O cuidado pode ser compreendido como um sinal de alerta e ao mesmo tempo um chamado para cuidarmos de nós e de outras pessoas. E quando o mal-estar é coletivo e contagioso, a resposta nunca será apenas um curativo individual
“Cuidado. Já pensou sobre o significado dessa palavra? Ou melhor, significados, porque são eles que nos permitem uma primeira reflexão. Cuidado pode ser interjeição, nos advertindo sobre algo que precisamos ter cautela e prudência, ou pode também ser a atenção que se dedica a algo ou a alguém. Esses sentidos podem estar totalmente desconectados um do outro, mas prefiro pensar que eles se complementam. Como se o primeiro passo para cuidar de qualquer coisa fosse um estado de alerta, vigiar os sinais do nosso tempo. E que sinais seriam esses?
Estamos adoecendo. Os sinais estão aí, para todo mundo ver. Remédios, agendas de terapeutas lotadas, crises e doenças de ordem mental. O filósofo coreano Byung-Chul Han afirma que estamos coletivamente sofrendo de hiperconexão. O tempo todo ligados a tudo, acelerados por estímulos e atividades, sem intervalo, sem pausas e, por consequência, esgotados. Esgotados e carentes. Precisando de colo e atenção. Entretanto, quando todo mundo precisa de colo, quem pode oferecer? Num hospital em que todos são pacientes, como encontrar a cura?
De acordo com pesquisa da MindMiners, 43% das pessoas afirmam cuidarem de si mesmas sozinhas. A busca por autocuidado no Google está no seu nível mais alto nos últimos 12 meses. Virou tema de conversa em família, trocas de experiências entre amigos e uma série de novos hábitos.
Rotina de skincare, aula ou app de meditação, spa, terapia virtual, etc. Toda semana um novo produto é lançado para que as pessoas sejam capazes de cuidar de si mesmas. Hora de dizer: cuidado, porque é aí que mora o perigo.
Quando foi que autocuidado virou sinônimo de app e produto para a pele? Arrisco dizer que a resposta de Ailton Krenak seria algo sobre a obviedade dos “seres do consumo” transformarem tudo em mercadoria. E o sociólogo francês Gilles Lipovetsky certamente concordaria com ele, acrescentando que na sociedade do hiperindividualismo, a obsessão por saúde e a ascensão do ímpeto de cuidar de si é apenas mais uma manifestação. O anseio pela leveza do bem-estar nos leva às compras. Queremos comprar a nossa própria cura.
Acontece que quando o mal-estar é coletivo e contagioso, a resposta nunca será apenas um curativo individual. E nem se encontra em prateleiras. É preciso cuidar de si, mas é preciso se atentar ao outro.
Outro dia, ouvi em um podcast o psicanalista Lucas Liedke dizer que o circuito pulsional completo do cuidado passa por três dimensões. A primeira é cuidar de si mesmo, a segunda é cuidar do outro e a última é saber receber cuidado.
Vamos começar então olhando para nós mesmos. Em artigo para o The New York Times, Adam Grant afirma que estamos experimentando um novo mal nesses tempos pandêmicos: o definhamento. Termo cunhado pelo psicólogo e sociólogo Corey Keyes para definir um estado intermediário, de pessoas que não estão nem deprimidas, nem prosperando. Uma sensação de vazio e estagnação, acompanhadas de ausência de bem-estar.
Para uma condição com tal profundidade, não há solução cosmética. Segundo Grant, o antídoto do definhamento é trabalho significativo, novos desafios e experiências agradáveis. Três ações, num primeiro momento individuais, mas que inevitavelmente envolvem relacionamentos com outras pessoas. E aí podemos partir para uma próxima dimensão – para se cuidar é preciso cuidar de alguém. Não existe saúde mental individual sem atenção à lógica coletiva.
Por isso, dentro das organizações o cuidado precisa ser cultivado no plural. Assim como o definhamento, o burnout – que é preocupação na agenda da maioria das empresas – é também sobre o ambiente de trabalho. Aliás, já existem estudos científicos demonstrando que quando os programas de saúde e bem-estar tem foco apenas nos aspectos individuais, o resultado parece imediatamente bom, mas irrelevante a longo prazo. Daí a importância de nutrir ambientes seguros, fundamentais para a saúde das pessoas e também para a inovação e criatividade. Se você já ouviu falar em segurança psicológica, é exatamente sobre isso.
Amy Edmondson, professora da Harvard Business School, define segurança psicológica como um clima de confiança interpessoal e respeito mútuo, que cria um ambiente em que as pessoas se sentem à vontade de serem elas mesmas, sentem que podem assumir riscos e serem vulneráveis na frente das outras pessoas.
Um ambiente corporativo seguro não apenas nos permite fechar a tríade de cuidado proposta pelo psicanalista Lucas Liedke – cuidado de si, cuidado dos outros e saber receber cuidado – como também é um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento de times de sucesso, segundo o projeto Aristóteles da Google.
Foi pensando em tudo isso que criamos na ThoughtWorks Brasil o Programa Cuidado. E olha, tem sido um grande aprendizado ressignificar essa palavra no dia a dia, compreendendo sua dualidade: nos indicando a necessidade de estarmos alertas e, ao mesmo tempo, dedicando atenção a nós mesmos e às outras pessoas.
A prática do cuidado é uma combinação de compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança, como bem já disse Bell Hooks. É também uma lente estratégica para as organizações e a ênfase é no coletivo.
Estamos vivendo no nosso limite. No entanto, precisamos nos lembrar que existem poucas coisas que ao dar também recebemos, duas delas são: o cuidado e um abraço.
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