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Sem mexer na cultura, não há transformação digital

Encontrar o equilíbrio entre continuidade e novidade pode ajudar a liderança a lidar melhor com as mudanças culturais que acontecem durante uma transformação digital

Carsten Lund Pedersen
12 de julho de 2024
Sem mexer na cultura, não há transformação digital
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A transformação digital é algo que vai muito além da tecnologia e dos modelos de negócios. A cultura organizacional tem também um importante papel na condução de uma empresa para a era digital; na verdade, o sucesso na transformação digital está intimamente ligado a um profundo entendimento das implicações dessa cultura. Contudo, poucos entre os líderes entendem por completo a mudança cultural que ocorre durante o processo de transformação digital – ou, mais significativamente, o quanto ela não muda,

Vejamos o caso da Maersk, companhia dinamarquesa de transporte marítimo e logística integrada, que passou por um profundo processo de transformação digital. Ele teve início em 2016, quando Jim Hagemann Snabe tornou-se chairman e a empresa passou a fazer parte de um blockchain, junto com a IBM. As tensões culturais internas passaram a ser evidentes em 2021, quando Soren Vind, gerente sênior de engenharia e projetos, teve uma discussão em público com o representante dos funcionários no board, um capitão de navio com muitos anos de experiência. Vind afirmou em uma entrevista que a Maersk “tinha sido uma companhia industrial que usava tecnologia” e passou a ser “uma empresa de tecnologia em que temos equipamentos que se deslocam”. A resposta (posteriormente editada para suavizar as críticas) do capitão Thomas Lindegaard Madsen veio em um post no LinkedIn: “lamento, mas preciso corrigir o que você diz”, apontando que o transporte marítimo representava 78% das receitas do grupo e empregava 12 mil pessoas. E acrescentou: “não somos uma empresa de tecnologia que, por acaso, opera navios”.

É claro que ambos estão, ao mesmo tempo, certos e errados em suas declarações, que não passam de perspectivas diferentes sobre a interação entre cultura e transformação digital. O que o executivo de TI vê sob a ótica da mudança cultural, o capitão enxerga pelos olhos da continuidade. Ambas as visões são válidas, e ambas devem ser tratadas juntas, para que os avanços se concretizem.

A matriz da transformação cultural

Como o próprio nome diz, a mudança cultural se refere a como a incorporação do digital altera a cultura de uma organização, enquanto continuidade cultural implica nos elementos dessa mesma cultura que permanecem estáveis. Resumindo, em qualquer mudança organizacional sempre há interação entre mudança e permanência dos elementos que compõem a cultura. Porém, a maioria das transformações digitais enfatiza a mudança em detrimento da permanência, o que é uma pena, porque isto pode levar ao fracasso da planejada transformação. Mudança sem continuidade é caos, enquanto continuidade sem mudança é estagnação, como vemos na ilustração a seguir. Em outras palavras, é preciso encontrar o equilíbrio.

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A liderança deve levar em conta a interação entre mudança cultural e transformação digital, cuja combinação cria os quatro elementos sobre a identidade da matriz acima: crise, caos, manutenção e renovação.

Crise de identidade: se a entrada no mundo digital não gera nem continuidade nem renovação, podemos dizer que a organização está sem uma identidade corporativa. Esse tipo de crise torna difícil qualquer tipo de ação, já que o processo não conta com uma base sólida de apoio. É certo que as organizações que enfrentam crises de identidade já eram afetadas por crenças que impediriam a transformação digital. Nesses casos, a palavra de ordem é a criação de uma forte identidade digital, que junte a tecnologia aos valores e ao modelo de negócios, produzindo uma cultura em que a familiaridade com IA, ciência de dados e mídias sociais seja a regra. Muitas startups estão nesse quadrante: jovens demais para continuidade cultural, e temerosas quanto aos possíveis erros para enfrentar a mudança, resultando em falta passiva de identidade. Por exemplo, é comum às startups precisarem de tempo para identificar seu nicho de mercado, ao mesmo tempo que esta busca tem seu custo e implica em abrir mão de outras possibilidades. O desenvolvimento digital também exige tempo e tem seu custo, o que faz com que cerca de 36% dos pequenos negócios nos Estados Unidos sequer tenham um website.

Identidade caótica: se a digitalização altera a cultura sem conservar as bases, o produto será caótico, possivelmente fragmentado e sem conexão com os membros da organização. É uma pena que isto aconteça com certa frequência, quando os executivos criam uma narrativa em que a organização precisa mudar urgentemente e que tudo o que foi feito até o momento precisa ser deixado para trás. Consequentemente, a almejada transformação digital fracassa por excesso de reformas e falta de consistência.

A Hershey Co. foi uma das que teve sua quota de fracassos, como a implantação de uma plataforma de planejamento de recursos, cuja existência foi comprometida pela decisão de colocar em funcionamento sistemas demais ao mesmo tempo, como declarou Douglas Straton, chief digital officer: “o principal componente da transformação digital é a mudança cultural que vem com ela. É importante que se escolha uma estratégia e tecnologia que a viabilize, mas o maior trabalho se dá em torno da cultura, de seu compartilhamento e incorporação por toda a estrutura”. Afirmação incontestavelmente verdadeira, mas o sucesso demanda algum grau de manutenção da base cultural para evitar o caos proveniente da perda de sua história.

Manutenção da identidade: ao reforçar a cultura vigente e não dar espaço para a mudança, a transformação digital irá resultar em dogma cultural e inércia. Em outras palavras, a manutenção das crenças impede que a organização reconheça os pontos em que está ultrapassada, com risco de tornar-se obsoleta. Neste cenário, a cultura se baseia em uma cópia instantânea do passado, o que, no veloz ambiente digital, pode levar a um caminho infeliz ou mesmo uma armadilha em potencial, como nos mostram os destinos da Kodak, Blockbuster ou Nokia.

Esta última tinha uma sólida crença em seus pontos fortes: a funcionalidade do produto e seu sistema operacional interno. Mas ignorou o movimento feito pela Apple, que abraçou softwares, plataformas e ecossistemas, lançando seu inovador iPhone e a plataforma App Store. A Nokia começou liderando o mercado pelos seus aparelhos de qualidade e continuou a repetir o que havia funcionado antes, até que ficou dolorosamente claro que havia perdido a mudança do mercado de dispositivos para plataformas, essencialmente tornando a empresa um alvo fácil. Em última análise, a Nokia perdeu seu reinado para a Apple por apegar-se a uma consistência cultural.

Identidade renovada: a combinação de elementos de mudança e de continuidade na transformação digital oferece uma renovação sustentável para garantir a longevidade corporativa. Enquanto alguns elementos se modificam e se ajustam a uma nova realidade digital, suas raízes na cultura original garantem suficiente continuidade para que a identidade não se perca e os membros da organização possam levar sua experiência e conhecimento. É um modo mais lento de realizar a transformação, mas tende a ser bem sucedido.

Um exemplo: quando o The New York Times começou a cogitar sua expansão para o mundo online, criou um sistema que ligasse o conteúdo digital ao seu imenso guia de conteúdo, que pelos cem anos anteriores lhe havia dado status de excelente fonte de pesquisa. Recursos digitais combinados a elementos já consolidados, destacando a continuidade cultural com a modernização.

Outra demonstração de renovação de sucesso foi a da IBM. Fundada em 1911, sua longa história e tradição se manifestam em uma forte cultura corporativa, caracterizada por profissionalismo, confiabilidade e inovação tecnológica. A empresa se posicionou na vanguarda de diversas ondas de tecnologia e adaptou-se ao mercado dos primórdios da computação ao momento de serviços digitais, blockchain e inteligência artificial (IA). Mudou seu modelo de negócios com êxito e continuamente, absorvendo desenvolvimentos tecnológicos, adaptando sua cultura (como ao enfatizar serviços) e ao mesmo tempo conservando os valores fundamentais sobre os quais foi criada. Como disse o segundo presidente da empresa, Thomas Watson Jr., “prontos para mudar qualquer coisa que não sejamos nós mesmos”.

Matriz cultura-transformação: use-a

A figura oferece uma linguagem para se entender a dinâmica cultural que ocorre em transformações digitais. A aplicação dessa matriz nos ajuda a melhor analisar e explicar o que, por exemplo, aconteceu no episódio da Maersk. O executivo de TI representa o caos e o capitão de navio, manutenção, ou extremos opostos de uma mesma linha, mas o fato de ambos ocuparem posições de peso mostra que a empresa tem todas as chances de chegar a uma identidade renovada. O objetivo da Maersk de ser uma empresa de logística de ponta a ponta cobre as duas perspectivas; para atingi-lo, as mudanças culturais devem se voltar para a tecnologia (para entregar soluções integradas a seus clientes), mas sem abandonar sua espinha dorsal de oferecer logística e transportes.

Se as diferentes visões de mudança e continuidade forem expressas e tratadas de forma respeitosa e construtiva, isto quer dizer que existe lugar para as duas perspectivas ao longo do processo de transformação. Essa conciliação é a pedra fundamental do bloco da identidade renovada de nossa matriz. Gestores devem se mostrar abertos à mudança e respeitar a cultura vigente. Além disso, precisam deixar claro o que acreditam que deve ser mudado ou mantido, enfatizando como isto afetará os fundamentos da organização.

Mesmo que a transformação digital tenha a ver com tecnologia alterando o modelo de negócios, a atenção maior deve se voltar para os temas relacionados a pessoas e à cultura. Ao se identificar a dinâmica cultural e abrir as questões relacionadas à mudança, pode-se usar a matriz cultura-transformação para evitar deixar de lado o que é crítico e deve permanecer. Assim, os gestores podem lidar ativa e atentamente com o aspecto humano desse novo modelo. Levar em conta os intrincados detalhes culturais pode determinar que o projeto não seja mais um a fracassar, e sim um caso para servir de exemplo de sucesso. Em última análise, a transformação digital é também transformação cultural.”

Carsten Lund Pedersen
Carsten Lund Pedersen é professor de transformação digital na Universidade de TI de Copenhague e coeditor do livro *Big Data in Small Business: Data-Driven Growth in Small and Medium Sized Enterprises* (Edward Elgar Publishing, 2021).

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