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Ciência empreendedora que transforma

Está emergindo no Brasil uma comunidade de cientistas que desenvolveminovações de base científica e querem fazer negócios. O novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação veio ajudá-los a se aproximar do mercado

Daniel Pimentel, Guilherme Rosso e Lucas Delgado
29 de julho de 2024
Ciência empreendedora que transforma

O cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) derrubou vários mitos. Alguns deles no próprio campo da ciência, como quando acabou com a longeva e renitente doutrina da geração espontânea dos organismos vivos. Um mito de outra índole que sua trajetória desmascara é o do distanciamento intrínseco entre ciência e inovação. Pois, entre outros feitos, Pasteur avançou notavelmente a fronteira do conhecimento em microbiologia então existente e, ao mesmo tempo, melhorou substancialmente a qualidade de vida dos seres humanos pelo processo de pasteurização. Como sabemos, este possibilita que produtos como o leite possam ser transportados e armazenados por um tempo expressivo sem se deteriorar. De transmissor de doenças graves, como a tuberculose, o leite passou a ser um alimento seguro.

Essa convergência transformadora entre ciência e inovação também tem uma ilustração brasileira, e recente, igualmente no campo do leite e seus derivados. Num esforço conjunto, cientistas de três universidades federais (de Minas Gerais, de Viçosa e de Lavras) e do então Centro Tecnológico de Minas Gerais descobriram que as baixas temperaturas matavam o fermento natural presente no pão de queijo. Então, desenvolveram uma variante criogênica do fermento e uma nova receita combinando o polvilho doce e o azedo. Dessa forma, foi possível o surgimento de mais de 400 empresas e 8 mil pontos de vendas só no Brasil. Gerou-se ainda um mercado externo, que se expandiu nos Estados Unidos, Argentina, Canadá, França, Espanha a um ritmo de 100% ao ano nos primeiros anos.

Hoje o valor da conexão virtuosa entre a ciência e a inovação é bem mais reconhecido mundialmente do que nos tempos de Pasteur. Inclusive em nosso País, muito embora aqui a percepção dessa potencialidade para além de círculos limitados remonte a não mais do que duas décadas. O fato é que, nestes tempos em que o termo “inovação” é usado quase como um mantra, o desafio de articular o avanço do conhecimento e sua consubstanciação em bens, serviços e outras formas que beneficiam interesses humanos continua a ser imenso, em todo o planeta.

A discussão preponderante é sobre como fazer acontecer a conexão entre ciência e inovação, e ela acaba, na maior parte das vezes, recaindo na histórica polêmica da insuficiente interação entre as instituições acadêmicas e de pesquisa, em particular as universidades, e o meio empresarial. Em ecossistemas inexistentes ou imaturos esgrimam-se argumentos acusatórios sobre quem tem responsabilidade pelo fracasso desse diálogo cooperativo. Dirigentes de empresas denunciam as universidades, vistas como ideologizadas e descomprometidas, enquanto pesquisadores das universidades acusam as empresas, apontadas como gananciosas e míopes. Apenas em um aspecto há convergência de opinião, o de que a “mãe de todas as culpas” é do governo…

Em ecossistemas mais maduros, pelo contrário, busca-se entender as causas profundas das dificuldades desse relacionamento, que não é trivial. Por exemplo, o de que parcela expressiva dos problemas ocorre não devido à diferença das missões da universidade e da empresa, mas pela grave dissonância entre as práticas do direito aplicadas em nosso meio às universidades que produzem ciência (quase todas são entes governamentais) e às empresas que precisam de ciência para inovar (quase todas são entes com interesse econômico). Nesses ecossistemas, buscam-se também formas novas de superar as barreiras decorrentes das naturais diferenças culturais existentes entre esses “mundos”, com o apoio do governo e o envolvimento da sociedade civil.

A tentativa de convivência das partes nos ecossistemas mais maduros inclui até mobilizações conjuntas que muitas vezes levam a uma inovação institucional essencial. O ecossistema no Brasil pode ser descrito como imaturo em geral, mas também tem uma porção mais madura, e foi aí que recentemente se fez uma inovação institucional: o novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Assim como o pão de queijo, o Brasil possui diversos casos de contribuições da ciência para o desenvolvimento de mercados, da produção de etanol a partir da cana-de-açúcar ao desenvolvimento do Vonau, medicamento para controle de náuseas e vômitos. Da mesma forma, há diversas empresas de grande porte que criaram uma tradição de relacionamento com universidades brasileiras para produzir inovação, tais como Embraer, Petrobras, Vale, Braskem, Weg e Natura.

Agora, com as facilidades proporcionadas pelo novo Marco Legal e a expectativa onipresente da inovação no mundo, a tendência é que universidades, centros de pesquisa e empresas se aproximem muito mais. Como gosta de dizer Steve Wozniak, cofundador da Apple, sempre que uma inovação é mais fácil de usar e mais barata que sua alternativa, ela prevalece, mesmo que haja resistências. Nossa intuição é que essa lógica prevalecerá também para a inovação institucional do novo Marco Legal – afinal, inovar com cientistas e pesquisadores ficou mais fácil e mais barato do que inovar sem eles.

Brain4care Health Technologies (startup): brain4.care

Cientista empreendedor: Sérgio Mascarenhas

CEO: Plinio Targa

Inovação: Medição não invasiva da pressão intracraniana (PIC)

Ano de fundação: 2014

Headquarters: São Carlos (SP)

Origem da tecnologia: Universidade de São Paulo (USP) – Campi São Carlos e Ribeirão Preto

Status: Recebeu R$ 3 milhões de investimentos para pesquisa da Fapesp e, mais recentemente, um investimento equivalente a US$ 5 milhões liderado por Horácio Lafer Piva

Aos 91 anos de idade, Sérgio Mascarenhas é uma lenda viva da ciência brasileira. Físico e químico de formação com extenso currículo, fundou a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Embrapa Instrumentação e o Instituto de Física de São Carlos (IFSC/USP). Em meados dos anos 2000, depois de ser diagnosticado com hidrocefalia de pressão normal, doença em que o corpo não consegue controlar a produção de líquor (o lubrificante do sistema nervoso), precisou submeter-se a uma neurocirurgia para implantação de uma válvula que sai do crânio e leva o excesso de líquor para ser reabsorvido no abdômen.

Devido aos problemas causados pela sua própria doença, Sérgio começou a realizar experimentos para tentar medir a pressão intracraniana a partir da medição de microdeformações na superfície do crânio. Com Gustavo Frigieri, seu aluno de doutorado no IFSC-USP, desenvolveu um sistema inovador para o monitoramento da pressão intracraniana (PIC) de modo não invasivo. A tecnologia deu origem à Brain4care Health Technology, uma startup de tecnologia médica baseada em ciência, hoje capitaneada pelo CEO Plinio Targa.

O método reduz significativamente os riscos, os custos e as complicações associadas ao procedimento de medição da PIC, indicado, por exemplo, em casos de trauma, hidrocefalia ou derrame. Além das aplicações neurológicas mencionadas, pesquisadores também descobriram que a PIC está diretamente relacionada a outras patologias como cardiopatias, nefropatias e hepatopatias, e a tecnologia da Brain4care é acessível para todos e em qualquer lugar: UTI, pronto-socorro, ambulatórios e ambulâncias, ou até mesmo em casa, na rua, campos e quadras esportivas.

INOVAÇÃO DE BASE CIENTÍFICA

Para que haja inovação, especialmente a de base científica, não se faz suficiente só uma mente inventiva e brilhante, uma política pública ou uma empresa inovadora. Mais do que agentes robustos isolados, como universidades de classe mundial ou empresas globais líderes em seus setores, é necessária a efetiva cooperação entre os entes governamentais, o meio empresarial, as instituições acadêmicas e a sociedade civil.

Alguns questionam se o Brasil é capaz de promover essa cooperação e gerar inovações de base científica de modo regular. Não só é, como o mundo espera por isso. Quase uma década atrás, a revista The Economist já avisava, sob o provocador título “The world turned upside down”, que o mundo emergente não era mais só uma fonte de mão de obra barata; era também uma fonte de inovação radical. Empresas periféricas começavam a sonhar mais alto, com a ambição de liderar o cenário mundial – ou com medo de concorrentes ainda mais baratas, como Vietnã e Camboja. De lá para cá, além dessas inovações disruptivas, os países do mundo emergente têm gerado – e podem gerar cada vez mais – companhias líderes globais em seus segmentos. A inovação nessas regiões se tornou elementar.

Aos que argumentam que no Brasil não há cidades como São Francisco, Boston, Seul, Tel Aviv e Toronto, mundialmente reconhecidas por seus ecossistemas empreendedores e inovadores (nos quais as universidades e centros de pesquisas são atores-chave), respondemos que, guardadas as devidas proporções, há.

Nos oásis inovadores do Brasil, as empresas investem cerca de 10% do faturamento em inovação (ante 0,7% da Petrobras em 2017, uma das companhias brasileiras que mais investiam em P&D). Não estamos falando só de grandes capitais como São Paulo. Santa Rita do Sapucaí, cidade com menos de 40 mil habitantes no interior mineiro, é uma delas. Conhecida como o Vale da Eletrônica, possui cerca de 150 empresas com um faturamento anual conjunto de R$ 3,2 bilhões, gerando cerca de 14,7 mil empregos e investindo, em média, 9% do faturamento em P&D para desenvolver produtos em telecomunicações, informática, segurança, automação industrial e equipamentos industriais em geral, além da prestação de serviços. Em Recife, o Porto Digital já abriga mais de 300 empresas (dados de 2017), mais de 9 mil profissionais altamente qualificados e um faturamento de, aproximadamente R$ 1,7 bilhão. Cidades como Florianópolis, Campina Grande e Porto Alegre, por exemplo, têm criado ecossistemas de inovação a partir das suas demandas. Em todos esses casos, universidades e centros de pesquisa são eixos dos ecossistemas.

Em 2016, o Google inaugurou o primeiro centro de engenharia de software na América Latina – em Belo Horizonte. Por que a capital mineira foi escolhida? Porque, em 2005, o Google adquiriu a Akwan, uma startup nascida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A empresa desenvolvia um software voltado para recolhimento de informação na web que hoje é parte central do buscador do Google. Podemos dizer que, atualmente, 100% das buscas realizadas no Google são impactadas pelos engenheiros mineiros. A partir de uma empresa criada com base em pesquisas acadêmicas, foi possível criar um vínculo entre uma multinacional e uma universidade, atraindo a construção de um centro de pesquisa que continua a produzir emprego, renda e impacto.

O caso Google ilustra duas das formas de cooperação possíveis entre os diversos atores que devem ser envolvidos em uma inovação, especialmente de base científica. Uma é o financiamento público às instituições de pesquisa que geram conhecimento. Outra é o meio empresarial tornando esse conhecimento produtivo, seja por meio de spin-offs acadêmicas, seja por meio de P&D.

Há outras formas em que a universidade pode cooperar com a indústria e gerar resultados econômicos e sociais para ela: formando pessoas, prestando serviços, compartilhando laboratórios os quadros deste artigo oferecem exemplos de todas. O licenciamento de patentes também consiste em uma maneira interessante em que a universidade pode transferir seu conhecimento a empresas. A Low Sat, por exemplo, é uma tecnologia desenvolvida pela Unicamp e licenciada exclusivamente para a Cargill: permite a substituição parcial da gordura saturada em alimentos industrializados e que, em função de sua textura, exigia alto grau de saturação dos ácidos graxos, podendo ser aplicada para diversos fins na indústria alimentícia.

Genera – Inovação em Saúde (startup) genera.com.br

Cientista empreendedor e CEO: Ricardo di Lazzaro

Inovação: Processos e desenvolvimento de novos testes diagnósticos

Ano de fundação: 2010

Headquarters: São Paulo (SP)

Formação do cientista empreendedor: Universidade de São Paulo (USP)

Status: Adquirida pela Dasa.

Ricardo Di Lazzaro Filho é formado em medicina e farmácia bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP), onde também se graduou mestre em genômica humana. É cofundador do laboratório Genera – Inovação em Saúde, uma empresa especializada em diagnósticos, formada por uma equipe multidisciplinar de médicos, biólogos, biomédicos e farmacêuticos, graduados e especializados pelas instituições de ensino mais respeitadas do Brasil.

Fundada em 2010, a empresa é hoje umas das referências em diagnósticos direct-to-consumer com exames de ancestralidade, saúde e bem-estar farmacogenômico, acumulando mais de 100 mil análises realizadas e dispondo da maior rede de unidades de coleta do País. Com título de um dos principais laboratórios do Brasil, a Genera iniciou realizando testes de paternidade e hoje consegue, por exemplo, realizar desde testes de ancestralidade até a avaliação de risco para mais de 2 mil doenças.

No início de 2019, a Genera teve seu controle acionário adquirido pela Dasa, a maior empresa de medicina diagnóstica do Brasil e da América Latina. E Ricardo di Lazzaro se tornou um cientista empreendedor em série, sendo ainda cofundador e investidor das empresas de tecnologia AppSimples, VR Monkey e MaChiron, e das empresas de biotecnologia Lotan Agrosciences e Naiad Drug Discovery.

Ao expandir suas fronteiras do ensino e pesquisa e passar a transferir o conhecimento a partir de diversas formas, a universidade passa a assumir uma função-chave na transição da sociedade industrial para a sociedade baseada no conhecimento. O governo permanece com a função de garantir segurança jurídica. A indústria segue a responsável pela produção. Mas a universidade ganha protagonismo, pois, além de formar os recursos humanos qualificados e fazer avançar o conhecimento, ela também gera novas empresas, coopera com grandes organizações, e cria novos produtos e processos – é uma universidade empreendedora.

UM CAMPO EMERGENTE

Os desafios globais, como acesso à água potável, destinação adequada do lixo, exploração espacial, geração de energia, manutenção dos biomas e biodiversidade, mudanças climáticas, produção de alimentos e saúde de qualidade para uma população cada vez mais velha e maior, entre outros, têm um efeito tríplice: afetam o bem-estar das pessoas, diminuem a produtividade das empresas e são preocupações contínuas das políticas públicas governamentais. Não há soluções prontas e viáveis que sejam globais e escaláveis para resolver todas essas demandas. No mundo todo tem-se concluído, cada vez mais, que o desenvolvimento de inovações e empreendimentos de base científica é o que pode ajudar a enfrentar esses desafios.

O que estamos tratando como inovação de base científica deve ser parte do que chamamos de ciência empreendedora, um campo emergente no Brasil. Ciência, do latim scientia, significa “conhecimento atento e aprofundado de algo”. Empreendedorismo é a iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças em empresas já existentes, geralmente com alterações que envolvem inovação e riscos. Essa poderosa união entre ciência e empreendedorismo pode contribuir com o desenvolvimento econômico, gerando emprego e renda, e também proporcionar impacto social positivo contribuindo com soluções para os desafios globais.

POR ONDE COMEÇAR

Se estamos falando de levar ciência da bancada até o mercado, primeiro é necessário ter ciência. O Brasil é o 13º país do mundo em publicação de artigos científicos e cabe destacar que as áreas de pesquisa básica como biologia molecular, bioquímica, ciência dos materiais, odontologia, ciência de alimentos, entre outras, têm significativa densidade de produção de conhecimento e geram impactos sociais, econômicos e ambientais significativos. Um exemplo bem conhecido desse impacto são os estudos pioneiros da Embrapa sobre fixação biológica de nitrogênio no solo, mecanismo que permitiu o Brasil economizar bilhões de dólares em fertilizantes e defensivos agrícolas nos últimos 30 anos e tornar-se um dos maiores produtores do agronegócio mundial.

RELAÇÃO UNIVERSIDADE–EMPRESA

Também é fundamental que empresas e universidades se relacionem. Isso acontece proporcionalmente pouco no Brasil, mas acontece. Existem pelo menos duas maneiras de comprová-lo. Uma é o indicador de mais recursos financeiros recebidos de empresas, constante do ranking de universidades da Times Higher Education (THE). Em 2019, as mais bem classificadas do Brasil nesse quesito são, na ordem, PUC-RJ, PUC-RS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Unicamp. Outra maneira é a participação dos artigos publicados em coautoria entre universidades e empresas no número total de artigos. De acordo com um estudo comparativo realizado pelo diretor científico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz, o percentual médio de coautorias com empresas para o período 2015-2017 nas sete universidades baseadas no estado de São Paulo varia entre 1,8% e 4,3%, Ainda de acordo com Brito Cruz, nos EUA, os percentuais variam entre 1% e 5%. Nesse caso, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) é a instituição com o maior percentual em coautoria com empresas e, nesse aspecto, as universidades de São Paulo são comparáveis a universidades norte-americanas de ponta mundial, como Massachusetts Institute of Technology (MIT), à qual é ligada esta revista, e a University of California em Berkeley e em Davis. Já as cinco empresas que mais participaram desses artigos foram a Petrobras, as subsidiárias locais de Novartis, Roche e Merck, e o instituto de pesquisas norte-americano Westat.

INVESTIMENTOS EM PESQUISA

Que empresas brasileiras mais investem em P&D e podem ser modelos? No relatório que a Comissão Europeia fez sobre o tema em 2018, de abrangência mundial, os destaques são Vale (387º lugar no ranking), Petrobras (449º), Totvs (1010º), Weg (1283º), CPFL Energia (1699º) e Braskem (1768º). Entre as top 5, há duas norte-americanas e uma alemã, mas a líder vem da Coreia (Samgung) e o 5º lugar, da China (Huawei). (DP, GR e LD)

A boa notícia é que está emergindo no Brasil uma comunidade de cientistas empreendedores e inovadores desenvolvendo negócios e inovações de base científica. A nota de preocupação é que o caminho não é linear e, para que as soluções disruptivas desenvolvidas a partir de avanços científicos promissores realmente consigam chegar ao mercado, veem-se tanto oportunidades como desafios.

No mundo, muitos vêm se debruçando sobre como lidar com desafios que as inovações e negócios de base científica enfrentam, e criar modelos de negócio adequados, como Mark Werwath, diretor do programa de mestrado em engenharia de gestão da Northwestern University; Steve Blank, empreendedor em série do Vale do Silício e criador da metodologia “customer development”; além de organizações como Hello Tomorrow e Boston Consulting Group (BCG).

No Brasil, todas as universidades públicas passaram a constituir os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs), desde 2005. Eles são semelhantes aos Technology Transfer Office (TTO) dos EUA, que possuem, entre outras competências, a função de diagnosticar, proteger e transferir o conhecimento produzido nas universidades.

Nanovetores (startup) nanovetores.com.br

Cientista empreendedora: Betina Giehl Zanetti Ramos

CEO da empresa: Ricardo Henrique Ramos

Inovação: Fornecimento de insumos nano e microencapsulados para o segmento de cosméticos e indústria têxtil.

Ano de fundação: 2008

Headquarters: Florianópolis (SC)

Formação da cientista empreendedora: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Université de Bordeaux, na França

Status: Exportando para mais de 25 países

Betina Ramos é farmacêutica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde também fez mestrado em farmácia. Continuando a carreira acadêmica, em 2006 defendeu o doutorado em química com dupla titulação pela UFSC e pela Université de Bordeaux, na França. Foi a partir de suas pesquisas que nasceu a Nanovetores, uma empresa que desenvolve sistemas de nano e microencapsulação de ativos para a indústria de cosméticos e têxtil.

O marido de Betina, Ricardo Ramos, é também o seu grande parceiro de negócios e CEO da Nanovetores, baseada em Florianópolis. O casal transformou a empresa em uma multinacional que exporta para 26 países nos cinco continentes. Um grande diferencial da Nanovetores é o seu compromisso com a sustentabilidade, e todos os seus produtos são produzidos apenas com o uso de água como solvente – ou seja, sem o uso de solventes orgânicos e sintéticos.

Atualmente a Nanovetores tem um portfólio diversificado de produtos que atendem às necessidades de perda de medidas, celulite, rosto, unhas, cabelo, protetor solar, cravos e espinhas, curativos para queimadura, entre outros. Para o futuro, os fundadores vislumbram a abertura de um novo escritório na Suíça e também a possibilidade de construir uma planta fabril naquele país como uma iniciativa estratégica para atender à demanda do mercado europeu e asiático.

Programas governamentais como o Small Business Innovative Research (Sbir) criado pelo governo norte-americano em 1982 têm investido sistematicamente em projetos de inovação em pequenas empresas. Ele inspirou a criação do Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe) pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Tais programas permitiram o desenvolvimento de corporações como a multinacional norte-americana Qualcomm e a brasileira Griaule, esta especializada em biometria e com contratos milionários com instituições como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Pentágono, nos EUA. No Brasil, organizações como Emerge, Biominas e Swissnex desenvolveram programas de empreendedorismo para cientistas que querem levar suas pesquisas da bancada até o mercado e têm se especializado cada vez mais no apoio a cientistas empreendedores.

O conjunto desses estudos, relatórios, programas e experiências permite entender cada vez mais as peculiaridades de inovações e negócios de base científica em relação aos negócios tradicionais e ao mercado de negócios digitais. Aqui cabe destacar algumas delas:

1. Intensidade de capital. Inovações e negócios de base científica demandam, geralmente, investimentos maiores e por mais tempo, e enfrentam um desafio na medida em que há menor disponibilidade de capital de risco proveniente do setor privado. Algumas razões que contribuem para esses desafios de capital são, por exemplo, o risco tecnológico, a infraestrutura de pesquisa necessária (mais sofisticada) e um maior tempo de maturidade até o mercado. Ou seja, essas inovações não só requerem mais recursos como demoram mais para retornar o investimento. Outros fatores que dificultam o negócio de base científica são a dificuldade de o investidor entender a tecnologia e a falta de um modelo de negócio claro para aplicações comerciais ainda não identificadas.

Vonau Flash (Patente licenciada)

Cientista empreendedor: Prof. Humberto Gomes Ferraz, USP

Inovação: Medicamento contra enjoo que se dissolve na boca e pode ser ingerido sem água

Origem da tecnologia: Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP)

Ano de depósito da patente: 2008

Empresa que licenciou: Biolab Farmacêutica

Status: Mais de R$ 130 milhões em vendas anuais

Humberto Gomes Ferraz é farmacêutico e bioquímico pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e possui mestrado e doutorado em fármacos e medicamentos pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e coordenador do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação em Farmacotécnica (Deinfar). Como um pesquisador de carreira, já publicou mais de 90 artigos científicos. Entretanto o que mais o motiva é a possibilidade de levar suas descobertas para a sociedade.

Sempre buscando parcerias com empresas da indústria farmacêutica, Humberto recebeu um desafio da Biolab Farmacêutica em 2004. Os britânicos haviam desenvolvido um comprimido para tratar náuseas e vômitos e, para torná-lo solúvel na boca, utilizavam a liofilização (um processo de desidratação utilizado na indústria farmacêutica e também para alimentos). O desafio de Ferraz era, então, desenvolver um processo mais barato que a liofilização para tornar os comprimidos de náuseas e vômitos solúveis na boca sem a necessidade de ingestão de água.

As pesquisas do professor na USP conseguiram resolver o desafio e se transformaram em uma patente, que por sua vez foi licenciada para a Biolab e transformada no produto Vonau Flash. Hoje o Vonau Flash é líder de vendas no Brasil e rende royalties para a universidade e seu inventor. Desde que o produto começou a ser vendido até o final de 2018, a USP já havia recebido R$ 8,66 milhões em royalties. As vendas seguem aumentando e a expectativa é que os valores repassados à universidade superem os R$ 2 milhões por ano, sendo esta a patente licenciada que mais rende royalties à USP.

2. Infraestrutura de pesquisa. Por serem intensivas em conhecimento, as inovações de base científica normalmente utilizam equipamentos de pesquisa, materiais ou reagentes específicos, necessitando de laboratórios equipados, como dissemos, e profissionais especializados. Isso faz com que a maioria das spin-offs e empresas inovadoras, sejam elas nascentes ou consolidadas, continuem geograficamente próximas a universidades e centros de pesquisa, mantendo um nível de colaboração com laboratórios de pesquisa e cientistas externos à empresa.

3. Tempo de maturidade mais longo (time-to-market). Os processos de negócios tendem a andar mais rápido, enquanto a ciência é mais paciente. Ainda que os esforços de aplicação comercial sejam direcionados para tecnologias mais maduras ou em fase de consolidação, o tempo de desenvolvimento de uma inovação desde a demonstração de funcionamento em escala laboratorial até a comercialização, passando pela validação em campo, é mais amplo. Em casos de inovação em saúde, como novos fármacos, equipamentos médicos ou análises diagnósticas, adiciona-se ainda a necessidade de testes clínicos que precisam atender ao sistema regulatório.

4. Propriedade intelectual. A propriedade intelectual das inovações e negócios de base científica torna-se uma vantagem competitiva. Esta é uma característica que funciona como uma barreira de entrada a outros empreendimentos que queiram explorar um mesmo mercado.

5. Mindset do cientista. Os cientistas empreendedores e inovadores foram, em geral, bem treinados para entregar soluções aos problemas de pesquisa. Por outro lado, eles foram pouco treinados para responder perguntas de mercado, algo que requer um mindset diferente desse do ambiente acadêmico. Um desafio, portanto, é articular o problema de pesquisa e o problema de mercado, e desenvolver soluções que sejam ao mesmo tempo cientificamente consistentes e economicamente viáveis. Em muitos casos, uma alternativa é trazer novos sócios que possam incorporar habilidades e competências de negócios.

6. Interesse de corporações. As áreas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e de novos negócios das grandes corporações costumam se interessar pelas inovações de base científica, em muitos casos devido à existência da propriedade intelectual subjacente. O corporate venturing também – seja para fins de aquisição, para compra de equity ou para consolidar novos fornecedores.

AGORA TEMOS UM MARCO LEGAL DA CIÊNCIA, INOVAÇÃO E TECNOLOGIA

A Lei nº 13.243, promulgada em janeiro de 2016 e regulamentada em fevereiro de 2018, pode mudar as regras do jogo para a ciência empreendedora no Brasil. Seu objetivo é facilitar a interação entre Estado, universidades, centros de pesquisa e empresas com fins lucrativos, a exemplo do que ocorre em países como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França e Japão. Ela alterou nove leis ao todo: Lei de Inovação, Lei das Fundações de Apoio, Lei de Licitações, Regime Diferenciado de Contratações Públicas, Lei do Magistério Federal, Lei do Estrangeiro, Lei de Importações de Bens para Pesquisa e Lei de Isenções de Importações e Lei das Contratações Temporárias. Foi um caminho longo até aqui, mas a caminhada agora vai se acelerar.

Talvez os livros de história do futuro contem que a nova narrativa do desenvolvimento econômico no Brasil começou em 2004, com a Lei da Inovação, nº 10.973/2004, que estimulou a construção de ambientes de inovação especializados e cooperativos, e a participação das universidades e centros de pesquisa no processo de inovação das empresas. Um ano mais tarde, era publicada a Lei do Bem, nº 11.196/2005, que dispõe sobre incentivos fiscais para inovação. A ela atribuímos vários avanços: nasceram os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) nas universidades brasileiras, à semelhança dos Technology Transfer Offices (TTOs) das universidades dos EUA; firmaram-se formas de cooperação universidade-empresa, como compartilhamento de laboratórios; e o licenciamento e cessão de patentes pelas universidades ficou possível.

Os resultados apareceram. No último relatório disponível, no ano base de 2014, sabe-se que Lei do Bem beneficiou mais de mil empresas, que investiram em inovação quase R$ 2 bilhões na forma de renúncia fiscal e mais R$ 8 bilhões sem renúncia. Já para a Lei de Inovação há dados de 2017, quando 297 instituições científicas e tecnológicas preencheram o formulário do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) declarando ter fechado 1.977 contratos de tecnologia (entre licenciamentos, acordos de parceria, transferência de know-how e outros), no valor de R$ 500,2 milhões.

Tais resultados, temos consciência, ainda estão aquém do potencial de um país como o Brasil. A razão? A insegurança jurídica proporcionada seja por algumas lacunas legais ou por mecanismos que engessavam a cooperação entre universidade e empresa.

Só que, em 2016, a Lei da Inovação e mais oito legislações brasileiras foram alteradas e o novo marco legal veio tornar nossas universidades e centros de pesquisa mais acessíveis às empresas, oferecendo a estas a segurança jurídica que faltava. Por exemplo, foi autorizada a participação societária de universidades e centros de pesquisa em empresas. E agora os NIT podem virar entidades privadas.

Regula­mentaram-se também vários instrumentos de parceria para pesquisa, desenvolvimento e inovação, o que foi bem relevante. Alguns são o termo de outorga; o acordo de parceria para pesquisa, desenvolvimento e inovação; o convênio para pesquisa, desenvolvimento e inovação. Além disso, dispensou-se a licitação para comprar o produto que sirva à pesquisa na universidade e, importante, facilitou-se a negociação dos direitos de propriedade intelectual com empresas.

INOVAR É A ORDEM

A inovação é como uma nova ordem mundial. Trata-se de um fator estratégico fundamental para as organizações melhorarem seus resultados, liderarem mercados e estarem na vanguarda de suas indústrias. As empresas têm investido para inovar seus modelos de negócio, a experiência de seus clientes, o marketing e os processos internos – aproveitando, com sucesso, a revolução digital. No entanto ainda há um grande potencial inexplorado nas universidades e centros de pesquisa para gerar a inovação de base científica, aquela capaz de recriar mercados e desenvolver produtos que demandam conhecimento intensivo.

E, apesar dos desafios presentes para o estabelecimento do relacionamento entre mercado e ciência, existem bons exemplos de universidades e cientistas trabalhando para se aproximarem do mercado, assim como de empresas investindo para cooperarem com universidades e centros de pesquisa. Esses esforços têm gerado resultados, e esses resultados têm gerado vantagens competitivas e novos mercados veja os exemplos nos quadros ao longo do artigo.

Centro de Inovação em Novas Energias (CINE)

Coinvestidores: Fapesp, Shell Brasil, USP, Unicamp e Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen)

Investimento total: R$ 110 milhões em cinco anos

O Centro de Inovação em Novas Energias (Cine) é uma iniciativa à la tríplice hélice (academia-governo-indústria). Foi lançado em 2018 para desenvolver novos dispositivos de armazenamento de energia com emissão zero (ou próximo de zero) de gases de efeito estufa e que utilizem como combustível fontes renováveis, além de novas rotas tecnológicas para converter metano em produtos químicos.

O centro receberá um investimento total de R$ 110 milhões para um período de cinco anos, dos quais a Shell Brasil aportará um total de até R$ 34,7 milhões e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) investirá R$ 23,14 milhões em valores financeiros. Outra parcela, de R$ 53 milhões, virá da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP) e Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) como contrapartidas não econômicas na forma de salários de pesquisadores e de pessoal de apoio, infraestrutura e instalações.

O Cine terá quatro divisões de pesquisa: (1) armazenamento avançado de energia; (2) portadores densos de energia; (3) ciência de materiais e químicas computacionais; e (4) rota sustentável para a conversão de metano com tecnologias químicas avançadas. A missão do centro será produzir conhecimento na fronteira da pesquisa e, paralelamente, transferir tecnologia para o setor empresarial. Os resultados gerados poderão ser utilizados pela Shell para gerar startups ou firmar parcerias com outras empresas.

No entanto, para amplificar os resultados e explorar todo esse potencial, é preciso que haja participação intensiva de mais atores do ecossistema. De sua parte, cientistas e universidades precisam buscar compreender a realidade do mercado e se adaptar a ela, direcionando suas pesquisas e tecnologias para a solução de problemas que tenham conexão com a indústria. Também devem facilitar o caminho para o estabelecimento das parcerias com as empresas, tornando o processo mais claro, simples e menos burocrático. Já as empresas necessitam voltar a atenção para as tecnologias produzidas nas universidades, aumentando o dispêndio de energia e investimento para construir um relacionamento com essas instituições.

Se a inovação está na ordem dos dias atuais, mantê-la constante e intensa é um importante fator para construir o futuro. E, apesar da inovação incremental ser um processo importante e essencial para esse objetivo, é insuficiente. Quem quiser continuar a criar diferenciais e vantagens competitivas precisa avançar nas inovações disruptivas. As empresas devem se empenhar em estabelecer estratégias específicas para a inovação radical, definindo as universidades com que se relacionar, criando um processo de absorção das inovações ali produzidas e disponibilizando recursos para que isso aconteça, de maneira estratégica.

Embora seja grande, o potencial da ciência empreendedora ainda é subaproveitado no Brasil. Assim, as organizações que se aproximarem desse ecossistema estarão mais próximas de desenvolver inovações radicais e liderar mercados. Afinal, a liderança dos mercados dependerá cada dia mais da inovação radical.

Daniel Pimentel, Guilherme Rosso e Lucas Delgado
Daniel Pimentel, Guilherme Rosso e Lucas Delgado são pesquisadores do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da Universidade de São Paulo (PGT-USP) e fundadores da Emerge, organização que apoia cientistas empreendedores e impulsiona tecnologias de base científica até o mercado. Rosso é mestre em modelagem de sistemas complexos pela USP e Pimentel, mestrando na disciplina. Os autores agradecem ao professor Guilherme Ary Plonski, coordenador científico do PGT.

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