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Sobre carros elétricos, bilionários e o Brasil

No contexto da descarbonização do setor de transportes o nosso desafio consiste em posicionar a indústria brasileira nas cadeias produtivas globais associadas à manufatura de carros elétricos. Não podemos perder essa oportunidade

Carlos de Mathias Martins
30 de julho de 2024
Sobre carros elétricos, bilionários e o Brasil
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Nas últimas semanas, as manchetes da grande imprensa têm falado muito do multibilionário Elon Musk – seja de sua proposta para aquisição do Twitter, rede social que, em minha humilde opinião, serve majoritariamente como microblog para desocupados, seja sobre o fato de ele querer todos os funcionários trabalhando presencialmente, seja de seu interesse pela Amazônia e a tranaformação digital das escolas brasileiras. Eu gostaria de falar sobre seus carros elétricos num mercado como o Brasil.

Mas, antes de fazê-lo, peço licença ao leitor para fazer uma breve divagação – quem me lê costumeiramente estranharia a ausência desse exercício, afinal.

Leis da robótica

O empresário sul-africano aparentemente suspendeu o processo de compra do Twitter até que a administração da empresa de mídia consiga explicar uma (eventual) discrepância no número alegado de perfis falsos e usuários robôs registrados na plataforma. Devo dizer que essa hesitação de Musk demonstra seu total desconhecimento das leis da robótica formuladas pelo americano de origem soviética Isaac Asimov. Em 1942, Asimov, escritor reverenciado como o mestre da ficção científica, propôs três princípios norteadores da relação entre humanos e robôs:

1ª Lei da robótica: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.- 2ª Lei da robótica: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.- 3ª Lei da robótica: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda Lei.

Em um conto de 1950, Asimov acrescentou a Lei Zero, que prevaleceria acima de todas as outras: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.

Na boa, não sei por que os advogados do Twitter não invocam o cumprimento dessas leis para obrigar Elon Musk a fazer logo o pix e fechar a transação. Afinal, robôs podem ser bem mais legais do que alguns usuários humanos das redes sociais. Ou todo esse movimento do dono da Tesla pode ser simplesmente uma cortina de fumaça para esconder a real motivação de Musk.

De uma maneira geral, os críticos à investida de Musk argumentam que o maior acionista da fabricante de automóveis elétricos Tesla irá transformar o Twitter em um ambiente tóxico, um covidário de haters repleto de fake news com efeitos desastrosos para a sociedade americana e mundial – em nome daliberdade de expressão. A agência de notícias Lupa, por exemplo, publicou em sua página nas mídias sociais que a liberdade de mentir vale US$ 44 bi para Musk, em referência ao preço ofertado aos acionistas do Twitter pelo magnata dos carros elétricos. Não tenho como checar a apuração de uma agência de checagem tal como a Lupa, mas a mim me parece que Elon Musk teria acesso a maneiras mais baratas para contar lorotas.

Subsidiariamente a essa discussão, políticos, professores de ciências sociais, jornalistas e desocupados debatem a premência da eventual extinção em massa dos bilionários. Igualmente, não tenho estofo intelectual para participar do debate sobre a abolição dos bilionários, mas reconheço a legítima indignação daqueles que, como eu, não têm a conta bancária para comprar uma empresa inteira com o objetivo de simplesmente consertá-la. De minha parte, eu seria um bilionário afeito a caprichos mais mundanos e usaria meu dinheiro para comprar a arena do Corinthians e mandar consertar o painel de iluminação de led que está queimado faz tempo.

Mas, como você já sabe, eu divago. Vamos ao que interessa.

Carros elétricos e o Brasil

Existe uma disputa na qual o multibilionário CEO da Tesla está em desvantagem, no entanto: o mercado de veículos elétricos no Brasil. É fato que a eletrificação da frota de veículos leves é uma solução de médio prazo para a descarbonização do setor de transportes de países ricos. A Noruega, por exemplo, comprometeu-se em abolir os carros a combustão interna até 2025, enquanto a maioria dos países europeus, o Canadá, a China e o Japão estabeleceram prazos mais dilatados, entre 2030 e 2040. Nos EUA, 12 estados firmaram metas de eletrificação da matriz de transporte para os próximos 5 a 10 anos. É fato também que países em desenvolvimento não têm dinheiro para subsidiar carros elétricos, em geral mais caros do que veículos a combustão interna. Brasil e Índia por sua vez não apresentaram até o momento nenhum compromisso de abolir veículos a gasolina.

Ocorre que existe um detalhe muitas vezes subestimado no debate sobre a substituição de veículos a gasolina por veículos elétricos: as emissões de gases de efeito estufa (GEEs) no ciclo de vida completo do automóvel. No jargão dos protocolos de cálculo de inventário de carbono de produtos, as emissões de GEEs são contabilizadas do berço ao túmulo do veículo. Para autos elétricos, este processo inclui a mineração de lítio – material utilizado na fabricação das baterias – atividade bastante intensiva em emissões de carbono.

Resumidamente, um veículo elétrico rodando nas ruas ou nas estradas emite muito pouco GEE ante um veículo a gasolina, mas o mesmo não se verifica quando considerada a vida útil de ambos os tipos de veículos. Um estudo da montadora de automóveis Volvo publicado originalmente em meados de 2020 e atualizado no final do ano passado, apresenta a comparação entre as emissões totais de GEEs durante a vida útil do modelo XC40 elétrico e o mesmo XC40 com motor a gasolina.

Basicamente, um XC40 a gasolina rodando no continente europeu ou nos EUA precisa percorrer na média mais de 100 mil quilômetros para alcançar o volume acumulado de emissões de GEEs da fabricação do modelo elétrico. Ou seja, assumindo que o automóvel irá rodar 10 mil quilômetros por ano, o breakeven de emissões de GEEs entre veículo a combustão e veículo elétrico se verifica em aproximadamente 10 anos de uso.

Uma década representa definitivamente muito tempo para a urgência climática em que vivemos, por mais que a expectativa da indústria automobilística seja a de reduzir exponencialmente a intensidade de carbono dos veículos elétricos no médio prazo. A descarbonização da matriz de transportes depende também da descarbonização da matriz elétrica que abastece os veículos elétricos.

Obviamente não faz sentido rodar um carro elétrico abastecido por uma térmica a carvão. Vale registrar que existem estudos acadêmicos disputando a acurácia da análise do ciclo de vida de automóveis elétricos ante veículos a gasolina. Porém, a razão pela qual eu aceito como verdadeiro o estudo da Volvo é muito simples: a empresa demonstra que o produto que ela fabrica não funciona.

Explico: o Volvo XC40 elétrico é vendido como uma solução para reduzir emissões de GEEs no transporte. Mas na verdade, os benefícios climáticos do Volvo elétrico demoram muito tempo para aparecer. Reitero que para países ricos a eletrificação da matriz de transportes é a solução de médio prazo, mas no curto prazo carros elétricos aumentam as emissões de GEEs.

Independentemente dos resultados da análise do ciclo de vida de carros elétricos e não obstante uma revolução tecnológica na fabricação de baterias, este debate não faz sentido para a indústria brasileira. O Brasil é o país da fotossíntese, e sem desmatamento, na transição da indústria automobilística para veículos de baixa emissão, já temos a solução dos combustíveis renováveis tal como o etanol, o biometano e o biodiesel. No médio prazo, veículos elétricos terão espaço na nossa matriz de transporte mas para uso específico e limitado.

Na realidade, no contexto da descarbonização do setor de transportes o nosso desafio consiste em posicionar a indústria brasileira nas cadeias produtivas globais associadas à manufatura de carros elétricos. Dado que a matriz energética brasileira apresenta baixa intensidade de carbono, a teoria econômica das vantagens comparativas formulada pelo inglês David Ricardo dessa vez joga do nosso lado. Não podemos perder essa oportunidade.”

Carlos de Mathias Martins
Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com MBA em finanças pela Columbia University. É empreendedor focado em cleantech.

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