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Coluna: Cássio Pantaleoni

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Pandemia, idolatria e a crise das perspectivas

Este pode ser um bom momento para se dar conta das intenções de fundo dos líderes e para entender os perigos de idealizá-los

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

24 de Abril

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Artigo Pandemia, idolatria e a crise das perspectivas

Contamos histórias. É isso que fazemos ao argumentamos em favor de nossas ideias, nossas crenças, seja de modo rudimentar ou não. A história sempre se funda naquilo que queremos projetar para quem nos escuta e ela acontece, quase que inadvertidamente, enquanto promovemos o encadeamento de hipóteses, fatos, premissas, exemplos, pessoas, datas e outros fatores que dão cor à narrativa. 

Veja, por exemplo, o artigo publicado na New Yorker, no dia 8 de abril. Ali o médico Dhruv Khullar relata a conversa com o motorista do Uber. Ao fazer referência à redução dos trajetos corriqueiros, e ao aumento proporcional de transporte de profissionais da área médica, o motorista acrescenta: “Minha esposa acha que talvez eu não deveria dirigir mais. Mas eu disse a ela: se eu não dirijo, como os médicos irão trabalhar?

O aspecto interessante a notar é que a conversa poderia encerrar com uma sentença simples: “O Uber está basicamente atendendo a médicos”. Contudo, uma resposta direta como esta não possui o mesmo apelo da versão original. Daquele modo, o motorista acrescenta outra personagem – a esposa –, concedendo a ela o caráter de quem se preocupa. Depois, ele destaca o seu modo de pensar (alguém que sabe de sua responsabilidade). Note que, naquele formato, não está mais em foco uma empresa chamada Uber, mas sim uma pessoa que propõe uma hipótese, apresenta um fato, assume uma premissa e envolve outras personagens. É uma resposta muito mais elaborada que se aproxima da história de vida do motorista.

O fato é que gostamos de contar e escutar histórias. Elas nos submetem à experiência imaginária, ilustrando, com uma distinção formal própria, aquilo que se ajusta às nossas convicções ou crenças. As histórias que contamos estão essencialmente comprometidas com a força destas preferências pessoais. É isso que conforma a razão de contá-las desse modo e não daquele outro. 

Entretanto, nem sempre estamos imediatamente a par das motivações que servem aos propósitos de quem relata. Há algo nas histórias que oferece à perspectiva do narrador um salvo-conduto, algo que subtrai a evidência de que aquilo se adequa primeiramente a ele e somente ele. E assim são construídas: como se não houvesse versão alternativa. 

No relato de Khullar sobre o Uber, há muitas interrogações possíveis. Por que o motorista quis ressaltar a sua preocupação com os médicos? Ele queria elogios? E por que ele destaca a opinião contrária da mulher para justificar sua preocupação? Será que ele crê que a mulher não entende o que se passa com ele? Haveria nele um traço depressivo que o assombra diante da possibilidade de ficar sem trabalho, em casa? 

Enfim, a partir desste relato, se quisermos entender a miríade das possíveis motivações para o modo como a narrativa foi construída, precisamos explorar o que denomino intenção de fundo – o que inaugura a disposição de narrar o que o motorista quer narrar, do modo como ele quer narrar, e que sustenta, até o fim, a história que é contada.

Essa intenção de fundo, que está intrinsicamente associada à perspectiva do narrador, é também a intenção que exige a base da história, seu fundamento. Além de exigir o fundamento, apropria-se dele, querendo assim, assim, parecer legítima.

A plataforma Reel, da BBC Global News, publicou um vídeo no último 06 de Abril intitulado “The dangers of idolising successful people”. O argumento principal do vídeo serve muito bem para exemplificar como se estabelecem as intenções de fundo nas histórias que usamos para explicar nossas posições. Um dos exemplos é o enaltecimento do temperamento apaixonado (forte e perfeccionista) de Steve Jobs. Muitos atribuem o sucesso da Apple a esse temperamento de Jobs, idolatrando-o e usando-o como exemplo de como se deve dirigir uma empresa. Porém, ao olharmos o quadro todo, descobrimos que milhares de outros executivos com o mesmo temperamento de Jobs não alcançaram o mesmo sucesso. O vídeo ainda acrescenta a idolatria a Bill Gates e Mark Zuckerberg em função de terem largado a universidade para bem suceder à frente de suas empresas.

Quantas vezes não ouvimos, no ambiente organizacional, pessoas que corroboram as histórias de Jobs, Gates ou Zuckeberg para exemplificar suas insatisfações com as exigências comuns que a cultura do sucesso predica? Não é raro encontrar jovens com a disposição de largar a universidade e basear a sua decisão nas histórias de Gates e Zuckerberg. Como afirmei anteriormente, tais argumentações subtraem evidências que se contrapõe à fundamentação da narrativa. Esquecem que um contingente muito maior de pessoas que não concluíram suas graduações jamais se transformou em Gates ou Zuckerbergs.

No entanto, nossas narrativas, diante de provas em contrário, nos forçam a derivar a intenção de fundo para versões mais complacentes. Não é exatamente uma desistência da perspectiva original. É um ajuste. Diante dos contrapontos, agarrados à nossa intenção original, oferecemos perspectivas alternativas, mas que gravitam em torno da intenção de fundo preliminar, caracterizando o evento inaugural da história (o seu início) ao modo que convenha a nós e a história.

Inconscientemente ou não, a grande maioria daqueles que estão em posição de poder, utiliza-se deste expediente quando confrontados com um argumento que fragiliza o fundamento de suas narrativas. Veja o caso das posições de vários representantes políticos diante da pandemia da Covid-19. Suas teses associam-se rapidamente às suas intenções de fundo. E as histórias que contam sobre este ou aquele fato, que prova isto ou aquilo, são engendradas já de início deixando de fora aquilo que nelas não cabe. 

Isto acontece em razão de que o início de qualquer história usa aspectos preliminares – dados pela intenção de fundo – que se dão ao modo de condições de possibilidade para legitimar a narrativa. Ao decidir por aquele início em detrimento de outro, o narrador deixa algo na sombra, algo que ele não quer assumir para efeito de suas intenções. 

A pandemia que ora nos assusta e nos acua é contada em versões diversas. Tudo o que ouvimos, sobre o vírus e suas consequências, ressoa persuasivamente. Enquanto nos ocupamos com estas narrativas esquecemos de ouvir o ruído branco que ali ecoa, este ruído que não pode ser eliminado por quem narra e que corresponde às suas intenções de fundo.

Houvesse agora tempo para investigar tudo o que movimenta e ocupa os líderes mundiais e descobriríamos que aquilo que mais nos importa não vigora como a intenção de fundo que mais colaboraria para evitar os danos da pandemia. Tantas perspectivas diversas e concorrentes conduzem à crise das perspectivas desnudas de intenções de fundo não comprometidas com aquilo que mais importa – a dignidade. Mas talvez isso seja apenas uma longa frase de efeito ou, quem sabe, um idealismo fora de moda. E, na verdade, se pararmos pra pensar, já é hora de voltar para casa. Ainda dá tempo de escrever uma história que nos convenha.

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Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano.

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