Na jornada de transformação digital, gestores do setor público enfrentam o desafio de aplicar a visão centrada no cliente na prestação de serviços à população
Na era da experiência, os negócios se transformam de acordo com os desejos dos clientes, que esperam ter uma experiência fluida, rápida, satisfatória e, claro, encantadora nas suas compras e interações com as marcas. Não é à toa que o customer experience (CX) ganha cada vez mais peso nas estratégias das organizações. Nos serviços públicos, a expectativa é semelhante: o cidadão quer conveniência e facilidade, usando uma interface digital moderna para emitir um documento, pagar um imposto, requisitar um serviço público ou fazer o cadastro em um programa de auxílio governamental.
O investimento na digitalização é o meio para aprimorar a jornada do cidadão e reduzir a burocracia. Mas nem sempre é fácil atingir a excelência com o orçamento restrito, falta de integração dos dados dos entes da federação e outras dificuldades características da administração pública. Portanto, são múltiplos os desafios dos gestores públicos na adoção de tecnologias para melhorar a experiência digital do cidadão.
“O Brasil tem evoluído bastante na utilização de tecnologias digitais, principalmente a partir da publicação da Estratégia de Governança Digital, em 2016. Apesar disso, o Ranking de Governo Digital das Nações Unidas ainda mostra o Brasil apenas na 49ª posição entre os 193 países avaliados. Isso demonstra que ainda há um longo caminho pela frente”, analisa Paulo Guerra, gerente para organizações públicas da Fundação Dom Cabral (FDC). Segundo ele, 99,79% dos sites .gov apresentaram alguma falha de acessibilidade, de acordo com pesquisa do Movimento Web para Todos. “A acessibilidade é apenas um dos critérios de usabilidade, mas esta também não vai bem”.
Na análise de Emanuel Di Matteo, general manager para América Latina da Liferay – empresa global desenvolvedora de plataforma de experiências digitais adotada por companhias privadas e órgãos públicos – o Brasil tem diretrizes de transformação digital estabelecidas e se preocupa em melhorar a oferta de serviços públicos digitais, que foi acelerada com a pandemia. “Porém, transformar o backstage de tecnologia leva tempo e conhecimento técnico. A transformação digital não é uma maratona com começo, meio e fim, mas um processo contínuo de evolução das experiências para o cidadão”, acredita. Para ele, a esfera federal atingiu um nível de maturidade digital maior comparada à dos estados e municípios, onde ainda há muito a ser feito.
Guerra concorda e cita dados que ilustram esses gaps. “O Mapa de Governo Digital, ferramenta que apresenta indicadores sobre o uso da tecnologia no setor público, traz dados alarmantes. Apenas 1,59% dos municípios com população entre 10 e 20 mil pessoas permitem aos cidadãos agendarem consultas médicas pela internet. Nos municípios com mais de 500 mil habitantes esse índice é de 36,73%”, afirma. Além disso, 16,30% das cidades menores possibilitam a emissão de licenças, certidões e permissões pelo site, enquanto nas maiores o percentual é de 69,39%. A emissão de boleto para pagamento de tributos pelo celular é ofertada por 8,78% dos municípios pequenos e 51,02% dos grandes.
Apesar das dificuldades, algumas iniciativas se destacam no cenário nacional, como o Portal MG, segundo o especialista da FDC. Entre os diferenciais estão: estrutura separada por público-alvo que permite fácil identificação e grande quantidade de serviços digitais transacionais, aqueles que permitem resolver tudo por meio digital. Além disso, enquanto em alguns estados o site oficial é utilizado para notícias e propagandas, em Minas Gerais o endereço foi dedicado aos serviços à população.
Os Ministérios Públicos de São Paulo e do Rio de Janeiro também são exemplos de sucesso, pois oferecem serviços digitais para o cidadão e para o profissional da área jurídica, segundo Di Matteo. “Outro exemplo é o portal do Banco do Nordeste que possui seção de acesso à informação onde o cidadão pode consultar os contratos e ter acesso a dados que antes não circulavam”, completa.
Recentemente, a Liferay mapeou as oportunidades e os desafios que rondam o dia a dia das lideranças de TI no setor público. Uma prática que pode trazer ganhos é converter ecossistemas complexos usando tecnologias mais modernas, como plataformas de experiência digital, para fornecer acesso personalizado aos serviços. Somado a isso, para diminuir a lacuna entre a experiência do cliente e a do cidadão, é necessário melhorar a usabilidade e o design web, tornando os sites governamentais mais atraentes.
Na análise de Guerra, outra questão que ainda não avançou está relacionada ao uso da cloud, pois as regras do governo determinam que os dados fiquem exclusivamente em território nacional e em datacenters próprios para garantir o sigilo. Isso acaba indo na contramão do mercado, que cada vez mais adota plataformas em nuvem para simplificar e reduzir a estrutura tecnológica – e os custos.
Apesar das barreiras, o general manager da Liferay nota um avanço recente no uso da nuvem por governos não somente no Brasil como em toda a América Latina. “Observamos os governos muito atentos às vantagens que podem ser oferecidas pela nuvem”, destacou Di Matteo.
Já a aplicação de tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial (IA), é uma estratégia que o governo vem desenhando desde 2021 e ainda caminha lentamente, segundo Guerra. Ele cita como um dos projetos o Chatbot Jac, de Alagoas, que utiliza IA para responder e orientar cidadãos na busca de serviços públicos.
“As dificuldades também passam pela incapacidade do Estado de usar seu poder de compra para fortalecer o desenvolvimento de tecnologia”, afirma Guerra. Isso está relacionado à dependência dos órgãos públicos das suas empresas de processamento de dados, que afastam os fornecedores privados; e ainda à falta de equipes de compras treinadas para execução das novas modalidades de licitação.“No setor público o desafio não é trivial, não é uma questão de mapear os processos e adotar as tecnologias. Existe ainda o desafio da contratação: entre a concepção, que é a materialização da necessidade do órgão público, e o pregão, pode levar dois anos”, acrescenta Di Matteo. De um lado, o perfil dos funcionários públicos, pois muitos possuem estabilidade, mas não têm perfil técnico. De outro, os gestores com cargos comissionados precisam lidar com o tempo (geralmente mais curto) que permanecem à frente dos projetos. “Outro ponto é que nem sempre as lideranças conseguem montar o próprio time de especialistas para execução e controle dos projetos devido à natureza do setor. Essas lideranças terminam por herdar times, muitas vezes heterogêneos, e isso gera um impacto no tempo e qualidade das entregas”, complementa.
Diante dos obstáculos, o que priorizar na construção de uma experiência satisfatória para o cidadão?
Para o general manager da Liferay é preciso ter o foco em aumentar a conveniência para o cidadão. “Isso significa melhores interfaces, processos e tecnologias integradas, de maneira multi-canal, já que a maioria dos acessos a internet no Brasil são feitos através de dispositivos móveis”. Cada vez mais as pessoas aprovam o selfcheckout para pagamento no varejo, as lojas autônomas e as ferramentas digitais dos bancos, por exemplo. “São iniciativas do setor privado, mas que podem ser traduzidas para o setor público. Serviços digitais aumentam a conveniência, ainda mais em um País de dimensões continentais. Não se trata apenas de deixar o cidadão feliz por ter conseguido resolver um problema facilmente, este é também um assunto de otimização de recursos públicos. Estudos apontam que os custos de uma transação na internet estão na ordem de centavos, enquanto a dependência de uma interação humana pode superar os treze dólares””, afirma Di Matteo.
Portanto, há oportunidades para adotar novas abordagens e recursos tecnológicos e, assim, acelerar a mudança. “Nossa recomendação é analisar os serviços que são ou que deveriam ser ofertados para melhorar a vida do cidadão. Depois, encontrar tecnologias e buscar conexões entre ferramentas e dados de maneira eficiente e escalável tanto no médio como no longo prazo. Além disso, encontrar uma rede de fornecedores capazes de entregar essa visão de negócio centrada no cliente”, conclui Di Matteo.”