O vácuo regulatório de criptomoedas e os desafios para a instituição de programas de compliance no setor
É inquestionável que as criptomoedas têm revolucionado o cenário financeiro mundial desde o seu surgimento, ainda em 2008, com o bitcoin. De fato, as criptomoedas podem ser alternativas eficientes para a realização de transações financeiras tradicionais. Destacam-se como ativos virtuais criptografados, sem garantias em valores reais e desvinculadas de qualquer autoridade central, que podem ser utilizadas tanto como um sistema de pagamento eletrônico do estilo peer-to-peer quanto como uma forma de investimento. Quando adequadamente estruturadas, as criptomoedas podem ser meios seguros e rápidos para a implementação de transações financeiras.
Contudo, a despeito de tal revolução, há ainda, nacional e internacionalmente, muitas lacunas em termos de regulação e legislação aplicáveis a esses ativos. Esse vácuo normativo invariavelmente resulta em preocupações e questionamentos por parte de quem opera com criptomoedas.
Como destacado em texto anteriormente publicado neste Fórum de Direito Digital, não há ainda um arcabouço regulatório voltado para criptomoedas. O cenário tende a se alterar logo, no entanto: atualmente, há sete projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, sendo os dois principais o Projeto de Lei n˚ 4.401 de 2021 (originalmente nº 2.303, de 2015) e o Projeto de Lei n˚ 3.825, de 2019, ambos em apreciação no Senado Federal, que podem resultar em uma nova lei nos próximos meses, possibilitando uma maior segurança jurídica para o mercado de criptoativos.
Há de se destacar, ainda, que as leis penais e administrativas vigentes são aplicáveis em casos de ilícitos ou irregularidades envolvendo o uso de criptomoedas. Especialmente sob o aspecto penal, é possível se falar de uma terceira fase do tratamento penal dos criptoativos: o uso de criptomoedas para a prática dos delitos de evasão fiscal, sonegação fiscal e, principalmente, de lavagem de dinheiro. Neste texto tratamos somente da preocupação relacionada com a lavagem de dinheiro, que nos parece a questão mais sensível nos dias atuais, sobretudo para fins de compliance por parte das empresas que atuam com criptomoedas.
Na ausência de regulação específica para a comercialização de criptomoedas, recomenda-se a aplicação analógica de diretrizes, voltadas à prevenção de lavagem de dinheiro para pessoas obrigadas pela Lei de Lavagem de Dinheiro, emitidas pelo Banco Central, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf e pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM (notadamente, a Circular nº 3.978/2020, a Resolução COAF nº 36/2021 e a Resolução CVM nº 50/2021). Essas regulações possuem um ponto em comum bastante relevante: a adoção de uma abordagem baseada em risco como principal ferramenta de governança na prevenção da lavagem de dinheiro.
Com base nessa abordagem, a política de prevenção à lavagem de dinheiro (“Política PLD”) deve ser compatível com o porte e volume das operações de cada empresa e proporcional aos riscos correspondentes. No geral, os principais perfis de risco a serem levados em consideração são (i) dos clientes; (ii) da própria instituição; (iii) dos produtos e serviços fornecidos; e (iv) dos funcionários, parceiros e prestadores de serviços.
Para tanto, é essencial realizar periodicamente uma avaliação interna de risco, bem como de efetividade dos procedimentos implementados no âmbito da Política PLD, a fim de se identificar deficiências e áreas de vulnerabilidade para sua correção.
Um dos principais pilares de uma Política PLD são os procedimentos destinados a conhecer os clientes (comumente chamados de Know Your Client – “KYC”), por meio da coleta, validação e verificação de informações cadastrais daqueles que utilizam seus produtos e serviços. Nesse aspecto, o nível de due diligence (investigação e análise de informações) deve variar de forma proporcional aos perfis de risco dos clientes envolvidos.
Especialmente, os procedimentos de KYC devem incluir: (i) uma avaliação da origem dos recursos investidos, a fim de se identificar uma compatibilidade entre a capacidade financeira do cliente e as operações por ele realizadas; (ii) verificação da condição do cliente como pessoa politicamente exposta, por requerer cuidados específicos em tais hipóteses; e (iii) classificação do cliente em categorias de risco com base em seu perfil e na natureza da relação do negócio.
Com base na legislação atual, não há total clareza se empresas que realizam negócios com criptomoedas integram ou não o rol de pessoas obrigadas da Lei de Lavagem de Dinheiro. Esta é, inclusive, uma das alterações propostas em grande parte dos Projetos de Lei em discussão, a fim de tratar explicitamente do tema no artigo 9º da Lei de Lavagem de Dinheiro . Contudo, é recomendável que essas empresas realizem desde já reporte voluntário de operações suspeitas ao Coaf, quando possível, considerando os termos da legislação e de sua regulamentação.
Essa é uma medida de melhores práticas de mercado que, inclusive, é indicada pela autorregulação do mercado realizada pela Associação Brasileira de Criptoeconomia – ABCripto “sob o ponto de vista da consecução de um mercado seguro e confiável” (veja “Manual de Boas Práticas em Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo para Exchanges Brasileiras”). De acordo com informações do Coaf, algumas criptoexchanges já realizam comunicações voluntárias à autoridade.
Nesse sentido, nota-se, inclusive, que foi disponibilizado um canal específico pelo qual setores não regulados podem encaminhar comunicações ao Coaf (“Outras empresas obrigadas”).
EMBORA SEJA POSSÍVEL ARGUMENTAR QUE AINDA NÃO HÁ REGULAÇÃO ESPECÍFICA APLICÁVEL ÀS CRIPTOMOEDAS, tem se mostrado indispensável a adoção de políticas e procedimentos internos de compliance para a regular e segura atuação de empresas e investidores no segmento de criptomoedas.”