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O arriscado mundo da realidade estendida

Conhecida como realidade estendida ou XR, a tecnologia que transforma a realidade, e que terá diversos usos em várias indústrias, ainda está na fase inicial. Líderes, porém, precisam criar estratégias agora para lidar com os riscos de implementação

Laurence Morvan, Francis Hintermann e Armen Ovanessoff

01 de Outubro

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Artigo O arriscado mundo da realidade estendida

T.S. Eliot escreveu que “a raça humana não pode suportar muita realidade”. Por acaso será mais fácil suportar a realidade estendida, com seus altos riscos e possíveis recompensas?

O desenvolvimento e o uso da realidade estendida, ou XR – um termo abrangente que engloba realidade virtual, realidade aumentada e outras tecnologias que cruzam a linha tênue entre o mundo real e os mundos simulados – alcançaram um ponto de inflexão. A principal função dessas tecnologias não será mais limitada a jogos e outras formas de entretenimento.

Estima-se que os gastos do consumidor com realidade estendida aumentem de US$ 5 bilhões em 2018 para US$ 40 bilhões em 2023, e a indústria irá superar esse teto, passando de US$ 4 bilhões para US$ 121 bilhões nesse mesmo período. Esse investimento será direcionado a diversas inovações, como a capacidade de realizar cirurgia e treinamento remotos, além de aplicativos que aumentarão a produtividade no chão de fábrica.

Como ocorre com outras tecnologias transformadoras como a IA, a implementação rápida da realidade estendida exige vigilância preventiva. Os dados da XR são de cunho pessoal, o que causa preocupação com questões de privacidade e segurança, já que as ferramentas de realidade estendida que fazem conexões diretas com nossas faculdades mentais e percepções da realidade ainda não são compreendidas por completo. Qualquer erro envolvendo essas tecnologias pode resultar em danos aos indivíduos e à sociedade muito difíceis de reverter.

Portanto, há urgência e necessidade de acertar essa implementação desde o início. Como a realidade estendida ainda não é muito utilizada, poucas empresas criaram medidas para evitar, ou pelo menos mitigar, possíveis consequências negativas dessa tecnologia.

Como parte de um projeto de pesquisa com a Aliança de Jovens Empreendedores do G20, a Accenture identificou seis riscos que já devem entrar no radar dos líderes de empresas, que podem criar estratégias para lidar com eles agora, enquanto ainda estão na fase inicial da implementação da realidade estendida.

1. Gerenciando dados pessoais

À medida que avançamos para a próxima fase da realidade estendida, os dados pessoais não incluirão mais apenas números de cartão de crédito, históricos de compras e o que as pessoas curtem ou não em suas redes sociais. Dados pessoais serão tudo o que faz de alguém uma pessoa: sentimentos, comportamentos, julgamentos e aparência física.

Pesquisadores do Institute of Ethics da Dublin City University e do Insight Center for Data Analytics de Dublin estão estudando os efeitos dessas tendências na próxima geração de redes sociais: redes sociais de realidade virtual, ou VRSNs. De acordo com eles, as pessoas serão representadas por avatares que poderão reproduzir tudo o que elas fazem no mundo real de maneira realista. Essas redes reunirão dados biométricos detalhados sobre os traços físicos e emocionais de uma pessoa para recriá-la quase que inteiramente.

  • Considerações principais: É essencial que os dados sejam coletados e gerenciados com responsabilidade. Como que eles serão coletados, armazenados, protegidos e compartilhados? Por exemplo, mesmo quando os dados da realidade estendida não são ligados a um indivíduo em específico, as empresas devem estar cientes que caso alguém cruze esses dados com os de outras fontes, a identidade do indivíduo pode ser revelada. O uso indevido intencional ou não intencional desses dados íntimos deve ser uma questão de prioridade máxima.

2. Experiências falsas

O efeito visual de Tom Hanks apertando a mão de John F. Kennedy e Richard Nixon no filme Forrest Gump, de 1993, exigiu tempo e dinheiro. Mas com a chegada da tecnologia deepfake, é possível colocar a imagem da cabeça de uma pessoa no corpo de outra de maneira fácil e barata. O Project Cloak da Adobe remove objetos ou pessoas dos vídeos digitalmente. As vozes podem ser clonadas a partir de amostras de áudio muito curtas usando programas como Lyrebird ou pelo Deep Voice do Baidu.

Conforme essas tecnologias se multiplicam, qualquer um pode fazer um vídeo falso convincente a fim de exercer influência política ou para algum outro propósito mal-intencionado. Já sabemos qual o impacto das notícias falsas. Em um mundo em que teremos notícias por meio de experiências imersivas em vídeo, imagine como será mais fácil influenciar opiniões e comportamentos com informações falsas.

  • Considerações principais: Toda a força de trabalho, especialmente a de liderança, precisa estar vigilante para impedir que informações falsas sejam disseminadas ou consideradas na hora de tomar decisões. Isso exige recursos cibernéticos, bem como avaliações culturais e de processos para preparar os funcionários para essa nova realidade. Além disso, ataques que usam informações falsas devem ser incluídos nos planos de segurança cibernética, conforme discutido abaixo.

3. Cibersegurança

Assim como acontece com a internet, os smartphones e as redes sociais que o precederam, a realidade estendida acabará atraindo pessoas que exploram pontos vulneráveis em busca de ganhos pessoais.

Quando mais dependermos de tecnologias de realidade estendida para executar tarefas diárias, mais vulneráveis nos tornamos para essas pessoas. Imagine um cirurgião cujo trabalho é interrompido por ransomwares que dizem: “Devolveremos os dados assim que você nos pagar”. Ou quando funcionários em uma plataforma de petróleo ou em uma mina descobrem que o acesso à informação em tempo real foi bloqueado. Esses cenários podem ter consequências desastrosas, e até mesmo fatais.

  • Considerações principais: Ataques mal-intencionados em um ambiente de realidade estendida podem ter consequências de vida ou morte. Instituições precisam de planos de emergências bem desenvolvidos, assim como pessoas especialistas no assunto, para responder imediatamente. Sistemas de backup e planos de contingências não são somente para a equipe de cibersegurança; eles exigem planejamento e ações com toda força de trabalho, assim como já é feito nos exercícios de incêndio e terremoto.

4. Vício em tecnologia

Uma dependência extrema em tecnologia pode prejudicar nossa saúde mental e bem-estar. Já vemos isso hoje com videogames e redes sociais, como é relatado pela Royal Society for Public Health.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a obsessão com videogames é um “distúrbio de games”, e pesquisas indicam que pessoas jovens que usam redes sociais com frequência têm maior probabilidade de relatar problemas com a saúde mental, incluindo distúrbios psicológicos e sintomas de ansiedade. Ademais, o impacto crescente das redes sociais e da cultura de influenciadores pode criar a imagem de um estilo de vida perfeito, resultando na constante comparação, e consequente desespero, dos usuários.

Com experiências imersivas, a diferença entre como sua vida poderia ser e como ela é irá se tornar gritante. Neurocientistas começam a explorar como a exposição prolongada a ambientes virtuais pode afetar a saúde mental e o bem-estar social, incluindo no caso de distúrbios de despersonalização/desrealização e transtorno dissociativo de identidade.

  • Considerações principais: É uma questão de saúde e segurança. Assim como existem formas corretas de desenvolvimento e uso de ferramentas, como uma escada ou uma furadeira, existe o jeito certo de desenvolver e utilizar a realidade estendida. Consumidores (incluindo funcionários) precisam de avisos e instruções adequados, e designers e programadores precisam considerar o impacto do mau uso, seja ele intencional ou não.

5. Comportamento antissocial

Para a maioria das pessoas, é mais difícil ser grosso com uma pessoa ao vivo do que na internet. Mas isso significa que nosso padrão de comportamento aceitável deve cair conforme nossa relação com os outros se torna cada vez mais anônima?

Atualmente, o comportamento antissocial na internet, como a trollagem e o cyberbullying, está fora do controle. De acordo com uma pesquisa do Instituto Ipsos, cerca de 1 a cada 5 pais relatam que seus filhos sofreram cyberbullying.

Imagine uma situação em que uma pessoa passe de mandar mensagens agressivas nas redes sociais para intimidar fisicamente seus alvos em um mundo virtual com um avatar. Agora, imagine o efeito psicológico de várias pessoas intimidando aquela única pessoa. Pior ainda, considere como o comportamento antissocial que é normalizado em um ambiente virtual pode acabar migrando para o mundo real.

  • Considerações principais: Produtores e criadores de realidade estendida precisam ficar atentos. Mal conseguimos lidar com a ascensão do comportamento antissocial, da trollagem e do cyberbullying, quanto mais nos preparar para os efeitos psicológicos e comportamentais profundos da realidade estendida. Existe evidência do efeito Proteus, caso em que comportamentos do mundo virtual infiltram o mundo real. Designers de ambientes virtuais precisam trabalhar com as instituições corretas para acordar sobre quais são as práticas e princípios que devem guiar e reforçar o comportamento aceitável.

6. Aumentando divisões sociais

Quanto mais tempo passamos no mundo virtual “perfeito”, menos tempo passamos no mundo real, onde problemas muito reais existem. Isso faz com que seja mais fácil nos desconectar dos acontecimentos e problemas do mundo real, diminuindo nossas experiências humanas compartilhadas e o senso comum de propósito que nos leva a lidar com esses problemas.

Ambientes virtuais são criados para propósitos específicos, como a educação e o entretenimento. Eles não incluem detalhes aleatórios, irrelevantes ou indesejáveis. Onde está a poluição? A falta de moradia? Alguns aplicativos de realidade estendida podem até substituir o real por imagens de lindas paisagens na janela de um carro, ou atividades divertidas para distrair as crianças durante uma viagem longe. Tudo que se vê é perfeito. Só que não é.

  • Considerações principais: Só agora que a sociedade está pensando em como a internet e as redes sociais transformaram a forma como interagimos uns com os outros e o mundo ao nosso redor. Precisamos examinar com profundidade como queremos que nossos produtos e ambientes de realidade estendida sejam desenvolvidos. No final, orientações e princípios precisam se basear em como essas ferramentas podem enriquecer nossa experiência de vida e nos proteger da divisão social e de possíveis riscos. A questão crucial é: Quem precisa participar dessa conversa junto com desenvolvedores de realidade estendida e líderes corporativos?

Três princípios básicos para orientar a estratégia de liderança

A tecnologia da realidade estendida é uma parte inevitável, poderosa e extremamente valiosa do nosso futuro. Mas com tantos riscos ao bem-estar corporativo, individual e social, líderes precisam agir agora e se preparar.

1. Accountability ampla: A responsabilidade também é de cada um. Pesquisas sobre como a realidade estendida irá interagir com a saúde física e mental do ser humano e afetar comportamentos individuais e sociais irão surgir cada vez mais ao longo dos próximos anos. Mas empresas podem acelerar esse processo ao criar uma cultura de questionamento com bom senso em vez de compliance somente para seguir uma lista de regras.

Tecnólogos terão perguntas relacionadas ao design, desenvolvimento e execução de ferramentas. Equipes de estratégia, marketing e liderança executiva terão perguntas relacionadas à marca e a reputação. Lideranças de compliance e jurídico precisarão entender de questões éticas e processuais em toda a instituição. Lideranças de recursos humanos e pessoal precisarão lidar com questões sobre os funcionários e a cultura organizacional. Empresas vão precisar usar uma abordagem colaborativa para que grupos diferentes entendam e aprendam uns com os outros, e para que suas escolhas e decisões reflitam princípios comuns e uma língua comum.

2. Conhecimento amplo: Não se trata de uma simples decisão de negócio. O conhecimento, a experiência e as habilidades necessárias para desenvolver e implementar as orientações e os princípios corretos para um mundo com tecnologias imersivas não estão em uma única instituição, estão espalhados por toda sociedade.

Por isso que especialistas como neurocientistas, sociólogos, psicólogos e analistas de teorias comportamentais precisam ser consultados sobre decisões que podem afetar o bem-estar do indivíduo ou da sociedade. No mínimo, ter um grupo diversificado de profissionais focados em explorar as implicações da realidade estendida irá proteger as empresas de pensamentos limitados ou estagnados.

3. Imaginação ilimitada: A promessa da colaboração entre humanos e máquinas. A tecnologia da realidade estendida acaba com as restrições de distância, tempo e infraestrutura. Usos incríveis, como cirurgia remota, turismo virtual e entretenimento irão aparecer nas manchetes, mas líderes de empresas precisam manter a mente aberta e pensar em como essas ferramentas podem ser aplicadas para transformar atividades de negócio diárias. Por exemplo, muitos cargos que são vulneráveis com a automação (como os de galpões, em linhas de produção ou no chão de fábrica) têm maior oportunidade de receber atualizações da realidade estendida – transformando esses empregos que estão “em risco” nos empregos do futuro.

A DHL, por exemplo, está usando óculos de realidade aumentada para exibir instruções de seleção e colocação de pedidos para os operadores, o que deixa suas mãos livres e permite que trabalhem de forma mais eficiente. A realidade estendida ajudou a empresa a aumentar a produtividade média em 15% enquanto também aumentava a precisão. Trabalhadores podem melhorar seu julgamento, tomada de decisão, rapidez e precisão, assim se tornando imprescindíveis como colaboradores.

Antes que percebamos, a realidade estendida fará parte de nossas vidas e trabalhos diários. Embora ainda haja muito a aprender sobre os possíveis riscos desse mundo, os líderes empresariais não podem esperar pelo conhecimento perfeito. Agora é hora de agir para enfrentar os riscos de forma proativa.

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Autoria

Laurence Morvan, Francis Hintermann e Armen Ovanessoff

Laurence Morvan (@laurence_morvan) é o líder de responsabilidade social corporativa da Accenture. Francis Hintermann (@francishinterma) é diretor-administrativo global da Accenture Research. Armen Ovanessoff (@armen_ovan) é o principal director da Accenture Research.

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