Mercado de trabalho está mergulhado no imperativo do propósito, uma lógica que deixa as pessoas cada vez mais frustradas e distantes do real sabor da vida
Tem uma história sobre um peixe que foi até um ancião e disse:
– “Tô procurando um negócio. Um tal oceano.”
– “O oceano? Você está no oceano”, respondeu o ancião.
– “Isso?’, disse o peixinho, “Isso aqui é água. O que eu quero é o oceano.”(história contada pela personagem Dorothea Williams, em trecho do filme “Soul: uma aventura com alma”)
Qual é o seu propósito? Sua missão? Conheço pessoas que passaram anos se debatendo com esta questão. Algumas buscaram mentoria, coach, referências de sucesso ao se sentirem absurdamente frustradas por não terem uma grande missão, um talento extraordinário ou metas audaciosas para projetar o futuro. Certamente você conhece alguém, ou já passou por isso.
Há algum tempo existe uma lógica insistente no mercado de trabalho: o imperativo do propósito. É possível encontrar em praticamente todas as páginas de empresas na internet manifestos bonitos e missões inspiradoras, projetando uma imagem de organização comprometida com um “”mundo melhor””, enquanto, muitas vezes, do lado de dentro esta imagem não se reflete nas dinâmicas cotidianas e tenta camuflar realidades como precarização das condições de trabalho, destruição do meio ambiente e ampliação das desigualdades.
Assim, para a maioria das empresas, o propósito é puramente mercadológico: ampliar o lucro. Desde a época fordista, esta lógica se mantém ativa. Desse modo, o objetivo sempre foi o de garantir a capa da revista, o tão sonhado helicóptero ou o iate para os fundadores da empresa. No entanto, agora, esses objetivos carregam um discurso que passa uma mensagem mais bonitinha. Esse contexto te soa familiar?
Não estou aqui fazendo apologia ao fim da lucratividade. Nada disso. O incômodo é com a estetização do discurso sobre propósito nas empresas e, por consequência, no modelo idealizado de carreira e de sucesso na vida pessoal. Como se a experiência de uma vida pudesse ser reduzida a uma busca frenética – e muitas vezes hiperindividualista – por um propósito para chamar de seu.
A receita pronta dos “”cinco passos para se descobrir o seu propósito”” vende livros e cursos com coachs famosos, além de aumentar os likes nos vídeos do YouTube e Instagram. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, especialista em discutir questões contemporâneas, já chamava atenção em “”A estetização do mundo”” (2015) para o resultado deste caminho: o triunfo das frustrações, ansiedades e decepções.
Ao que parece, grande parte das pessoas acredita que ficar mudando de empresa e pulando de oportunidade em oportunidade é o caminho mais fácil para realizar seus sonhos e alcançar seu propósito, como se tivessem a certeza do que está à espera no próximo emprego. Será? Quando é que se alcança esse propósito? O que acontece depois? E se tiver “”pedras no meio do caminho”” após tanto esforço nessa busca? E se tudo isso for apenas uma ilusão de sucesso?
Aliás, sem dar grandes spoilers, é esse o tema central do novo filme da Pixar, “”Soul: uma aventura com alma”” (2020). Foi assistindo o filme que me lembrei do “”ranço”” que tenho da banalização de missão e do propósito no universo do trabalho. Me lembrei das diversas vezes que vi pessoas muito jovens profundamente frustradas por não terem encontrado o seu porquê.
Lembrei também de uma pessoa do trabalho, que comentou sobre uma crise de ansiedade quando não conseguiu fazer um exercício de definição de propósito que seu coach havia indicado. Como se conseguir escrever uma frase bonita fosse essencial para tornar sua vida mais significativa. As pessoas mais interessantes que conheço, por sinal, nunca se preocuparam com isso.
Quando questiono essa busca pelo propósito como centralidade da vida e do sentimento de felicidade, quero refletir sobre o cansaço e o sofrimento que a acompanha. Afinal, é inevitável: toda ilusão carrega consigo uma desilusão.
A história de “”largar tudo para ser feliz vivendo o seu propósito””, além de ser uma perspectiva para poucas pessoas privilegiadas, em uma sociedade tão desigual como a nossa, é exatamente a ilusão de Joe, o protagonista de “”Soul””. Um homem sem sucesso, sem amigos, sem dinheiro, sem histórias para contar. Mas que se agarra ao fato de ter um propósito na vida, o jazz.
A mensagem não é sobre desistir das coisas ou não ir em busca delas. O problema é entender isso como objetivo único da vida e se ausentar das próprias vivências. Afinal, o que nos acontece hoje importa tanto quanto para onde olhamos e queremos ir. Pensando assim, diminuímos a ansiedade de chegar e colocamos sentido onde realmente importa. No agora. A vida importa. Uma obviedade, eu sei, mas o óbvio precisa ser dito.
Qual a urgência desse tema? Por que tantas produções artísticas têm retomado essa discussão? Vou compartilhar aqui alguns dados que justificam ampliar essa conversa, inclusive dentro das organizações:
– No mundo, 264 milhões de pessoas sofrem de ansiedade, 18,6 milhões estão no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS);
– Nosso país é o primeiro colocado no ranking de ansiedade e o segundo em casos de burnout, perdendo apenas para o Japão em índices de stress (ISMA-BR);
– Uma pesquisa divulgada pela Yellow Brick Program indica que cerca de 90% dos profissionais da geração Y já passaram por algum tipo de burnout;
– A pesquisa também apontou que 31% dos entrevistados sentem dores físicas causadas pela doença, como ansiedade, cansaço, palpitações, insônia e dificuldade de concentração;
– Finalmente, segundo a Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional (SBIE), 77% das pessoas brasileiras não se sentem realizadas.
Alguns dados apresentados acima, aliás, foram discutidos numa outra coluna em que argumentei sobre a necessidade de (re)humanizar uma sociedade doente, que olha o ser humano como uma máquina dentro de uma lógica de desempenho.
Alguém pode dizer: “”Mas é importante ter algo a que se agarrar nessa vida!””. Não na perspectiva do filme. Porque é assim que deixamos de viver ou de “jazzar”, como bem definiu a personagem 22. Ela recorre à expressão para traduzir, a partir da paixão de Joe pelo Jazz, que a vida é o que nos atravessa. As experiências fazem sentido porque nos fazem sentir a vida como acontecimento. O que é música sem execução? E o que seria do jazz sem as sessões de jam, que nada mais são do que tocar sem saber o que vem à frente?
A palavra “”jazz”” tem origem incerta, mas a versão mais compartilhada é que ela seja uma derivação de uma gíria de comunidades negras estadunidenses e poderia ser traduzida como “”energia”” ou “”espírito””. E a história do estilo musical está intimamente ligada à história dos povos africanos escravizados. Portanto, “”jazzar”” pode simbolizar um ato de resistência diante de um mundo que tenta nos aprisionar em certas caixinhas ou modelos. É reconhecer o valor da experiência e se abrir ao improviso.
A moral da história: o sentido da vida nada mais é do que ser vivida. Vivemos para viver. Ponto. Os 107 minutos de “”Soul”” reforçam o que já deveríamos saber. Existe uma multipluralidade de existências, de saberes, de histórias, de mundos, de vidas, de potências, no plural. Uma perspectiva muito mais bonita e interessante que a mercantilização de um padrão de felicidade estetizado, onde apenas a busca pelo propósito no trabalho, profissão ou cargo é que vai “”te dar sentido””.
Enquanto gastamos horas na definição do propósito perfeito, a vida acontece, passa e um dia acaba.
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