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Uso da tecnologia nas eleições: democracia ou censura?

Justiça tem promovido ajustes na divulgação de conteúdo eleitoral e no tratamento de dados pessoais de cidadãos frente ao uso de ferramentas tecnológicas

André Zonaro Giacchetta
18 de junho de 2024
Uso da tecnologia nas eleições: democracia ou censura?
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O avanço da tecnologia tem trazido grandes benefícios não somente para a criação de novos modelos de negócios, novas atividades empresariais até então desconhecidas e acelerado exponencialmente a transformação digital de grandes corporações. Esse avanço também tem influenciado o cenário político e, mais especificamente, a forma de interação entre partidos, candidatos e coligações com seus potenciais eleitores.

Na interatividade com os eleitores, que também são usuários de plataformas de tecnologia, essa transformação tecnológica trouxe, indubitavelmente, uma enorme contribuição para a democratização do acesso de muitas pessoas ao conhecimento e informação necessários para o exercício da democracia por meio do voto. Deu espaço e palanque para muitos que não tinham voz ou mesmo não poderiam arcar com investimentos relevantes para a divulgação de suas atividades.

Ao mesmo tempo, tornou-se objeto de preocupação e atenção pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entidade de regulação das regras eleitorais no Brasil, tendo em vista a possibilidade do uso abusivo de ferramentas tecnológicas com o objetivo de se obter vantagem indevida no processo eleitoral. Por essas razões, o TSE, assim como o próprio poder legislativo, vem, nos últimos anos, editando regras balizadores do uso da tecnologia como ferramenta para a realização de propaganda eleitoral, especialmente na internet.

Mas não é só a propaganda eleitoral na internet que despertou a atenção do TSE. O fenômeno comunicacional conhecido por fake news trouxe impactos irreversíveis e profundos na própria estrutura de comunicação entre partidos e candidatos com seus potenciais eleitores. Porém, é ainda mais abrangente, pois modificou o relacionamento interpessoal da nossa sociedade.

Ajuste das regras eleitorais aos desafios contemporâneos

Um dos reflexos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4650, proferida em 2015, que restringiu as contribuições privadas em campanha eleitoral às doações por pessoas físicas e aos recursos próprios dos candidatos, foi a necessidade de se criar não apenas mecanismos para facilitar a arrecadação de recursos financeiros, mas também formas efetivas de se reduzir os custos das campanhas eleitorais.

A redução do tempo e do custo das campanhas – lembrando que as eleições no Brasil são as mais caras do mundo –, trazida com a minirreforma da Lei 13.165/2015, foi um importante passo nesse sentido, mas não foi suficiente para ajustar as regras eleitorais aos anseios e desafios da realidade atual.

As minirreformas de 2013 e 2015 estabeleceram uma série de restrições sem, contudo, oferecer alternativas adequadas para mudar comportamentos e, de fato, viabilizar campanhas com custos reduzidos e de alcance mais amplo na sociedade. Os recursos disponíveis para as despesas de campanha tornaram-se mais escassos, mas a forma de divulgação de candidaturas e propostas continuava basicamente a mesma, ou seja, limitada aos mecanismos tradicionais de propaganda (impressos, carros de som ou publicidade em jornais e revistas), incompatíveis com a atual realidade e dinâmica da sociedade da informação. 

Nesse contexto é que passou a ser debatida a necessidade de legalização da propaganda eleitoral paga na internet, considerada um dos mecanismos mais eficazes atualmente, pois, ao mesmo tempo que seus custos são reduzidos e acessíveis quando comparados aos das mídias tradicionais, o seu alcance é amplo e preciso. Essas características abrem espaço, inclusive, para maior democratização do processo eleitoral, com estímulo à entrada e à participação de pessoas e ideias novas na disputa eleitoral.

O atual e limitado modelo de financiamento eleitoral, associado ao período reduzido de campanha trazido pela Lei 13.165/2015 e ao número cada vez maior de eleitores conectados e engajados na internet, reclamava uma nova ordem de regras de propaganda que contemplasse a veiculação de modalidades pagas no digital. O Brasil não podia ficar de fora do mapa das democracias que reconhecem a possibilidade de uso da internet no processo eleitoral, inclusive na fase de campanha e propaganda.

No atual cenário de acentuada crise de representatividade, não havia como deixar de lado um meio tão importante e eficiente de publicidade que constitui instrumento crucial para o barateamento das campanhas e para ampliar o acesso dos eleitores à informação – e a publicidade exerce o papel de convencer e informar o leitor – e o engajamento político – por suas características, a internet proporciona grande espaço para engajamento político, uma vez que o usuário é quem decide se reage ou não ao conteúdo apresentado, não são sujeitos passivos, são pessoas que compartilham, comentam e questionam.

Impulsionamento de conteúdo eleitoral

Reconhecendo as potencialidades da internet, a Lei 13.488/2017 entendeu por bem legalizar a propaganda eleitoral paga nesse meio, na modalidade específica de impulsionamento de conteúdo – esses custos são considerados gastos eleitorais sujeitos ao registro e aos limites previstos na legislação eleitoral. Muitas seriam as possibilidades e formas de propaganda eleitoral paga na internet, como links patrocinados, impulsionamento de publicações em redes sociais, apresentação de banners em sites e blogs, entre outras, a depender da plataforma utilizada e do constante desenvolvimento da tecnologia.

No entanto, neste primeiro momento, o legislador optou por ser mais restritivo e permitir apenas duas modalidades específicas: o impulsionamento de conteúdo e os links patrocinados. A nova redação do artigo 57-C da Lei das Eleições deixa claro que, como regra geral, a propaganda eleitoral paga na internet continua vedada, com exceção ao impulsionamento de conteúdo (ao qual os links patrocinados foram equiparados), que deve ocorrer mediante determinadas condições.

Em qualquer hipótese, a contratação do impulsionamento é submetida às seguintes regras, que foram objeto de maior detalhamento pelo TSE na Resolução 23.610/2019:

O impulsionamento deve ser identificado de forma inequívoca como tal (art. 57-C da Lei das Eleições)

Trata-se de obrigação de transparência para que os eleitores saibam que aquele é um conteúdo de propaganda eleitoral. Muitas redes sociais já seguem esse tipo de sistemática com anúncios em geral – por exemplo, conteúdo “patrocinado”. O TSE estabeleceu na Resolução 23.610/2019 que “todo impulsionamento deverá conter, de forma clara e legível, o número de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) ou o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) do responsável, além da expressão ‘Propaganda Eleitoral’” (artigo 29, § 5º).

Embora seja louvável a tentativa do TSE de conferir maior transparência aos conteúdos impulsionados, o que se constata é que extrapolou a obrigação prevista na lei ao exigir a indicação de CNPJ/CPF. Além disso, a obrigação de identificação da propaganda eleitoral como paga, com a inclusão das informações previstas no artigo 29, § 5º, da resolução, bem como sua eventual infração, deve ser atribuída exclusivamente às pessoas autorizadas à sua contratação, quais sejam os candidatos, partidos políticos e às coligações.

O impulsionamento deve ser contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes (art. 57-C da Lei das Eleições):

Isso significa que somente os atores próprios do processo eleitoral e seus representantes podem impulsionar esse tipo de conteúdo. Pessoas naturais, em contrapartida, não estão autorizadas a contratar o impulsionamento, como fica claro pelo teor do artigo 57-B, inciso IV, alínea b, da Lei das Eleições. A resolução prevê, ainda, que o representante se restringe ao administrador financeiro da campanha (artigo 29, § 4º).

Apesar da inexistência de previsão expressa, as agências publicitárias que tipicamente são envolvidas nas estratégias de marketing de campanhas eleitorais estão autorizadas a contratar impulsionamento de conteúdo por conta e ordem de candidatos, ainda que se exija documento hábil a comprovar tal condição.

O impulsionamento deve ser contratado diretamente com provedor de aplicação de internet que tenha sede e foro no país, ou de sua filial, sucursal, escritório, estabelecimento ou representante legalmente estabelecido no país (art. 57-C, § 3º, da Lei das Eleições)

Aqui fica claro o interesse do legislador em viabilizar a fiscalização e o exercício do poder de polícia pela justiça eleitoral, com especial atenção para a efetividade das ordens judiciais. Caso o impulsionamento pudesse ser contratado com provedores fora do Brasil, não haveria tempo hábil para utilização dos instrumentos de cooperação internacional necessários para citação e intimação de sociedades estrangeiras.

O conteúdo impulsionado somente pode ter como objetivo promover ou beneficiar candidatos ou suas agremiações (art. 57-C, § 3º, da Lei das Eleições):

O legislador disciplina o tipo de conteúdo que pode ser impulsionado – este deve se limitar a promover ou beneficiar candidatos ou suas agremiações. A previsão legal é por demais genérica, gerando insegurança jurídica, pois não há a mínima clareza quanto ao que deve ser interpretado como “promover ou beneficiar” candidatos ou suas agremiações.

Vale notar que no artigo 29, § 3º, da resolução, o TSE foi além ao mencionar expressamente que o conteúdo impulsionado somente pode ter o objetivo de “promover ou beneficiar candidatos ou suas agremiações, vedada a realização de propaganda negativa”.

É possível imaginar diversas situações de abuso e excesso na propaganda eleitoral que poderiam, em tese, promover e beneficiar um candidato, de modo que faltou clareza neste ponto específico. É de se esperar, então, que esses dispositivos deem margem a diferentes interpretações e ensejem um grande volume de representações eleitorais até que haja uma definição mais precisa quanto ao tipo de conteúdo que poderá ser impulsionado.

Constitui crime o impulsionamento de novos conteúdos no dia da eleição, podendo ser mantidos em funcionamento as aplicações e os conteúdos publicados anteriormente (art. 39, § 5º, inciso IV, da Lei das Eleições)

O legislador impede o impulsionamento de conteúdo no dia da eleição, tendo entendido que a questão é suficientemente relevante para ser tratada sob a perspectiva criminal. Por ser uma tipificação de crime, o dispositivo poderia ter sido redigido com maior clareza quanto à sua extensão e alcance. Ainda assim, a intenção parece ter sido de impedir a veiculação de novos conteúdos impulsionados no dia do pleito, mas caso tais atos tenham ocorrido anteriormente, o impulsionamento pode permanecer ativo.

Tratamento de dados pessoais nas eleições

Todos ainda se lembram das discussões sobre o uso das mídias sociais, especialmente de aplicativos de comunicação instantânea, para a realização da propaganda eleitoral nas eleições de 2018, desde a legalidade da utilização dessas ferramentas de comunicação para fins de propaganda eleitoral, até a licitude das bases de dados pessoais que serviram de estopim para os chamados “disparos em massa”.

De lá para cá, foi promulgada a Lei 13709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que, dentre outras disposições, regula a utilização dos dados pessoais, firmando princípios importantes para seu tratamento, fixando definições e bases legais – caso do consentimento, por exemplo.

Em uma junção óbvia entre o alegado problema e a potencial solução, surgiu o projeto de lei nº 3843/2019, que visa alterar a Lei nº. 9.504/97 (“Lei Eleitoral”) e que tem por objetivo “dispor sobre a utilização de bases de dados pessoais para fins eleitorais”. Mas será que realmente haverá solução?

O projeto de lei inclui os custos relativos à contratação de organizações ou agentes de tratamento de base de dados como despesas da campanha e, por conseguinte, a obrigação dos candidatos, partidos e coligações prestarem contas sobre esses valores. Além disso, também prevê, no artigo 32-A, que os candidatos deverão prestar contas “sobre a base de dados utilizadas para cadastro de endereços eletrônicos, bem como sobre o conteúdo disseminado para estes canais, conforme disciplinado do Art. 57-A ao Art. 57-J desta lei.”

Não há dúvida da importância da prestação de contas pelo candidato, partido ou coligação, a fim de demonstrar haver a incidência de uma das dez bases legais previstas na LGPD, a permitir o tratamento de dados pessoais com a finalidade de distribuição de conteúdo eleitoral, sendo, possivelmente, o consentimento a principal delas.

Nesse rumo de ideias, o projeto de lei também permite a utilização de base de dados de endereços eletrônicos cadastradas gratuitamente pelo candidato, partido ou coligação, sob a condição de que tenha havido consentimento expresso e inequívoco pelo titular dos dados pessoais. Em outras palavras, pretende-se restringir o uso de dados pessoais para fins eleitorais para uma única hipótese legal: o consentimento. Mas sem qualquer menção ou referência para a utilização da LGPD como fonte na interpretação da validade da autorização dada pelo titular dos dados pessoais.

Com a LGPD, a divulgação de propaganda eleitoral, especialmente na internet, deverá obedecer às regras ali previstas, sobretudo em relação à necessidade da existência de uma das dez bases legais para o tratamento de dados pessoais de eleitores, sob pena da sua violação. Certamente, veremos discussões interessantes sobre a utilização de aplicativos de comunicação instantânea para a divulgação de conteúdo político e não necessariamente de propaganda eleitoral.

Pelas regras atuais editadas pelo TSE, qualquer cidadão comum pode impulsionar conteúdo político, desde que não caracterizado como propaganda eleitoral. De forma objetiva, o pedido de votos em determinado candidato ou partido.

Se é verdade que precisamos regular a utilização das ferramentas tecnológicas, assim como o próprio uso dos dados pessoais no contexto eleitoral – criando um ecossistema confiável e que entregue ao cidadão eleitor informação útil à escolha de seus representantes –, também deve ser verdadeira a rejeição a qualquer proposta que possa, ainda que de forma acessória, permitir o controle do conteúdo da propaganda eleitoral que não a posteriori, e com a mínima interferência, pelo poder judiciário.

Confira mais artigos sobre legislação e tecnologia no Fórum Direito Digital.”

André Zonaro Giacchetta
André Zonaro Giacchetta é sócio de Pinheiro Neto Advogados.

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