TECNOLOGIA 3 min de leitura

Que filosofia traduz sua visão sobre a inteligência artificial?

O avanço da tecnologia causa uma espécie de miragem que nos torna entusiastas, céticos ou negacionistas. Nesse cenário, para onde devem olhar os negócios?

Cássio Pantaleoni
5 de agosto de 2024
Que filosofia traduz sua visão sobre a inteligência artificial?
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O filósofo alemão Martin Heidegger argumentava que “a essência da tecnologia não é nada tecnológica”. De fato, não haveria tecnologia sem os seres humanos. Pelas vias de sua obra mais tardia, desenvolvi essa ideia de um tipo de miragem que experimentamos quando consideramos o desenvolvimento tecnológico. Mesmo estando no curso de um declive, o que avistamos é a escalada, uma rota de um topo improvável.

Na visão de Heidegger, agora vemos a natureza, e cada vez mais os seres humanos, apenas tecnologicamente, ou seja, como matéria-prima para nosso operar no mundo.

Mas o que isso significará para os negócios?

O fascínio por novas tecnologias é um fenômeno que se entrelaça com os vieses humanos mais comuns. Diante do advento e das possibilidades da inteligência artificial (IA), por exemplo, é possível reconhecer grupos, na grande maioria das organizações e da sociedade, que se posicionam entre os extremos dos entusiasmados e dos céticos. Isso vale para qualquer nível da hierarquia corporativa ou social.

O filósofo alemão Karl Popper já advertia, em 1963, que não devemos aceitar teorias sem rigor científico. O grande problema das teorias diletantes dos integrantes do ecossistema organizacional é que elas encontram muito rapidamente fundamento em nossos vieses.

Não é de se estranhar, portanto, que o tema do momento seja a IA e suas derivadas. Esse degrau tecnológico é, antes de tudo, um novo paradigma. E quando o paradigma muda, todos voltam a zero.

Entusiastas e evangelizadores

Diante dessa circunstância, as reações observadas estão intrinsicamente relacionadas aos nossos sistemas de crenças predominantes.

Considere, por exemplo, o contingente de pessoas com talentos restritos. É fácil compreender como elas se projetam na IA. Muito rapidamente, descobrem a oportunidade de discursar sobre o superficial com a maquiagem da profundidade. E que o mundo dá mais atenção para o índice do que para o conteúdo do livro. 

O mais incrível é que esse comportamento encontra reforço na falta de paciência e de interesse legítimo dos outros. No fundo, é um mundo onde o curso da conversa é conveniente, e qualquer tentativa de reflexão crítica aborrece e a entrecorta. 

Funciona mais ou menos assim: eu finjo que sei e você finge que presta atenção.

Há ainda os entusiastas, os evangelizadores exagerados da “grande mudança”. Eles são facilmente identificáveis por sua visão da tecnologia como um superpoder que está à venda. “Compre-o e você se tornará um semideus.” 

Ouça também o podcast: “O Brasil ainda pode ser líder global em IA?”, com Fernando Martins

No fundo, é um pensamento infantil que alude àquele argumento do grande escritor de ficção científica Arthur C. Clarke: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Esquecem-se, entretanto, de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, arriscando-se a colocar as organizações onde atuam em situações de risco.

Negacionistas e equilibrados

Para os fatalistas, por outro lado, as novas tecnologias são frequentemente vistas através do prisma de suas próprias angústias e medos. Se o paradigma muda, aquilo no que éramos proficientes e hábeis se torna obsoleto. 

Esse grupo assume na sua angústia a negação das boas possibilidades, tornando-se avesso à esperança, como dizia o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855). É uma célula cancerígena para a reinvenção dos negócios – mas ao mesmo tempo, inadvertidamente, uma vacina contra doenças severas.

Mesmo entre o grupo dos equilibrados, que assume a cautela como modo adequado de abordar a IA, há certas intempéries. Apesar de tomarem o argumento da obra “Ética a Nicômaco”, do grego Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) – “A virtude está no meio” – , como base do reconhecimento equânime dos potenciais benefícios e riscos da IA, na verdade flertam com o conservadorismo, o que pode levar à demora, à perda do time-to-market.

O humanismo é mais discurso do que caráter. O que pode servir aos propósitos de uma manipulação sutil em benefício pessoal, ignorando os objetivos do negócio.

Há os humanistas, que abordam a tecnologia com base no seu potencial para contribuir para um mundo mais justo e pacífico. Para as organizações, esses colaboradores aparecem como principais defensores da customer centricity e da customer experience.  

Esse grupo reconhece, tal qual o físico alemão Albert Einstein (1879-1955), que a nossa tecnologia ultrapassou nossa humanidade e que deveríamos direcioná-la para o bem-estar coletivo.  

Porém, na prática, o humanismo é mais discurso do que caráter. O que pode servir aos propósitos de uma manipulação sutil em benefício pessoal, ignorando os objetivos do negócio.

Transformando a crença em negócio

Quando as crenças predominantes no nível dos indivíduos encontram canteiros em tecnologias como a IA, tudo o que ali habita é tido como um novo tipo de matéria-prima para a economia. 

Não importa se você é entusiasta, fatalista, equilibrado/a ou humanista. Em escala global, cada grupo compra e vende o que mais se ajusta às suas crenças. Com a artificialização adequada, temos sempre a possibilidade de um “bom”negócio.

É dessa forma que o acréscimo de realidades artificiais, servis aos propósitos diversos, como à própria inteligência, desabita gradualmente o humano do mundo. De certo modo, desautoriza-o. Em larga medida, é a comoditização de tudo, é um achatamento geral das estruturas socioeconômicas.

Ao empregarmos esforços para objetificar os humanos e dar à IA habilidades de atender às nossas necessidades na maior velocidade possível, deixamos de entender seu verdadeiro valor.

A verdadeira evolução

Tal como a pedra lascada, a agricultura, a luz elétrica, a revolução industrial, o telégrafo, as ferrovias, o telefone, o avião, o computador pessoal, a internet, o celular e o blockchain, entre outros, a IA tem o poder de firmar o próximo passo de nossa evolução tecnológica, nunca de nossa evolução humana. A evolução humana reside no aprimoramento ético, não na tecnologia.

Esse é o verdadeiro aclive para o qual devemos voltar a nossa atenção, pois a essência da tecnologia é ser apenas mais um traço da expressão fenotípica de nossa espécie. Ela é parte integrante da dinâmica humana, influenciando o nosso futuro tanto para o bem como para o mal. O resto é declínio.

Para os negócios, isso significa voltarmos os olhos para aquilo que é realmente essencial: a sustentabilidade da dinâmica social no patamar da ética e do respeito. Pois lá nos mundos e fundos da IA, no seu andar mais baixo, ali onde aparece o improvável cume, habita o marasmo miserável e deprimente da insignificância. 

Bem aventurada seja a inteligência artificial no mundo em que prevalecem a ética e o respeito no seu modo mais humano de expressão.

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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