Muitas empresas perdem clientes a priori por não considerarem as várias dimensões da identidade de partes de seu público-alvo, especialmente dos grupos sub-representados. Fazem isso por repetir padrões antigos, sem perceber que vão comprometer a experiência dos clientes e a própria capacidade de inovar. Aprenda a virar o jogo com as dez perguntas propostas neste artigo
Imagine um produto que tem tudo para dar certo, mas que acaba frustrando milhões de pessoas por conta de uma decisão de design que poderia ser facilmente evitada. Ruim para os clientes, pior ainda para os negócios. Essa é a realidade de empresas que, na hora de projetar suas soluções, não levam em conta a diversidade entre os consumidores.
Entender o perfil de quem se decepcionou com o produto, os motivos da insatisfação e como corrigir os problemas são os primeiros passos para adotar o design inclusivo. Ele visa criar produtos que atendam a um conjunto diversificado de usuários, considerando diferentes dimensões que compõem sua identidade e evitando que necessidades e expectativas de grupos sub-representados fiquem de fora.
Para entender como funciona o design inclusivo na prática, vamos tomar como exemplo a escolha das cores que serão usadas na criação da identidade visual de um produto ou marca. Certamente, uma decisão que se baseia na expectativa de que elas possam ser apreciadas por todos os usuários, o que pressupõe incluir os daltônicos, que representam 8% da população global. Para apoiar os designers nesse processo desde o início, a Adobe Color desenvolveu ferramentas que lhes permitem selecionar diferentes matizes diretamente da sua roda de cores.
Com o design inclusivo, ganham os consumidores, ganham também as empresas. Enquanto eles têm acesso a produtos que proporcionam uma experiência mais satisfatória e inclusiva, elas ampliam o olhar sobre suas soluções e acessam novas fatias do mercado.
O design de um produto inclusivo começa por entender e considerar as várias dimensões que compõem a identidade do seu conjunto de usuários.No campo da psicologia, isso é o que a americana Pamela Hays, reconhecida por seu trabalho em psicologia multicultural e diversidade, chamou de estrutura de identidade sociocultural “addressing”. Cada letra do acrônimo representa um fator que pode influenciar a experiência e o comportamento dos indivíduos: idade, deficiências no desenvolvimento ou adquiridas, religião e espiritualidade, identidade étnica e racial, status socioeconômico, orientação sexual, herança indígena, nacionalidade e gênero.
A aplicação dessa estrutura no campo do marketing foi tema de um estudo conduzido por Vanessa Patrick e Candice Hollenbeck, respectivamente, professora de marketing no Bauer College of Business, University of Houston (EUA), e professora de marketing e psicologia do consumidor no Terry College of Business, University of Georgia (EUA), e publicado no Journal of Consumer Psychology. De acordo com as autoras, o framework “addressing” pode ajudar equipes de produto a identificar grupos sub-representados no espectro de identidades.
Ainda assim, as empresas – inclusive as que reconhecem a importância do design inclusivo – podem se sentir inseguras para colocá-lo em prática. A partir da estrutura “addressing”, sugerimos quatro conjuntos de perguntas-disparadoras para sua organização expandir a visão sobre o público-alvo, o processo de desenvolvimento do produto e as oportunidades de inovação.
Os processos usuais de desenvolvimento de produtos geralmente se concentram em atender às necessidades do usuário típico ou médio – sinal de uma postura tradicional e limitada sobre as oportunidades que a acessibilidade traz.
O primeiro passo para a virada é lançar mão de pesquisas, avaliações de clientes e dados sobre a utilização e desempenho do produto. Isso ajuda a identificar diferentes formas de aquisição e uso, e o quanto seus produtos atendem a necessidades de populações específicas.
No caso da Apple, a empresa identificou que sua tecnologia de reconhecimento de fala apresentava desempenho muito inferior quando usada por pessoas que gaguejam, o que levava esse grupo a utilizá-la muito menos do que os demais. Com base em dados extraídos de gravações de usuários que tinham problemas de fala, a empresa aprimorou o funcionamento de seus produtos para melhor atender a esse grupo.
Outro exemplo em que a necessidade de um grupo sub-representado foi contemplada envolveu indivíduos transgêneros e não binários, que muitas vezes enfrentam uma maratona de perguntas e constrangimentos ao usar cartões de crédito ou débito que não refletem sua identidade. Em 2019, a Mastercard criou o recurso “True name”, que permite ao consumidor exibir seu nome social no cartão, mesmo que a alteração legal não tenha ocorrido.
A demora na adoção de recursos de acessibilidade em produtos existentes pode resultar em: experiência abaixo do ideal para o usuário, aumento dos custos de desenvolvimento e marketing, e perda de oportunidades para encantar o cliente.
No entanto, mesmo os atrasados sempre têm chance de entrar no jogo; o que realmente importa é sua agilidade em ler o mercado e agir. Sempre que as necessidades dos consumidores de grupos minorizados não estiverem sendo atendidas pelos produtos existentes, as empresas podem suprir essa demanda com produtos e serviços inclusivos.
Por exemplo, em 2018, depois de lançar várias versões do controle do Xbox, a Microsoft desenvolveu um novo modelo para jogadores com mobilidade limitada. A empresa trabalhou em estreita colaboração com a comunidade de pessoas com deficiência, ouvindo jogadores que não gozavam de acessibilidade adequada às suas necessidades e testando protótipos com terapeutas ocupacionais. O resultado foi um controle com design modular, que pode ser usado com acessórios personalizáveis, como joysticks, suportes e botões.
Contemplar os usuários marginalizados pode resultar em benefícios para todos, muitas vezes superando as expectativas do público-alvo. Considere os tênis GO FlyEase, da Nike, projetados para serem fáceis de calçar. Eles foram inspirados por um cliente com paralisia cerebral e foram desenvolvidos com a participação de pessoas amputadas. Da mesma forma, os tênis slip-on também beneficiam aqueles que enfrentam dificuldades temporárias, como um braço quebrado, ou cujas mãos estão ocupadas, por exemplo, carregando um bebê.
Resolver incompatibilidades relacionadas a deficiências também pode solucionar outras questões. Por exemplo, rebaixamentos no meio-fio da calçada aumentam a mobilidade não apenas de usuários de cadeiras de rodas, mas também de pessoas empurrando carrinhos de bebê, puxando carrinhos de supermercado ou andando de patinete.
Em outro tipo de incompatibilidade, produtos desenvolvidos com inteligência artificial (IA) apresentaram falhas para alguns usuários devido à sub-representação de nativos americanos nos dados de treinamento. Por exemplo, um software de reconhecimento de imagem identificou erroneamente elementos da cultura nativa americana, e um popular gerador de imagens de IA não conseguiu representar pessoas de origem indígena.
Esses exemplos demonstram as desvantagens potenciais de não incluir comunidades historicamente marginalizadas em conjuntos de dados usados para treinar algoritmos ou na avaliação do desempenho deles.
Com o objetivo de criar algoritmos para um conjunto mais amplo de usuários, o Google adotou práticas de IA responsável que incluem a avaliação da imparcialidade em relação a diferentes subgrupos nos conjuntos de dados e resultados de IA.
Incorporar perspectivas diversas no processo de desenvolvimento de produtos não é uma tarefa simples para as empresas. Exige autoconhecimento e reflexão – muita reflexão. Por exemplo, é necessário reconhecer se as equipes refletem – ou não – a diversidade da sociedade e dos mercados em que a organização está inserida. Empresas que contratam funcionários privilegiando uma ampla variedade de identidades tendem a ter processos mais inclusivos no desenvolvimento de produtos.
Sumaira Latif, que é cega, atua na americana Procter & Gamble, de bens de consumo, há mais de duas décadas. Como consultora especial para design inclusivo, ela trabalhou com a equipe da Herbal Essence, de cuidados pessoais, para criar um novo design de embalagem com reentrâncias táteis, ajudando pessoas com deficiência visual a diferenciar o frasco de xampu do frasco de condicionador. A novidade trouxe benefícios para todos.
A construção de produtos inclusivos requer que as organizações não apenas considerem as necessidades de diversos usuários, mas também reflitam sobre a diversidade de suas próprias equipes. Avaliar a composição de seus “olhos” e “espelhos” permite criar soluções para um conjunto mais amplo de clientes e cocriar inovações que realmente impactem suas vidas.
Por exemplo, a americana Snap, de tecnologia e entretenimento, coleta informações não apenas sobre gênero, raça e etnia de seus funcionários, mas também sobre quantos deles são neurodivergentes, têm alguma deficiência física, fazem parte da comunidade LGBTI+, são graduados universitários de primeira geração ou serviram nas forças armadas. Ter uma equipe de design de produto com experiência vivida de marginalização resultou no lançamento de novos recursos, como a Câmera Inclusiva, que captura melhor os tons de pele. Isso beneficia a todos, especialmente usuários com tons de pele mais escuros, que historicamente têm sido mal atendidos por aplicativos de câmeras.
Uma equipe de produto tende a desenvolver recursos para ampliar a base de clientes apenas se o retorno do investimento for alto. Como resultado, funcionalidades que melhoram a acessibilidade e a inclusão frequentemente são vistas como algo mais simpático do que realmente necessário. No entanto, a falta de priorização da acessibilidade e inclusão no design dos produtos não necessariamente representa o que é melhor para a empresa.
Uma pesquisa recente sobre marketing inclusivo de produtos, realizada por Jeffrey D. Shulman e Zheyin (Jane) Gu, ambos professores de marketing e comportamento do consumidor na Foster School of Business, University of Washington (EUA), e publicada na Marketing Science, mostrou como o viés em pesquisa pode levar as empresas a fazer investimentos sistemáticos de forma insuficiente ou excessiva no desenvolvimento de produtos inclusivos.
As dúvidas sobre o impacto da inclusão também podem servir para confirmar para si que usuários de certos grupos podem não usar determinado produto porque este não foi projetado originalmente para eles. Justificando, assim, por que eles tenderiam a não responder também a eventuais melhorias.
Para interromper esse ciclo, é importante realizar testes mais abrangentes para validar o potencial impacto dos produtos inclusivos. Isso pode ajudar a liderança a superar sua resistência à priorização do design desses produtos, adotando metodologias-padrão de melhoria de processos para identificar e demonstrar o impacto dessas iniciativas nas principais métricas de sucesso da organização.
Projetos-piloto bem definidos ajudam as equipes a analisar como o envolvimento intencional de diversas comunidades de usuários afetará o desenvolvimento do produto, incluindo tempo, custos financeiros e desempenho.
Para fornecer experiência e orientação às equipes de produtos que buscam criar soluções mais inclusivas, várias empresas estão criando funções específicas voltadas para a acessibilidade ou inclusão de produtos. Por exemplo, a americana ADP, de soluções de recursos humanos, contratou um chefe de inclusão de produtos e a gigante de tecnologia Microsoft, um diretor de inclusão. Equipes focadas em equidade de produtos também já existem no Airbnb, Google, LinkedIn, Meta e Snap, líderes em tecnologia e inovação.
A sociedade 5.0 emerge como um conceito avançado de integração do mundo físico e do digital, com tecnologias como IoT, computação quântica e inteligência artificial não apenas para otimizar processos, mas resolver problemas sociais complexos. É o caso da inclusão e da promoção da qualidade de vida.
Inspirador na teoria, desafiador na prática. Nas empresas, isso implica alinhar a inovação e o desenvolvimento de produtos e serviços a valores humanos fundamentais, como equidade, solidariedade, responsabilidade e justiça. Implica também driblar resistências a mudanças de cultura e de processos feitas com a finalidade de ampliar a visão do público-alvo e do mercado potencial.
Impossível de realizar? Como demonstra a NTT Data Brasil, não. A consultoria de origem japonesa incorporou os pilares da Sociedade 5.0, especialmente o de inclusão, na cultura organizacional e no design de produtos e serviços, como explicou Ricardo Neves, CEO da organização, em entrevista ao podcast “O futuro vem do futuro”, de MIT SMR Brasil.
Um exemplo concreto é o desenvolvimento pela NTT Data Brasil de serviços de acessibilidade digital pelas pessoas que melhor os compreendem. “Temos 40 profissionais com deficiência visual que participam ativamente do processo de design, testando e consultando a acessibilidade dos aplicativos e sites de clientes”, comentou Neves. E o esforço multiplica resultados. “Um dos nossos profissionais cegos me contou que desenvolve essas tecnologias pensando não só nas pessoas cegas, mas também nos idosos, que também podem se beneficiar delas.” O envelhecimento da população não será problema nesse caso.
Veja também o podcast “Como seria um Brasil 5.0?”, com Ricardo Neves
COMO LÍDER, VOCÊ PODE USAR AS PERGUNTAS AQUI PROPOSTAS para identificar oportunidades de ter lucro e gerar impacto positivo tanto nas pessoas como na sociedade. O design de produto inclusivo, que exige sair a visão em piloto automático dos consumidores, é responsabilidade dos designers, pesquisadores de experiência do usuário, programadores, gerentes de produto e da liderança. E, é claro, são necessárias metas organizacionais e incentivos que envolvam as equipes nessas iniciativas.