Na ausência de regulação específica, questão é permeada pela insegurança jurídica e suscita embate entre o direito à sucessão e a proteção à privacidade. Como acomodar esses interesses conflitantes?
O desenvolvimento das redes sociais e o seu uso de maneira profissional (caso dos influencers, por exemplo), o armazenamento em provedores de parcela substancial de nossas informações pessoais (e-mails, textos, fotos etc), e o surgimento de ativos digitais de elevado valor, como as criptomoedas, têm levado ao surgimento de relevante discussão com relação à chamada herança digital.
Sabe-se que, com a morte do falecido, a herança transmite-se aos herdeiros, na ordem de vocação hereditária prevista no Código Civil (artigo 1.829). Entendida a herança como o conjunto de bens, direitos e obrigações deixada pelo falecido, a pergunta que se fica é: se a chamada herança digital, composta por bens como milhas aéreas, moedas, livros e músicas virtuais, deve ser considerada parte integrante da herança e, portanto, transmitida desde logo aos herdeiros ou seria um direito personalíssimo, não sujeito à sucessão?
Em junho de 2018, o Tribunal Federal alemão proferiu um julgamento que se tornaria paradigma, envolvendo o termo “herança digital”. No caso em referência, os pais de uma adolescente de 15 anos, que havia falecido em um acidente de metrô, ajuizaram uma ação visando obter acesso à conta de sua filha em uma rede social, com o objetivo de esclarecer as circunstâncias de sua morte – especialmente, se fruto de um acidente ou de suicídio.
O tribunal alemão entendeu que, não havendo disposição em contrário da falecida, o acervo digital segue a regra da universalidade da herança e, portanto, deve ser transmitido aos herdeiros em sua integralidade. Assim, os pais receberam acesso a todo o conteúdo armazenado nas respectivas redes sociais da filha.
No Brasil, no entanto, alguns precedentes chegaram a outra conclusão. Recentemente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais indeferiu pedido de acesso a dados privados de usuário falecido sob o fundamento de que tal acesso deve ser concedido “apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis”.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo validou a decisão do Facebook de encerrar a conta de uma usuária falecida que vinha sendo utilizada por sua mãe, fazendo uso da senha pessoal compartilhada em vida. Na oportunidade, foram ratificados os termos de uso da plataforma que vedam o compartilhamento de senha e permitem que o usuário opte por transformar a sua conta em memorial, na hipótese de falecimento, o que não foi realizado pela falecida antes de sua morte. Prevaleceu, portanto, o caráter personalíssimo da conta na plataforma, ante a ausência de conteúdo patrimonial no perfil.
As decisões são casuísticas e não esgotam as diversas implicações da presunção de transmissibilidade do patrimônio digital, envolvendo direitos da personalidade, privacidade, proteção de dados pessoais, inviolabilidade do sigilo das comunicações e, até mesmo, a relação entre o direito e as relações contratuais firmadas entre usuários e plataformas digitais.
Nesse sentido, a discussão sobre o tema se torna cada vez mais relevante, visto que não há lei que regule a matéria de maneira específica. Como se sabe, o Código Civil dispõe que a herança é um “todo unitário” (artigo 1.791), não distinguindo entre a natureza dos bens, sendo certo que bens imateriais também podem ser objeto de herança. Da mesma forma, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados não abordam o tratamento de bens digitais e dados pessoais na hipótese de falecimento do seu titular.
A sensibilidade do tema consiste especialmente no fato de que, dentre os bens digitais, existem aqueles com valor patrimonial claro (nomes de domínio e criptomoedas) e outros que possuem caráter meramente existencial (perfis pessoais em redes sociais, e-mail, mensagens privadas) – sem falar nos casos em que o mesmo bem pode transitar entre as duas classificações, no caso dos influenciadores digitais, que exploram seus perfis nas redes sociais como fonte de renda.
Parece de simples conclusão que os bens digitais patrimoniais devem ser sucedidos. Contudo, em relação àqueles sem valor econômico, ou os que se encontram na “zona transitória” descrita acima, a questão se torna mais complexa. Nesses casos, fica claro que há um embate entre os princípios sucessórios e a intransmissibilidade dos direitos da personalidade – como o são a privacidade e a inviolabilidade da vida privada.
Basta imaginar a seguinte situação: os herdeiros legítimos de um falecido, por força da herança, recebem todos os bens digitais que eram de sua titularidade, incluindo contas em redes sociais, fotos, vídeos e mensagens trocadas durante toda a sua vida, sem restrições de acesso a tal conteúdo. É natural pressupor que não necessariamente estaria no melhor interesse do falecido que herdeiros tivessem acesso a tais informações, justamente diante da violação em potencial à privacidade e à inviolabilidade das comunicações privadas – direitos constitucionalmente protegidos, vale frisar.
Há quem argumente, por outro lado, que a personalidade não deve se confundir com bens passíveis de refletir certos aspectos dos direitos de personalidade do indivíduo, pontuando que sempre integraram normalmente a herança bens como documentos, cartas, diários e fotos, devendo ser aplicada a mesma lógica aos bens digitais, sob o fundamento de que não haveria uma expectativa legítima de proteção desses dados após a morte.
Simultaneamente, não se pode perder de vista que os perfis em redes sociais são uma representação do indivíduo no mundo virtual, uma verdadeira extensão de sua personalidade, tamanha a sua influência e inserção no cotidiano de grande parte das pessoas, o que aumenta o potencial de exposição do titular da conta e de terceiros, na hipótese de sucessão integral desses bens. Ademais, justamente por servirem à identificação das pessoas na internet (em caso de perfis pessoais) e por possuírem um caráter extremamente pessoalizado, é que causa até mesmo estranheza que sejam irrestritamente transmitidos aos herdeiros do falecido.
Nesse sentido, Flávio Tartuce entende ser essencial diferenciar, dentre os bens digitais, os conteúdos que pertencem à tutela da intimidade e da vida privada daqueles que não o são, sendo que os primeiros, em regra, não devem ser objeto da herança. Nessa lógica, o autor inclusive faz referência às corretas soluções trazidas pelas próprias plataformas digitais, que em sua maioria equilibram a proteção à privacidade do usuário, de um lado, e a transmissibilidade aos herdeiros, de outro – por exemplo, através da transformação do perfil em um memorial, possibilidade de atribuição de um “contato herdeiro” escolhido pelo usuário em vida (como fazem Google e Facebook), compilação e fornecimento de publicações disponíveis, dentre outras alternativas.
Vale mencionar a solução trazida pela legislação norte-americana, que dá ao inventariante o poder de gerenciar ativos digitais integrantes da herança, como nomes de domínio, criptomoedas e arquivos digitais, restringindo o acesso, por outro lado, aos e-mails, mensagens de texto e redes sociais do falecido, salvo consentimento expresso do titular em vida em testamento, procuração ou qualquer outro documento público.
Apesar disso, ao que parece, a tendência para a regulação da matéria no Brasil caminha em sentido contrário. Isso porque, os projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional colocam como regra o direito de acesso pelos herdeiros a todo o acervo digital do falecido, sem qualquer ponderação quanto à natureza patrimonial ou personalíssima dos bens. Os projetos de lei n° 6.468/2019 e 3.050/2020, por exemplo, alteram o artigo 1.788 do Código Civil para dispor que “serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial, contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança”. Já o PL 1.689/2021 propõe a inclusão do artigo 1.791-A, prevendo que “incluem-se na herança os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e interações do falecido em provedores de aplicações de internet”.
O que se verifica, portanto, é que as proposições em trâmite são demasiadamente simplistas face à complexidade da matéria. Assim, faz-se necessário fomentar o debate para que eventual regulação considere as nuances que envolvem a temática, levando em conta a prevalência da vontade do falecido, sua privacidade e os direitos dos herdeiros. É de se considerar, inclusive, o impacto que a sucessão pura e simples de perfis em redes sociais pode causar aos demais usuários no longo prazo, ante o surgimento de grande quantidade de perfis de falecidos, geridos por seus herdeiros.
Por ora, a sucessão das contas pode ser tratada pelo titular através das disposições testamentárias, fazendo uso das ferramentas oferecidas pelas próprias plataformas e até mesmo recorrendo ao judiciário em casos específicos, sem prejuízo da imprescindibilidade de edição de norma que regulamente a questão de forma ética e em consonância com os princípios norteadores da Constituição Federal, Código Civil e a Lei Geral de Proteção de Dados. “