Estamos cansados de viver solitários e pela metade na sociedade do cansaço; precisamos retomar o sentimento e a prática da pertença, da inclusão humana
“Deixem-me iniciar este artigo com uma declaração óbvia e já repetida em centenas de outros textos: a pandemia acelerou a transformação digital. Agora permitam-me acrescentar algo que deriva de tal afirmação: a transformação digital acelerou a descoberta da nossa solidão.
Torna-se impossível iniciar um texto com uma declaração tão forte quanto esse sem correr o risco de ser mal interpretado de modo monumental. Ora, sou um profissional de tecnologia e compreendo o valor transformador que ela traz aos negócios. Compreendo ainda que a transformação digital se tornou imperativa para qualquer organização que vise a perenidade. Então, como eu poderia jogar contra a transformação digital, julgá-la de algum modo negativo?
Ora, tal percepção se dá pelo olhar apressado e pela interpretação parcial do que afirmo aqui.
Vivemos a época em que as expectativas se sobrepõem à realidade. A expressão “impossível” se tornou sinônimo de pessimismo. Afinal, estamos diante da revolução digital, dos algoritmos de inteligência artificial, de recursos de machine learning, da conexão entre dispositivos e humanos, da internet das coisas, da computação quântica.
Toda a revolução alude ao novo, à quebra de paradigma, ao disruptivo. Para alguns, é ameaça; para outros, salvação. A pandemia trouxe ao nosso microscópio a ameaça do vírus e, concomitantemente, trouxe ao nosso telescópio o horizonte onde é possível ver a sobrevivência de nosso modelo econômico, a suposta salvação da economia.
O paradoxo, entretanto, acontece do seguinte modo: estamos ameaçados pela possibilidade do contágio e a consequente necessidade da reclusão, internação, intubação, oxigênio e vacina. Ameaçados pela falta de leitos, pela falta de médicos, pela falta de conhecimento sobre as sequelas da doença, sobre a falta de previsão de como e onde o vírus sofrerá alguma mutação.
No Brasil, desde março de 2019, muitos profissionais foram orientados a trabalhar em home office exatamente em função de tantas ameaças. Para grande parte da força de trabalho, isso foi saudado como bênção: afinal, não precisávamos mais enfrentar o trânsito, pensar o guarda-roupas cotidiano, comer nos mesmos restaurantes de sempre, ficar longe da família, etc.
Havia o problema do convívio social, mas temos a banda larga e o wi-fi, logo podemos falar com todos pela telinha do computador. Aparentemente, diante da ameaça havia a possibilidade de irmos, tal qual Proust escreveu entre 1908 e 1909, em busca do tempo perdido.
Empenhados em fazer valer a tônica do romance de Proust, muitos de nós pretendíamos dar, assim, vazão às nossas potencialidades artísticas: música, dança, culinária, pintura, poesia, etc. Outros, encontrariam tempo para os esportes: corrida, musculação, yoga, etc. Tudo em regime fechado, no interior de seus domínios domésticos. Uma dádiva.
Entretanto, a ameaça que inicialmente nos colocou em lockdown não nos abandonou. Ao longo de todo esse período, ela continua aí, à solta, incontida. Estamos cansados de viver pela metade. Tal qual Sísifo, empurramos a pedra montanha acima todos os dias, com a esperança de que enfim atingiremos o topo e nos livraremos da ameaça da covid-19. Contudo, a pedra caprichosamente rola montanha abaixo, e tudo o que nos resta é empurrá-la novamente no dia seguinte na mesma montanha.
Acrescentemos nessa ameaça persistente outro tempero: o controle que se estabeleceu inadvertidamente sobre a nossa disponibilidade virtual. Esse controle está imposto através das sucessivas reuniões que oprimem até mesmo nossas necessidades biológicas. E tudo isso ocorre porque não podemos sucumbir à falta de resultados em uma situação econômica tão incerta.
Percebo como isso tem nos afetados. Nas inúmeras reuniões virtuais que faço com clientes ou parceiros de negócio, percebo, no semblante de muitos, esse cansaço, esse burnout iminente. Como bem descreveu o filósofo Byung-Chul Han, no ensaio “Sociedade do Cansaço”, o pedágio que estamos pagando é a depressão e o déficit de atenção.
Estamos, sim, à beira de um colapso psicológico sem precedentes. E cabe às empresas orientar suas lideranças para lidar com tudo isso com muita empatia.
Reflita por um instante: o que você está fazendo para dar sustentação psicológica aos seus colegas, aos seus times, aos seus colaboradores? Escuto relatos interessantes. Há aqueles que reservam uma hora por semana para falar de outras coisas que não sobre as demandas profissionais. Há quem, sem razão alguma, envia à casa dos membros do seu time algum item incomum: ingredientes para um prato especial, um vinho raro, uma caixa de brinquedos, um saco de café especial. Há muito sendo feito.
Contudo, creio que há algo de muito maior valia disponível: a nossa legítima atenção. Em todas as conversas que tenho com a minha equipe ou com membros de outras equipes, não busco forçar situações de descontração.
Na verdade, presto muita atenção no “movimento das águas”. Daquilo que vem à tona, exploro em mim a alegria de ver o milagre do ser humano acontecendo à minha frente, e aquilato, com essa alegria, um detalhe que, em outros momentos, passaria despercebido.
Vejam, é algo muito simples. Há elogios que esquecemos de dar. Elogios legítimos. Não aquele elogio que visa motivar o outro, mas antes o reconhecimento de um valor merecedor de destaque. É como olhar para o mesmo horizonte todos os dias e perceber que, a cada dia, o sol nasce em um ângulo minimamente diferente.
E há ainda a questão da inclusão. Quantas vezes alguém está querendo falar no ambiente virtual e simplesmente ignoramos aquilo como se fosse um simples ruído de fundo? Não. Não podemos ignorar quem quer falar. E não podemos encurtar a fala deliberadamente por conta de nossa ansiedade em “chegar à alguma conclusão”.
Não quero dizer que devemos deixar tudo às soltas, mas é preciso pensar nisso como uma dança, sentir o movimento do outro para que possamos nos movimentar na direção do que garante a beleza do movimento.
Por quê? A resposta é bastante simples. A pandemia, com suas ameaças cotidianas, com a imposição do distanciamento social, com a virtualização dos relacionamentos, com a plastificação do afeto, enfatiza a nossa solidão. Solidão que a cultura da conveniência – convertida em diferencial competitivo pelas vias da transformação digital – já era sentida muito antes de qualquer pandemia.
Não há destino pior para um animal social do que a solidão em meio à multidão. E quando essa multidão é apenas a resolução gráfica de milhares de megapixels da tela de um dispositivo, a solidão é maior ainda.
A transformação digital não é uma vilania, mas antes a possibilidade de nos reencontrarmos com a dimensão humana. Como desde os primórdios da espécie homo, reunidos em torno das histórias, aprendemos que a escuta nos dá o poder de nos sentirmos incluídos, o sentimento de pertencimento.
Em síntese, é preciso resgatar o sentido de pertencimento, identificando na transformação digital não algo incontornável, mas sim mais um adereço de nossas fantasias. A realidade é bem mais humana.
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