Normas ajudam em muitos casos, mas, quando as interações são mais necessárias, elas podem atrapalhar. Talvez esse seja o caso da ISO 56002, a ISO da inovação
Primeiro precisamos entender sobre o que vamos conversar. Vamos lembrar o que é ISO. A Organização Internacional para Padronização (ISO, na sigla em inglês), estabelece um sistema de padronização para 162 países, relativos a vários tipos de gestão, da gestão da qualidade à gestão ambiental, passando pela gestão de energia.
Em 2019, foi criada uma ISO para a gestão da inovação, a ISO 56002, que se propõe a traçar diretrizes, não requisitos, com o objetivo de apresentar opções e apontar caminhos. Essa norma é resultado de mais de dez anos de estudos, tendo como base, no Brasil, a ABNT NBR 16501:201,1 que define diretrizes para o sistema de gestão de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI), e se dirige a todas as empresas, independentemente de porte ou segmento. Agora, a ISO 56002 vem chegando no Brasil e as discussões andam bem aquecidas. Afinal, a inovação deve, ou não, seguir padrões?
Estamos no momento de maior inovação e aceleração de transformação digital que o mundo já viu. Na última década, vivenciamos diariamente a inovação, como norte de grandes mercados e empresas. Valores do velho (modificar os termos para dar aspecto moderno a antigos processos, o que é apelidado de “ivelhação”) e do novo (inovação) estão em conflito nas organizações, sejam elas empresas, instituições governamentais, ONGs ou startups.
De maneira ampla, duas mentalidades muito diferentes estão travando uma batalha que, no fundo, é geracional. A sociedade é uma grande máquina movida por grandes burocracias. Para manter a máquina funcionando, as pessoas começaram a padronizar suas atividades visando obter um melhor desempenho, e facilitar a replicação dos processos. A ascensão do novo está mudando as normas e as crenças das pessoas a respeito de como o mundo deve funcionar e de onde os indivíduos se encaixam.
Então, ocorre um grande confronto. É entre a lógica de “precisar saber”, que instintivamente tem modelos a seguir para a própria proteção do negócio, e uma crescente expectativa quanto ao “direito de saber”, impulsionado por aqueles que utilizam código aberto, Creative Commons e outras propostas.
A intenção do segundo lado desse confronto é construir um conhecimento coletivo para a criação e a inovação, que permita o compartilhamento e o uso da criatividade e do conhecimento por meio de licenças gratuitas. Trata-se de um novo patamar de transparência, associado à cultura do fazedor, do maker, do “faça você mesmo”, e à cultura colaborativa, que prega que “o poder está na multidão” – como o leitor preferir chamá-la.
Já o primeiro lado leva em conta que, embora mercados sejam altamente dinâmicos, as empresas não são tão dinâmicas assim. Organizações têm uma capacidade muito pequena de evoluir e se adaptar quando se fala em inovação, cultura e gestão juntas. À medida que incertezas surgem e erros acontecem, vem o medo, e o caminho da organização muitas vezes é voltar para o ponto inicial e criar processos sobre processos.
Mas, lá nos anos 1950, já começou a surgir uma resposta para essa complexidade, ao menos em setores tecnológicos. É uma forma de trabalhar chamada de “desenvolvimento ágil”, que deu origem, em 2001, ao famoso Manifesto Ágil, voltado a desenvolver software sob os seguintes valores:
– Indivíduos e interações são mais do que processos e ferramentas.
– Software em funcionamento é mais do que documentação abrangente.
– Colaboração com o cliente é mais do que a negociação de contratos.
– Responder a mudanças é mais do que seguir um plano.
Na última década, as inovações em tecnologia ocorreram de modo exponencial e muito dessa potência está sendo feita de (e graças ao) modo ágil. Então, quando falamos que indivíduos e interações são mais importantes do que processos e ferramentas, as perguntas óbvias podem ser: precisamos de mais uma norma ou de diretrizes para inovar? Ou precisamos melhorar as interações entre os indivíduos para gerar inovação? Quando falamos do funcionamento do software, e não da documentação, surgem essas mesmas perguntas.
Todo mundo já concorda que precisamos fazer mais MVPs (sigla em inglês de produtos mínimos viáveis) para errar rápido, aprender de modo ágil e tornar nossas soluções mais inovadoras. Se colaboração é a palavra da transformação nas empresas do futuro, por que ainda perdemos tempo com burocracias? O que podemos fazer para responder rapidamente à mudança hoje? Mais burocracias, mais pesquisas ou mais soluções?
Não existe dúvida: a padronização facilita a produção em massa de produtos com qualidade. Isso começa a ser questionável, no entanto, quando tentamos aplicar padrões a situações que inerentemente possuem alto grau de variabilidade – por exemplo, a prestação de serviços no Brasil ou o atendimento ao consumidor. Problemas com os clientes surgem em todos os formatos e tamanhos, e até mesmo problemas que parecem bastante semelhantes superficialmente podem estar sujeitos a muita variabilidade, a depender do contexto.
Nós nos acostumamos tanto com a ideia de padrões como algo positivo que tendemos a aplicá-los nos lugares errados. Por exemplo, considere a ideia de “melhor prática”. Esse conceito presume que há uma “melhor maneira” de resolver um problema, que todo problema pode ser isolado de seu contexto e que a uma única maneira melhor de solucioná-lo pode ser descrita e compartilhada.
Padronização é algo que já acontece em processos de inovação. Ela é vista em processos como design thinking, design sprint, hackathons, nos próprios métodos ágeis e em outras atividades que de alguma forma estão sendo implantadas nas empresas. E, geralmente, o que se faz com o resultado dessas atividades é aplicado a uma parte do sistema, e não ao todo.
Só que o que faz com que o sistema funcione não são as partes isoladas que muitos consultores, facilitadores, pesquisadores ou líderes hoje estão propondo, mas as interações entre as pessoas e o sistema como um todo.
Os líderes creem que padronizar é sempre algo positivo. Sua ideia é que, se padronizarmos, nossos custos serão reduzidos e conseguiremos aproveitar mais o aspecto intelectual das pessoas e, assim, inovar. Porém, se suas interações forem altamente variáveis, como é a maior parte das interações em uma empresa, vai acontecer o contrário – e acontece todos os dias, garanto: matamos a inovação pela cultura e por falta de gestão. Conclusão: temos aí um problema de gestão e cultura, não de inovação.
A chave para inovar está em levar a inovação para dentro da organização, trabalhar internamente a ampliação da gestão do conhecimento e da percepção dos talentos humanos disponíveis.
Melhorar o design organizacional e as interações entre áreas é um grande passo nessa direção, e passa por decidir se um sistema é aberto ou fica fechado, em silos. Antes mesmo da ISO 56002, muitas empresas vem tentando conceber processos com regras e procedimentos que pretendem resolver de modo previsível e confiável qualquer problema que surja.
Funciona bem? Não, esses processos são frágeis. Um processo novo falha pela cultura de silos nas empresas e, quando um processo falha, nós geralmente o corrigimos alterando-o ou adicionando mais regras para lidar com as exceções. Ao longo do tempo, a maior parte dos processos torna-se rígida, burocrática e carregada de regras, regulamentações e procedimentos para lidar com isso ou aquilo.
Listo a seguir oito princípios de um sistema aberto de gestão da inovação, e proponho algumas perguntas que os líderes devem fazer em relação a cada um, para que seja possível abraçá-los.
– Realização de valor: a intenção é realizar e agregar valor percebido pelo processo de identificação, compreensão e satisfação das necessidades. Perguntas a fazer: estamos entregando valor acionável, conectado e extensível dentro e fora de nossas empresas? Os valores com que trabalhamos são úteis, desejáveis ou mesmo viáveis?
– Líderes focados no futuro: de todos os níveis, motivados pela curiosidade e pela coragem, que desafiam o status quo, construindo uma visão e envolvendo continuamente as pessoas para alcançar esses propósitos. Perguntas a fazer: você tem gestores ou tem líderes? Essas pessoas apoiam o domínio pessoal de suas áreas? Quais são os modelos mentais? Existe um objetivo comum dentro da sua empresa? Quais são os aprendizados em grupo e das áreas da sua organização?
– Direção estratégica: valores comumente compartilhados e compreendidos, alinhados com os objetivos gerais e a direção estratégica da organização, fornecem a base para a alocação de pessoas e recursos. Perguntas a fazer: estamos medindo inovação por resultado ou por investimento?
– Cultura: desenvolver valores, crenças e comportamentos que apoiem a abertura à mudança, a abordagem de riscos e a colaboração, a criação e a execução de novas ideias. A cultura deve possibilitar a coexistência dos comportamentos de criatividade e a execução efetiva. Perguntas a fazer: temos as pessoas certas para inovar? Estamos construindo e desenvolvendo nossa área de inovação ou ela ainda está presa a produção e marketing?
– Exploração de insights: identificar insights que possam ser explorados para obter valor requer uma abordagem sistemática, baseada em diversas fontes de conhecimento. Os insights efetivos vão além do óbvio e incorporam previsão estratégica sobre necessidades e condições futuras. Perguntas a fazer: estamos criando ações divertidas? Estamos abertos para fazer com que os insights avancem para uma linha de desenvolvimento de ideias?
– Gestão da incerteza: os riscos e as incertezas são avaliados, alavancados e depois gerenciados, e assim aprendemos com experimentação sistemática e processos iterativos, dentro de um portfólio de oportunidades. Perguntas a fazer: temos uma cultura que está aberta ao erro? Estamos preparados para deixar de existir como negócio?
– Adaptabilidade: novas ideias e soluções requerem frequentemente mudanças nas estruturas, processos, competências, modelos e a capacidade de responder em conformidade. Perguntas a fazer: queremos nos adaptar, mudar ou transformar nossos mercados e negócios? Estamos preparados para criar novos negócios que talvez acabem com o nosso negócio atual?
– Abordagem de sistemas: o gerenciamento da inovação baseia-se em uma abordagem com elementos inter-relacionados e interativos, avaliação de desempenho e melhorias regulares do sistema. Perguntas a fazer: estamos trabalhando com que sistema de inovação exatamente? Ele é aberto, fechado, vivo, orgânico ou sistêmico?
Voltando à ISO da inovação em discussão, nem tudo nela é ruim, ao menos não por definição. Vale a pena avaliar seus principais aspectos:
Ela é acionável por qualquer empresa, como nos softwares livres ou como os arquivos de Creative Commons? Se não, então pode se tratar de mais do mesmo, com termos e palavras do momento, mas sem novidade. Se sim, a norma já se mostra inovadora e começa a funcionar em um modelo de rede, que é o que tem demonstrado melhor resultado em inovação.
Ela está conectada a todos os atores de inovação no Brasil, como academia, órgãos públicos, instituições, organizações, startups, consultorias e empresas de médio e pequenos portes? Se não, é uma norma para poucos e vai contra toda a cultura que acredito que possa escalar. Se sim, pode escalar muito fácil e conecta uma potência de possibilidade de inovação a mercados e negócios.
Ela é extensível para novos métodos e para ela mesma ser construída coletivamente por todos os atores envolvidos com inovação? Sim? Não?
Todos os frameworks, métodos e processos têm por trás um “DNA”, composto por uma fórmula simples. A ISO 56002 não foge a essa regra e seu DNA não é de abertura e compartilhamento, mas de imposição top-down. Se essa ISO se propusesse a fazer algo realmente bom para as empresas inovarem, deveria ter começado inovando – com um MVP aberto, que todos os atores pudessem testar para rapidamente entender sua adequação. Isso colocaria um fim ao debate e demonstraria a norma de maneira prática.
Com ou sem ela, no entanto, está mais do que na hora de encontrarmos outro caminho para a inovação no Brasil. Precisamos parar de defender cada um seu ponto de vista e começar a somar. Acredito no poder da colaboração e nos bons diálogos. Para isso, precisamos ouvir mais do que apenas querer vender certificações. De cara, eu mudaria o nome de ISO da inovação para ISO da gestão.”