O acompanhamento filosófico tem ganhado adeptos no mundo todo e ajuda líderes a enfrentar seus maiores dilemas éticos – profissionais ou pessoais
Recentemente tornou-se bastante comum (e charmosa) a ideia de que a filosofia tem algo a dizer sobre os dilemas mais agudos das organizações e de seus líderes. Em tempos de aceleração tecnológica extrema, o que mais se ouve em conversas no escritório são expressões de dúvida, estranhamento e perplexidade.
No subtexto há uma profunda suspeita de que as coisas podem estar escapando ao controle de maneiras insuspeitas. Há dilemas de ordem ética e existencial que os grandes executivos não podem declarar abertamente, mas que são de profundo impacto pessoal.
Não é de se estranhar que um crescente interesse sobre conversas mais profundas se reflita também nas estatísticas de mecanismos de busca. A procura por temas como “estoicismo para paz interna” aumentou mais de 4.500% no YouTube em dois anos. Um tema mais complexo – a consciência, provavelmente puxado pela IA – cresceu impressionantes 800% em 12 meses.
Que há um sofrimento real e genuíno é consenso. Uma pesquisa da psicóloga Maria Giulise, da Fundação Dom Cabral, traz constatações reveladoras: “parte dos presidentes das 500 maiores empresas no Brasil vive uma situação paradoxal, pois embora sinta orgulho de ter atingido o posto máximo, a grande maioria experimenta enorme frustração pelo adiamento, por tempo indeterminado, de projetos e sonhos pessoais”.
A procura por temas como “estoicismo para paz interna” aumentou mais de 4.500% no YouTube em dois anos.
Giulise afirma que, “distanciados de si e premidos por um script politicamente correto, esses profissionais sofrem com os sentimentos subjacentes à dissonância que existe entre o discurso proferido e a prática possível”. E vai além. Ela revela também o medo de serem destituídos da posição que ocupam e de perder seu poder e visibilidade – o que é um fator de pressão para que eles evitem manifestar oposição ao establishment.
Esse relatos, feitos em sigilo, trazem dor e cansaço, mostrando como pode ser doloroso, solitário e frustrante não lidar com tais temas de uma maneira franca, por medo de perder seu status. “Às vezes temos que ir contra o que consideramos adequado para não gerarmos conflitos, mais pressões políticas ou perdermos posição”, revelou um dos 40 entrevistados em recente pesquisa.
A essas situações de perda de sentido e medo as respostas costumam ser duas: religião ou psicoterapia. A primeira tem uma determinada validação social que a segunda só recentemente vem conquistando. Entretanto, de um líder empresarial, quando em seu espaço de fé, muitas vezes espera-se que siga se comportando como um pilar da comunidade, com pouco espaço para suas questões pessoais. O que restaria então ao líder como alternativa de elaboração individual seria o consultório do psicólogo ou do analista.
Mas muitos C-levels não gostam dessa opção. Há muito receio de se colocar em uma exposição de vulnerabilidade, ainda que eticamente controlada. A própria subjetividade intrínseca ao processo psicológico desafia a paciência e o tempo escassos.
Por último, mas não menos importante, o perfil esmagadoramente racional e sofisticado dessa elite de profissionais pode não ser atendido por nenhuma das duas opções acima. Há uma terceira possibilidade, que propõe uma abordagem mais racional, em que a compaixão é aliada a um certo distanciamento mais lógico – e que faria sentido para CEOs e altas lideranças que enfrentam dilemas coletivos pesados e desafios íntimos.
Chamada de “terapia para sãos”, o aconselhamento filosófico, um movimento internacional crescente, tem buscado ajudar indivíduos racionais e mentalmente saudáveis a esclarecer suas visões de mundo e objetivos diante de desafios e transições.
A terapia filosófica emerge como uma ferramenta inovadora para profissionais que enfrentam desafios complexos, que jogam com grandes dilemas profissionais e pessoais nas arenas públicas e privadas.
Além dos fundamentos filosóficos, as conversas elaboradas por filósofos (que muitas vezes também são empreendedores) oferecem insights valiosos sobre as dinâmicas de poder nas organizações, complementando a compreensão dos desafios enfrentados por esses líderes empresariais de uma maneira mais ampla.
Quando se fala em aconselhamento filosófico há alguns grandes grupos de temas que são recorrentes nessas partilhas:
A ética na liderança corporativa é um tema quase obsessivo de tão necessário no ambiente empresarial – e também é central na filosofia. CEOs, como pilares de suas organizações, são confrontados com decisões que vão além dos resultados financeiros. Nas conversas são trazidas questões que filósofos como Emmanuel Lévinas e Hannah Arendt aprofundaram, pensando na responsabilidade ética e na moralidade em contextos de poder, algo que ressoa profundamente com os desafios enfrentados pelos líderes e que expressa dilemas morais profundos.
A terapia filosófica ajuda os CEOs e líderes a alinhar suas ações com valores éticos, evitando, por exemplo, a armadilha do “mal banal” descrito por Arendt (em que as decisões são tomadas sem consideração adequada das consequências humanas).
Já com Michel Foucault busca-se o entendimento contemporâneo de como o poder é exercido nas organizações. Foucault argumenta que o poder não é apenas coercitivo, mas também produtivo, moldando as subjetividades e práticas dentro de uma organização. Compreender essas dinâmicas leva a decisões mais éticas e informadas, evitando o uso arbitrário do poder e promovendo uma cultura de transparência e responsabilidade.
A liderança reflexiva, inspirada por conceitos filosóficos, promove uma introspecção que desafia as suposições e preconceitos dos líderes, bem como suas aflições mais íntimas. Kierkegaard, Camus e Heidegger, por exemplo, exploraram a ideia da “angústia” como um catalisador para o autoconhecimento e a autenticidade.
Essa introspecção pode resultar em agir mais autêntico, com decisões baseadas não apenas em pragmatismo, mas também em uma compreensão mais profunda do impacto de suas ações no longo prazo em vários campos da vida pessoal.
Líderes que entendem a lógica do capital simbólico também podem navegar melhor nas expectativas e normas culturais, questionando e redefinindo as práticas estabelecidas. Isso não só melhora a eficácia mas também promove uma cultura organizacional mais inclusiva e adaptativa.
A filosofia, desde os tempos de Epicteto e dos estoicos, tem lidado com a complexidade e a incerteza da existência humana. Em tempos malucos como os nossos, as lideranças enfrentam níveis elevados de estresse e ambiguidade em suas funções. A terapia filosófica, ao abordar questões sobre o sentido da vida e comportamentos de luta ou aceitação, ganhos e perdas possíveis, oferece ferramentas para que os líderes gerenciem essas pressões internas de maneira mais eficaz.
Recorrendo aos questionamentos e ideias de grandes pensadores filosóficos, os líderes podem não apenas melhorar sua vida interior e tomada de decisões mas também cultivar uma cultura organizacional que valorize a ética, a introspecção e a sustentabilidade a longo prazo.
Em um mundo onde a complexidade e a ambiguidade são a norma, a filosofia oferece um caminho para a clareza e a sabedoria. É um conjunto poderoso de perguntas e aprofundamento que usa lógica e argumentação para que, muito mais além de obtenção de conhecimento, questões profundamente pessoais também possam ser atendidas.
NOSSO MUNDO NÃO PRECISA somente de homens e mulheres que dominem técnicas, funções e processos. Precisamos entender que a ação gerencial também é uma prática relacional, reflexiva e moral profundamente pessoal. Precisamos nos dar conta de que nenhumas dessas questões é nova e de que é necessário batalhar contra a tendência de evitar a baixa reflexão humana, sob o argumento de que essa não é “prática”.
Afinal, tudo é questão de quem somos e como nos relacionamos com as outras pessoas. A experiência corporativa não é apenas formada por sua dimensão racional e econômica mas também por dúvidas, questionamentos, afetos e relações humanas milenares. Assim se dá a construção de seres humanos e sociedades saudáveis.
Arendt, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
Lévinas, Emmanuel. Totalidade e Infinito: Ensaio sobre a Exterioridade. Lisboa: Edições 70, 1980.
Kierkegaard, Søren. O Conceito de Angústia. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2012.
Foucault, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Epicteto. Manual de Epicteto. São Paulo: Martin Claret, 2011.
Giudice?
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