste artigo, médicos, propõem uma reflexão sobre esses acertos que pode render valiosos insights para gestores e empreendedores
A pandemia decorrente da infecção pelo novo coronavírus tem modificado de maneira significativa a nossa rotina. Além de efeitos sobre a saúde física e mental, o período de isolamento social tem outras implicações negativas.
Contudo, é preciso admitir que a quarentena também traz diversos efeitos benéficos para os seres humanos, muitas vezes desconhecidos ou ignorados por muitos. Neste texto, elencamos algumas dessas notícias positivas, tão importantes em tempos como estes.
Um ponto relevante na pandemia de Covid-19 é a compreensão de que estamos pela primeira vez em mais de cem anos diante de um momento com efeitos que vão muito além da saúde. Trata-se de uma crise social, econômica e humana sem precedentes para as três últimas gerações do planeta. Embora haja uma certa discussão linguística, há pouco mais de meio século o ex-presidente dos Estados Unidos John Kennedy invocou em um discurso em Indiannapolis o significado etimológico da palavra “”crise””, que em Chinês tradicional (危機) representaria uma associação de “risco”” e “”oportunidade””. Nesse contexto, vamos nos apegar ao conceito de “oportunidade” popularizado por Kennedy para destacar por meio de algumas histórias impactos positivos exercidos pela quarentena no dia a dia das pessoas e o quanto isso foi capaz de alavancar projetos pessoais e gerar valor individual ou para a sociedade.
Os exemplos acima nos apontam que as lições e as oportunidades desta crise não vieram da China, mas surgem de dentro de cada um de nós…
A pandemia por Covid-19 modificou de forma significativa nossas relações interpessoais, com diversos impactos nas conexões familiares. Embora sejam percebidos alguns efeitos negativos, como aumento do número de divórcios, de desentendimentos entre familiares e de aumento do número de divórcios, a quarentena também trouxe vários efeitos benéficos.
Em alguns locais, como Wuhan, epicentro da epidemia pelo novo coronavírus, houve um aumento significativo do número de uniões e casamentos logo após o período de quarentena. A pandemia também tem demonstrado uma maior união entre familiares, com aumento da proximidade entre pais e filhos e um tempo de convívio mais prolongado e de melhor qualidade. Em uma pesquisa realizada pela McKinsey na China, 35% dos entrevistados relataram que passaram a ter uma relação mais próxima com seus familiares desde o início da pandemia, principalmente pelo aumento do tempo de convivência. Apesar de muitos pensarem que o período de quarentena acaba sendo cansativo e entediante, experiências de períodos estressantes do passado, como a Grande Depressão e a crise econômica de 2008, demonstraram que as famílias que atravessam tais eventos juntas tornam-se mais unidas e solidárias. Há uma maior conexão entre os familiares, uma oportunidade de aproximação entre pais e filhos e um aumento da atenção pelo outro. Tais fatos tornam-se ainda mais evidentes em famílias nas quais os pais trabalham por longas horas e acabam tendo pouco tempo para se dedicarem aos filhos. Iniciativas de ajuda e solidariedade também se multiplicaram, com diversas ações de auxílio a habitantes de favelas, refugiados, moradores de ruas, pequenos comércios e serviços de saúde.
Por fim, o período de quarentena acabou aproximando inclusive pessoas que nunca tinham se conectado, como na Itália, um dos países mais afetados pela pandemia, onde vizinhos se comunicaram de suas varandas.
Há alguns anos, as ferramentas digitais se consolidaram como uma ótima maneira de envolver as famílias, fortalecendo as linhas de comunicação entre seus membros. Segundo o Think with Google, a relação com o mundo online antes da pandemia já era intensa: 85% das pessoas consumiam conteúdos diversos por vários dispositivos ao mesmo tempo! Sessenta e um por cento fazem uso diário de e-mail marketing, sendo o WhatsApp o aplicativo mais usado no Brasil (média diária de 22 minutos) e fonte de informação de 79% da população. Com a pandemia, muito provavelmente as ferramentas digitais ganharam uma velocidade ainda maior na incorporação do dia a dia da chamada “nova era covidiana”, tanto no relacionamento das empresas com seus clientes, assim como entre membros de uma mesma família.
A pandemia de Covid-19 permitiu a rápida incorporação de novas experiências de aprendizado personalizadas para os alunos de algumas escolas e universidades, com o intuito de melhorar o aprendizado de cada lição: relatório de livro, música, obra de arte ou até dança interpretativa. Infelizmente, nem todos podem enviar os filhos para escolas que dão ênfase ao aprendizado personalizado. Mas é de fundamental importância que o sistema público de ensino também incorpore essas práticas e integrem os pais, professores e alunos para as maneiras diferentes de aprender digitalmente – visual, auditiva ou cinestésica. Estas novas tendências de transformação digital em tecnologia facilitarão a aprendizagem de alunos da maneira mais apropriada para eles, por meio de jogos interativos, ferramentas de modelagem e produção de vídeo, entre outros. A pandemia certamente contribuiu para catalisar a incorporação da inteligência artificial no aprendizado individual dos alunos e de suas famílias e abriu um novo mundo no cenário da educação.
Todos sabemos que, muitas vezes, só passamos a valorizar algo depois que o perdemos. Infelizmente, nesse mundo muito mais tecnológico, o contato físico estava sendo substituído pelo contato virtual. A quarentena trouxe um isolamento social nunca antes visto, causando uma redução brusca no contato físico entre as pessoas. Coisas previamente muito simples, como um abraço, um beijo ou até um aperto de mão, tornaram-se ações raras, para muitas pessoas completamente inexistentes. Essa perda brusca da interação física entre humanos mostrou a importância do calor humano. Passamos a valorizar mais o contato com pessoas e com a natureza, estamos sonhando com aquela reunião em um barzinho, um passeio no parque, um banho de mar ou uma viagem com amigos e menos preocupados com redes sociais ou bens de consumo supérfluos, como joias, roupas de marcas ou bolsas caras.
Sim, a quarentena, ao retirar o contato físico do nosso dia-a-dia, nos mostrou o quão importante ele é e o quanto somos dependentes dele. Acreditamos que sairemos dessa crise mais evoluídos e sensíveis, cansados e desapegados do mundo virtual, mas sedentos em aproveitar as maravilhas do mundo real
Essa pandemia trouxe um novo paradigma num grupo já previamente vulnerável, tanto pela maior fragilidade, quanto pela maior ocorrência de doenças associadas. Esse grupo é aquele composto por nossos pais e avós, os idosos. A Covid-19 chegou de maneira intensa, assustando a todos nós, mas veio com maior violência quando falamos dessa população específica. Desde os primeiros relatos chineses, a mortalidade nessa faixa etária foi muito elevada, especialmente quando falamos dos moradores de casas de repouso, onde a mortalidade chega a incríveis 26%! Estamos falando de uma população previamente marginalizada, suscetível a vários problemas físico-psico-sociais, agora ainda mais ameaçada devido à pandemia.
Por outro lado, a Covid-19 e a quarentena fizeram com que começássemos a dar mais atenção à fragilidade que vem com o envelhecimento, assim como aos problemas que os idosos enfrentam diariamente, voltando a colocá-los no centro das nossas preocupações. Infelizmente, esse movimento ainda está longe de ser unanimidade no Brasil, especialmente após dados recentes mostrarem um aumento da violência contra o idoso. Tal fato, provavelmente decorrente de um misto entre maior tempo de convivência, população deseducada e empobrecida e maior número de denúncias, que apenas desnuda o tamanho do problema real, precisa ser mostrado e compartilhado, pois o reconhecimento dessa realidade perturbadora é essencial para que seja enfrentada da melhor maneira possível.
Em vários países desenvolvidos, temos visto um movimento muito interessante quando se fala nos cuidados com as pessoas na melhor idade. Em primeiro lugar, muitos idosos de países desenvolvidos são independentes financeiramente, assim como seus filhos, reduzindo de forma contundente a interdependência familiar. Em segundo lugar, psicologicamente falando, os idosos tendem a minimizar os riscos, pois não se sentem velhos. Por fim, devido à consciência de menor tempo para aproveitar os anos de vida restantes, a ideia de isolamento domiciliar é mais assustadora do que a doença em si, pois o que eles mais valorizam é a interação social. Dessa forma, com filhos cada vez mais preocupados, surgem diversos sites com orientações de como cuidar melhor dos nossos queridos velhinhos.
E, sim, esse movimento tem sido visto aqui no Brasil também, pois vários de nós resolvemos cuidar com mais atenção de pais e avós. O princípio de praticar o distanciamento físico, mas não o isolamento social, é o mais importante nesse caso: mantenha contato com seus pais e avós, quer seja por telefone ou vídeo-chamada. Mostrar que você se preocupa com eles é um combustível importante para ajudá-los a vencer a quarentena. Deve-se ensiná-los e estimulá-los a usar a tecnologia para mantê-los conectados, bem como mantê-los ocupados com tarefas, fazendo com que se sintam úteis. Saídas desnecessárias, viagens e até consultas médicas presenciais devem ser evitadas com os mais velhos; que se utilize a telemedicina quando possível. O planejamento conjunto deve ser para definir como agir quando intercorrências acontecerem, como no caso de doenças, e também para manter a casa bem abastecida de remédios e alimentos. Por fim, caso surjam sintomas, a primeira ordem é não entrar em pânico – a maioria dos casos de Covid-19 é leve, mesmo em idosos. Deve-se entrar em contato com o serviço de saúde e manter vigilância sobre os sintomas e sinais de alerta.
Esse é um momento de união: todos estamos precisando de atenção, portanto é essencial evitar que essa parcela da população, tão vulnerável, seja mais penalizada pela quarentena do que pela doença em si.
As emissões de gases de efeito estufa e a poluição atmosférica têm apresentado grande redução durante o período de quarentena, como consequência da menor circulação de veículos automotores e aviões e da diminuição da atividade econômica. Na cidade de São Paulo, a poluição atmosférica chegou a cair 50% no período da quarentena, principalmente pela redução da circulação de veículos. Por conta da melhora da qualidade do ar, alguns moradores do norte da Índia conseguiram ver parte de uma cordilheira do Himalaia, localizada a mais de 150 km de distância, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial. Na Itália, peixes puderam ser vistos nos canais de Veneza, usualmente turvos por conta da água poluída, com sedimentos em suspensão.
Outros efeitos no meio ambiente também foram sentidos, como a presença de animais selvagens em centros urbanos e a redução do ruído sísmico da crosta terrestre, barulho gerado pela vibração do planeta e decorrente da circulação de pessoas e veículos. Muitos destes acontecimentos têm relação direta com uma melhor qualidade de vida e de saúde das pessoas, com redução do número de doenças respiratórias e cardiovasculares. O trabalho remoto, em esquema de “home office”, também tem contribuído para a diminuição do trânsito de veículos e pessoas, para a melhora da qualidade do ar e para a redução do barulho nas cidades. Além disto, muitos referem melhora da qualidade do sono e da satisfação pessoal com a possibilidade de trabalharem de casa e gostariam de manter este modelo após o fim da pandemia.
Por questões de logística, várias empresas no mundo e no Brasil, mesmo antes da pandemia, já lançavam mão do “home office” para seus funcionários incentivando-os a trabalhar em casa esporadicamente. Com a Covid-19 esta prática virou cotidiana e o trabalho remoto tornou-se uma prática comum, aproximando ainda mais as operações que já estavam virtualmente conectadas. Mas o que mudou? Apenas foram acrescentados números extras de dias?Não! Com esta transformação, a comunicação precisou ser aperfeiçoada, englobando técnicas de processos de diálogos, adaptabilidade organizacional e até de acolhimento, porque as equipes não estão mais fisicamente juntas e precisam continuar a agregar valor para as entregas sem deixar faltar o sentimento de pertencimento a uma instituição ou empresa.
Um estudo publicado recentemente no The Wall Street Journal sobre as mudanças no ambiente corporativo nos últimos anos cita o “home office” como tendência associada ao avanço da tecnologia, com alto impacto no remodelamento das empresas. Com a Covid-19 é provável que os trabalhos e funções, capacidades e habilidades tecnológicas e a estrutura e cultura organizacional tenham não só mudado para o período pandêmico, mas é possível que se tornem ampliadas e permanentes. De uma certa forma isto pode ser um alerta para que departamentos de Recursos Humanos “iniciem imediatamente uma corrida de revezamento” para se adaptar a esta tendência ampliada, com políticas de retenção de talentos, pois a necessidade de fixação de funcionários em sede possivelmente ficou no passado.
Muito se tem falado sobre a redução expressiva na quantidade de infartos e derrames cerebrais, inclusive acreditando-se que esta redução ocorreu pelo medo de procurar serviços de atendimento de urgência, chegando a 70% em serviços como o do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Fmusp. Entretanto, será que o medo é a única hipótese plausível? Será que não poderia ser um efeito benéfico da quarentena?
Um dos autores deste texto, médico pneumologista, vem percebendo que até agora nenhum dos seus pacientes portadores de doenças pulmonares crônicas apresentou exacerbação clínica desde que a Covid-19 teve início no Brasil. Para ele este fato é atípico, tendo em vista que nesta época do ano, pico das viroses respiratórias, sempre tinha pelo menos quatro ou cinco pacientes internados por complicações respiratórias. Todos os seus pacientes estão bem, pois o especialista mantém contato frequente com eles, seja para dar orientações sobre a Covid, seja pela proximidade da relação entre médico e pacientes.
Em consonância com o que este profissional tem observado, sua esposa, pediatra e intensivista, também notou que as UTIs infantis estão vazias, pois as crianças não têm apresentado as crises de chiadeira ou pneumonias. Na verdade, uma das razões para a queda drástica na procura por serviços de urgência deve ter sido decorrente de algum efeito benéfico observado durante o isolamento.
A quarentena diminuiu drasticamente o trânsito de carros e pessoas, assim como reduziu a poluição do ar e a circulação dos vírus responsáveis por gripes e resfriados. Há muito já se estudam os efeitos agudos e crônicos da poluição e das viroses em diversas doenças, especialmente respiratórias e cardiovasculares. Embora tenha havido uma redução da procura por atendimento médico de urgência devido ao medo causado pela Covid-19, ele possivelmente não deva ser o único fator a explicar uma queda tão intensa nos atendimentos em prontos-socorros. É bem possível que, com a melhora da qualidade do ar, com medidas de higiene, redução da circulação de pessoas e barreiras à propagação viral (uso de máscaras, auto-isolamento em portadores de sintomas respiratórios, redução do contato físico, entre outros), estejamos vendo uma redução significativa das descompensações de várias doenças crônicas, responsáveis por uma alta carga de consumo nos recursos de saúde mundiais.
MOLDANDO A SOCIEDADE NO FUTURO
As experiências que estamos adquirindo com essa pandemia vão moldar nossa sociedade no futuro e será importante mantermos aquelas que possam trazer melhora na qualidade de vida de todos.
Algumas lições vão – ou, pelo meno,s deveriam – perdurar, como circulação de carros reduzida, reuniões virtuais, trabalho em casa e incorporação de novos hábitos comportamentais, pois podem contribuir de forma efetiva na redução de várias doenças crônicas que estão entre as principais causas de morbimortalidade do mundo, possivelmente em uma escala de grandeza muito, mas muito maior do que a mortalidade decorrente da Covid-19.
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Crédito da imagem: Shutterstock”