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Coluna: Cássio Pantaleoni

4 min de leitura

O manto da invisibilidade

Apesar desta época de acelerações contínuas, cada indivíduo deveria dedicar um tempo a se posicionar em relação a “ver para crer” e “crer para ver” – inclusive por causa da Covid-19 e suas teorias da conspiração. Ante a dúvida “algo deve estar errado”, pergunte-se: em qual dos adágios você se enquadra? E por quê?

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Cássio Pantaleoni

10 de Julho

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Artigo O manto da invisibilidade

Aceita-se que tenha sido Anton van Leeuwenhoek (1632-1723) quem primeiro utilizou o microscópio para observar materiais biológicos. Foi a partir de seus estudos que descobrimos a existência de micro-organismos e isso inaugurou uma questão fundamental: haveria no mundo mais do que os olhos alcançam? Diante da imensidão do universo, o que mais pode estar além do alcance da nossa visão ou, quiçá, da nossa percepção? A resposta, por mais abstrata que possa parecer, sempre foi comum entre os nossos mais antigos ancestrais: os deuses.

Para alguns, a ciência está essencialmente comprometida com a incredulidade. O método científico pressupõe o engenho comprobatório. Em grande medida ela é como Tomé, o incrédulo. Um dos discípulos escolhidos por Cristo, ele, diante da Ressurreição, afirmou que precisava ver as chagas de Jesus para se convencer.

Todavia, na própria estrutura psicológica popular, a necessidade de “ver para crer” aparece em circunstâncias muito menos misteriosas. Veja-se, por exemplo, o caso da pandemia decorrente do Covid-19.

Em maio deste ano, um vídeo com o título “Plandemic” (um neologismo para “epidemia planejada”) viralizou ao acenar com a possibilidade de que a pandemia seja apenas uma fraude de proporções mundiais com o propósito de obter lucro pela venda de vacinas. No vídeo, Judy Mikovits, uma bioquímica da University of Virginia, ex-pesquisadora de virologia, fornece supostas “evidências” de que tudo não passaria de uma conspiração.

A argumentação sustentada naquela entrevista partia do pressuposto, como muitos líderes chegaram a acreditar no início, de que se tratava apenas de mais um tipo de gripe, sem consequências mais severas que outras. Não havia evidências de que a letalidade da Covid-19 fosse maior do que as causadas pela gripe comum. Dito de outro modo: “Mostre-me que tem mais vidas sendo ceifadas pelo Covid-19 do que por HIV ou gripe comum que eu passo a acreditar.”

“Encanadores no fim de semana”

O centro desse ceticismo diante da ciência instaura-se a partir da convicção de que “algo deve estar errado”. Quando as teorias ou evidências científicas alcançam o público em geral com algo que contradiz a denominada “sabedoria popular”, a primeira reação se associa muito rapidamente à incredulidade. Mesmo quando as evidências são retumbantes, forçando revisões de crenças tradicionais, um grande contingente ainda reafirmará que algo deve estar errado.

Fato é que o pensamento pós-moderno, em grande medida inaugurado por Nietzsche (que recorre ao relativismo e à impossibilidade de se fundamentar a filosofia em um princípio universal), contagiou – ainda que inadvertidamente – a sociedade do século 21. Tal maneira de pensar fundou as escolas do “viver sem se preocupar”, “esta é a minha verdade”, “tudo tem dois lados” e também inaugurou as vendas dos livros de autoajuda. (Curiosamente, a procura por esse tipo de livro é a procura por alguma verdade além daquela que deveria ser a verdade que já convive com quem procura o livro.)

A própria ciência, que almeja encontrar a lei universal do cosmos, cambaleou por um breve momento quando Heisenberg apresentou a sua Teoria da Incerteza. Porém, ao contrário das crenças instauradas pela sabedoria popular (sabedoria esta que viu, e acreditou somente naquilo que viu), a ciência desafia as suas próprias premissas sem maiores dificuldades, fazendo tudo em nome do conhecimento.

Paradoxalmente, é na sabedoria popular que encontramos a nascente que inunda a crença na existência de Deus ou a dúvida não confessada dos ateus e agnósticos. Mesmo não visto, Deus pode ser assumido como verdade, invertendo o adágio do “ver para crer”, que adquire o modo “crer para ver”.

Toda essa dinâmica que se dá entre a ciência e a psicologia da incredulidade impulsiona o inconsciente coletivo para um modo de pensamento que não salta no que denomino “abismo metafísico” (a investigação que investiga a si mesma). E aqui reside a dificuldade. Não saltar no abismo metafísico define radicalmente a psicologia da incredulidade.

Tanto o “ver para crer” quanto o “crer para ver” precisam ser compreendidos na dimensão da disposição essencial do indivíduo. Pergunte-se: em qual dos adágios você se enquadra? Depois pergunte-se: por que me enquadro nesse e não naquele? Na segunda questão, a grande maioria de nós decai, recusando-se a pensar a respeito – seja por “crer” que esta é uma pergunta cuja resposta é “ora, eu sou assim”, seja por julgar uma pergunta desnecessária, ou ainda por não querer perder tempo com isso quando há coisas mais práticas na vida.

Esse aspecto me faz recordar de uma paródia de Woody Allen (que se definia como ateu) em que, para concluir sua argumentação, ele afirma: “Não somente Deus não existe, como é impossível encontrar um encanador num fim de semana”.

Seja como for, o grande prejuízo do pensamento humano consiste em se render a si mesmo no campo dos juízos das coisas mundanas. Para praticarmos o discernimento diante da pandemia, ou diante de Deus, retirando o manto da invisibilidade, é preciso muito mais do que isso. Mas a época agora é de acelerações contínuas, que tornam o tempo muito caro para investigar aquilo que os olhos não veem.

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Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano.

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