As dificuldades de uma economia dinâmica dentro de um sistema tributário rígido
As operações com software na década de 90 se davam essencialmente na forma de disquetes e CDs.
Posteriormente, as vendas em meio físico foram substituídas pelos downloads e, mais recentemente, o software passou a ser oferecido na nuvem mediante assinatura – este modelo de negócios ficou conhecido como Software as a Service (SaaS).
Todas essas modalidades envolvem, essencialmente, a licença de um software e deveriam, portanto, receber o mesmo tratamento tributário, correto? Idealmente, sim. Na prática, entretanto, essa premissa não se verifica no cenário brasileiro.
Nosso sistema tributário foi delineado pela Constituição Federal editada em 1988, em um contexto anterior ao boom da internet em que sequer se cogitava a coexistência de modelos de negócios tão diferentes como os de hoje, pautados pela otimização do tempo, valorização do consumidor e pelo compartilhamento de bens, serviços e dados.
À época, imaginava-se a compartimentação do mercado de forma bem simples: indústria, comércio e serviços. Cada um desses setores sofreria a incidência tributária específica.
A Constituição atribuiu aos estados a competência para tributar as operações de circulação de mercadorias e prestação de serviços de comunicação e transporte (interestadual e intermunicipal) pelo ICMS e aos municípios a competência residual para tributar os demais serviços pelo ISS, desde que previstos em uma lista taxativa veiculada por lei complementar.
Essa delimitação de competência trouxe, essencialmente, dois grandes problemas para a tributação das novas atividades da economia digital.
Primeiro, a evolução tecnológica alterou de forma tão significativa a maneira como as empresas vendem bens e prestam serviços que já não há mais clareza quanto à fronteira antes existente entre os setores de comércio (venda de bens físicos sujeita ao ICMS) e serviços (prestação de serviços sujeita ao ISS, com exceção de serviços de comunicação e transporte sujeitos ao ICMS).
As empresas ofertam hoje ao cliente uma solução que congrega uma série de atividades simultâneas e indissociáveis. No caso do SaaS, por exemplo, o licenciamento de software é oferecido juntamente com hosting, serviços de suporte, backup, segurança, etc.
O cliente quer comprar o pacote completo e não apenas o software que antes poderia ser ofertado em meio físico. Neste ponto, inclusive, para dificultar ainda mais a caracterização da operação para fins tributários, o Congresso acabou incluindo na lista de serviços tributáveis pelo ISS o termo “licenciamento de software”. Ou seja, temos de um lado os estados tratando operações com software como venda de bens tributável pelo ICMS e, de outro, municípios tratando as mesmas operações como prestação de serviço tributável pelo ISS.
Segundo, a necessidade de edição de lei complementar para atualizar a lista de serviços tributáveis pelos municípios enrijece o sistema e causa uma série de distorções competitivas.
O Congresso não responde com a velocidade necessária à digitalização da economia, o que resulta em uma lista defasada de serviços tributáveis pelo ISS.
Determinados serviços online hoje amplamente utilizados pela sociedade (como veiculação de publicidade na internet, aplicativos, games, streaming de conteúdo, dentre outros) não tinham base legal para tributação até o começo de 2017.
Diante do vácuo legislativo, estados e municípios avançaram na edição de atos normativos sem amparo legal na tentativa de capturar a receita crescente proveniente dessas novas atividades.
Na prática, não raras vezes as empresas são demandadas tanto por estados quanto por municípios para pagar tributos sobre o mesmo fato e a mesma base de incidência, sendo duplamente oneradas.
De outro lado, como a resposta do Congresso não é dada na mesma velocidade das inovações, em diversas situações empresas não tributam suas atividades pelo ISS ou pelo ICMS simplesmente por conta do modelo de negócios adotado.
Soma-se a tudo isso o fato de que os serviços são tributados pelo ISS a alíquotas diferentes a depender da sua qualificação. Essa qualificação, como já mencionado acima, é cada vez mais difícil de fazer quando se está diante de serviços complexos (especialmente os serviços de nuvem – SaaS, IaaS e PaaS).
O próprio município de São Paulo recentemente reconheceu essa dificuldade e acabou unificando todas as alíquotas aplicáveis a serviços de informática (tais como licenciamento de software, processamento de dados, elaboração de programas de computadores, consultoria em informática e suporte técnico em informática, dentre outros). Para os outros milhares de municípios, todavia, a briga continua.
Na realidade, à época em que a Constituição foi editada, não se imaginava que a evolução tecnológica traria tantas novidades à forma de oferecer bens e serviços e impactaria de forma tão significativa a distribuição de valores nos setores produtivos.
Não se cogitava, inclusive, ter um setor de serviços tão representativo – em 1988, o setor de serviços correspondia a pouco mais de 40% do PIB brasileiro, enquanto hoje os dados mostram que o setor já corresponde a mais de 70% do PIB.
O crescimento significativo do setor de serviços – potencializado com o desenvolvimento de novos modelos de negócios – deslocou parte da receita tributária antes pertencente aos estados para os municípios, aumentando a tensão federativa.
Esta tensão se reflete diretamente no dia a dia das empresas que lidam com o ônus da conformidade e do contencioso, além de trazer enorme insegurança jurídica ao empreendedor.
Imagine uma empresa que desenvolve um produto revolucionário mas que, mesmo contratando os melhores especialistas na área, não consegue montar seu plano de negócios por conta da imprevisibilidade da tributação? E se acrescentarmos a isso o fato de que a adoção de todas as medidas mais conservadoras não elimina as chances de a empresa ter de enfrentar disputas no judiciário e sofrer a aplicação de multas elevadíssimas? Este é o cenário enfrentado hoje pelo empresário brasileiro.
Diante deste contexto, a sociedade discute a aprovação de uma reforma tributária como solução para os conflitos de competência que se intensificaram com a propagação da tecnologia.
Dentre as propostas de reforma que estão em pauta, as que se destacam buscam unificar as bases de incidência tributária e criar um único imposto sobre consumo de bens e serviços (IBS).
Como premissa, o IBS deve incidir sobre base ampla – que não leva em consideração a natureza da atividade ou a denominação a ela atribuída – com uma alíquota única, retirando da empresa a responsabilidade pela classificação da atividade desenvolvida para fins de enquadramento fiscal.
A base ampla associada à alíquota única acabaria com o enquadramento fictício de determinadas operações em tipos tributários para fins de planejamento – tanto dos fiscos quanto dos contribuintes. As empresas ainda ficariam livres para organizar seus negócios de forma mais eficiente.
Criar uma base tributável ampla, que garanta segurança às empresas e efetiva tributação do consumo, é um grande desafio. Para superá-lo, entretanto, é necessário mais do que esforço legislativo para a promoção de uma reforma tributária, é preciso haver uma mudança de paradigma da relação fisco-contribuinte para a criação de um ambiente mais harmonioso e que traga mais segurança para os investimentos.