Mundo digital é o que sobra entre os dedos quanto não temos ninguém entre os braços
“Quando Mark Zuckerberg anunciou, em outubro de 2012, que a sua rede social contabilizava 1 bilhão de usuários ativos mensais, não faltaram arautos da implosão do Facebook. A crítica daqueles especialistas se baseava, então, na ideia de que pouco interessaria aos internautas ter centenas de conexões. Segundo o especialista citado em um artigo da IT Fórum de 4 de outubro de 2012, nossa interação se torna mais esparsa e menos profunda com a excessiva conectividade, o que levaria ao ocaso da plataforma.
Sete anos depois, o Instagram contabilizava 1 bilhão de usuários e o YouTube e o WhatsApp, 2 bilhões; o WeChat contava com 1,2 bilhão, e o Facebook alcançava com 2,6 bilhões de usuários ativos mensais. Em junho de 2020, apenas nos EUA, o TikTok já contava com mais de 50 milhões de usuários ativos por mês.
Segundo a Statista, estima-se que, atualmente, a cada minuto compartilham-se cerca de 695 mil histórias no Instagram, enquanto 9.131 conexões são realizadas no LinkedIn. São contabilizados ainda o envio de 69 milhões de mensagens pelo WhatsApp ou Messenger e 5 mil downloads são feitos no TikTok. Ainda, mais de 500 horas de conteúdo são carregadas no YouTube.
Conforme o site Worldometer, atualmente o mundo possui quase 5 bilhões de usuários na internet, ou seja, 64% da população mundial.
Para a Agência Brasil, a fatia de crianças e adolescentes (com idade entre 9 e 17 anos) que usavam a internet em 2019 correspondia ao montante de 24,3 milhões. Ou seja, 17% entre os usuários da web. Grosseiramente, a cada minuto nossas crianças e adolescentes são responsáveis por aproximadamente 321 mil mensagens do WhatsApp e 3.255 histórias do Instagram, entre outras coisas.
O site Meio&Mensagem reportava, em 2019, que as crianças e os jovens entre 5 e 15 anos passavam em média 5,7 horas no celular. O Artigo do Primeira Pauta informa que essa média subiu 40% com a pandemia; ou seja, quase oito horas por dia.
Por meio dessas aproximações matemáticas é possível crer que nossos jovens sejam agora responsáveis por cerca de 500 mil mensagens de WhatsApp e cerca de 4.600 histórias do Instagram a cada minuto.
Os impactos da pandemia na rotina de crianças e jovens não se restringem às estatísticas das redes sociais. Na dinâmica do desenvolvimento cognitivo, a construção ativa do conhecimento é um empreendimento social impelido por discordâncias quanto às percepções do mundo. As janela aparentemente escancaradas das redes sociais, de fato, são apenas frestas de um todo muito mais complexo. Na maioria dos casos, por essas fendas vê-se apenas conteúdo fabricado, editado, transfigurado, remodelado; raramente algo espontâneo.
Em meio à pandemia da covid-19, a variante mais perigosa não é a alfa, a beta ou a delta; a mais fatal para o desenvolvimento cognitivo é a variante psi.
Diferentemente dos mecanismos de ataque ao nosso sistema respiratório, a variante psi infiltra-se nas crenças e nos valores que a experiência excessiva da interação digital causa. Uma mente em desenvolvimento – longe dos exercícios sociais tradicionais das escolas e longe dos exercícios mentais da matemática, da leitura, da reflexão crítica – não dispõe de mecanismos de defesa para evitar que a variante psi replique sua ação de contágio em velocidade digital.
Há quem defenda que isso é o caminho da transformação da sociedade para paradigmas compatíveis com a digitalização. Contudo, como já afirmava o psicólogo evolucionista Steven Pinker, em seu best seller Como a mente funciona, de 1997, a mente humana é fruto da evolução, que nos preparou para sermos bem-sucedidos em situações práticas do mundo natural. A construção do conhecimento formal, assim, depende de “um trabalho árduo que nem sempre é agradável em si mesmo”.
A variante psi, entretanto, tira proveito da falsa sensação de que algo se move no universo dos megapixels e dados fartos. Como explicou o psicólogo e naturalista J. J. Gibson nos idos de 1970, tanto os animais como os humanos, quando observam o mundo, não tomam o mundo como ele é, como se estivessem tirando uma fotografia, mas o tomam para identificar oportunidades específicas para agir.
No mundo das escolas tradicionais, com a presença física, os estímulos chegam aos alunos por diferentes vias sensitivas e não apenas pelo âmbito visual. Os abraços, os cheiros, os ruídos de fundo, complementam o sentido visual, sofisticando os estímulos. Nossas ações levam em consideração tudo isso. É aqui que a experiência subjetiva ganha em amplitude e, assim, encaminha o nosso desenvolvimento mental por vias mais produtivas. Privados disso, encarando os megapixels de seus black mirrors, jovens e adolescentes convalescem pela ação da variante psi.
A profundidade do mundo digital diverge em número de dimensões daquela do mundo físico. No entanto, tanto um quanto o outro agora se dispõem como “o mundo na sua totalidade”. Nenhum de nós pode se ocultar de um deles por simples escolha. Eles estão inexoravelmente inter-relacionados em termos de significado e de representação.
O sentido das coisas deste mundo “figital” possui a envergadura dos limites de nossa experiência e da nossa capacidade em associar o que apreendemos com o que já sabemos. Na circunstância da pandemia, o fechamento das escolas, e a tentativa de manter a rotina do desenvolvimento de nossas crianças e jovens, suprime da totalidade do mundo físico-digital as experiências para o qual o nosso cérebro primata se preparou pelas vias do processo evolutivo.
Nos meandros do desenvolvimento cognitivo, onde se torna imperativa a exposição das experiências plenas dos sentidos, subtrair o convívio social tradicional, reforça o encurtamento de nossa capacidade de dar sentido ao mundo. O que resulta é o hábito de entender que o mundo é aquilo que vemos nos espelhos escuros de nossos smartphones e computadores. O que sobra é essa ilha que, na verdade, deveria ser um continente.
Ainda é cedo para avaliarmos o impacto desta geração que tem na ponta dos dedos o que não tem entre os braços. Ainda é cedo para julgarmos se haverá prejuízos difíceis de serem recuperados. O desenvolvimento cognitivo pressupõe um mundo de experiências pentatônico, canônico, sobreposto.
Tal qual uma sinfonia, cada instrumento não está ali por acaso. Os instrumentos digitais ressoam nas alturas da catedral de pedra, enquanto se ouvem os gritos metálicos do órgão de fole. Não deveríamos deixar nossos filhos tão facilmente expostos à variante psi.
Parafraseando Humberto Eco: deixar nossos jovens “sem nunca estarmos seguros que não perderam uma reverberação ultravioleta, uma alusão infravermelha” não pode ser o melhor caminho.
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