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Heartset além de mindset

Uma investigação empírica de empresas que atuam no Brasil mostra que a colaboração funciona melhor quando escolhida de coração pelo gestor e por todas as pessoas. Um programa de sete passos pode contribuir para isso

Fábio Betti e Erica Isomura
29 de julho de 2024
Heartset além de mindset
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Imagine que, entre 5 milhões e 7 milhões de anos atrás, um determinado grupo de primatas começou a se diferenciar de seus parentes mais próximos, os chimpanzés, a ponto de acabar desenvolvendo uma outra espécie de seres, os chamados hominídeos. Você já pensou no que teria permitido que o hominídeo evoluísse do chimpanzé para o Homo sapiens? 

A resposta pode ser intrigante, mas é conhecida, e muito simples: a colaboração.

Basicamente, existem duas emoções pré-verbais que tornam possíveis as interações humanas – a rejeição e o amor. A rejeição constitui o espaço de condutas que negam o outro como legítimo outro na convivência e que culmina com a separação. O amor constitui o domínio de condutas em que se dá a aceitação do outro como legítimo outro na convivência. Sem essa aceitação, não teria sido possível nossa evolução como seres humanos. A colaboração é uma das formas de expressão do amor e um dos princípios constitutivos de nossa espécie. E, desse modo, pode ser aprendida e desenvolvida.

Quanto mais nós, seres humanos, entendermos o papel das emoções em nosso viver, mais entenderemos os comportamentos e a capacidade adaptativa de transformação contínua. Com as organizações, não é diferente: elas são sistemas orgânicos e, portanto, regidas pelas mesmas leis de qualquer sistema vivo, e, como tais, buscam continuamente a conservação de seu bem-estar – mecanismo que, no caso dos mamíferos, é fortemente influenciado pelas emoções.

Neste artigo, vamos nos concentrar em nossas investigações empíricas no universo organizacional brasileiro – tudo aquilo que, como consultores, temos aplicado e aprendido com nossos clientes, que são empresas de diferentes tamanhos, segmentos e modelos de gestão. Com esses clientes, temos confirmado que há uma matriz comum que favorece – ou dificulta – a colaboração, presente em toda parte. São as emoções: as mesmas emoções pré-verbais de que falamos, seja o amor, seja a rejeição. 

O que é preciso acontecer para haver colaboração numa organização? As pessoas devem ser convidadas a conviver umas com as outras. Você pode obrigar uma pessoa a trabalhar uma determinada quantidade de horas por dia, mas não consegue obrigar ninguém a conviver a ponto de colaborar com outra pessoa – essa tem de ser uma escolha individual. Então, é importante que as pessoas entendam o convite para colaborar e escolham fazê-lo.

Também é necessário que percebam por si os ganhos (evolutivos) em colaborar, como os hominídeos fizeram na Pré-História. Se elas não veem sentido em colaborar porque já estão satisfeitas com os resultados que vêm obtendo sozinhas, nenhum trabalho colaborativo dará certo. 

Na busca do trabalho colaborativo, tem-se falado muito em mudar o “mindset”, isto é, as crenças e valores que definem a forma como agimos e tomamos decisões. Por exemplo, derrubar os tabus tem a ver com isso. É algo bem-vindo, claro, porém de igual importância é mudar o “heartset”, ou seja, as emoções que estão por trás dessas crenças e valores. Aí, sim, a colaboração deixará de ser tratada como mera ferramenta, condição com baixa atratividade e efetividade. 

Em um time, cada pessoa participa, consciente ou inconscientemente, com seu mindset e seu heartset. À medida que as pessoas se organizam em grupos, passam a compartilhar necessidades em função dos objetivos comuns definidos e criam uma nova história que não é só a soma de suas histórias individuais; construção coletiva feita na colaboração gera uma história nova, que dá ao time uma especificidade e uma identidade grupal. Chamamos a atenção para dois aspectos inerentes a essa construção coletiva: a linguagem e a não negação do outro.

Linguagem e não negação

Se falamos de história, falamos de linguagem. E, como seres humanos, somos imersos nela, o que significa que, ao mudarmos a linguagem, mudamos a forma como nos relacionamos e agimos. 

Para promover o trabalho colaborativo, temos de, antes de tudo, repensar a linguagem que usamos nas organizações para sustentar contextos adequados à colaboração. A linguagem que prevalece hoje corresponde ao mindset ainda dominante em muitas organizações, que é o das empresas vistas como máquinas e o das pessoas vistas como peças de uma engrenagem. Isso não ajuda a fortalecer uma cultura colaborativa.  

Não existe colaboração na desconfiança, emoção ligada à rejeição em que o outro surge como ameaça a minha vida. Basta um e-mail enviado a mim com cópia a meu supervisor me cobrando algum tipo de ação para a confiança entre nós ser seriamente abalada. 

Você já fez isso? Pense bem: quando enviamos um e-mail para um colega cobrando-o de alguma coisa e copiamos outras pessoas como mecanismo de defesa, qual é a mensagem que estamos transmitindo? De que confiamos nele ou de que não confiamos? Bingo! Tanto a causa como a consequência mais óbvia da prática desse tipo de jogo nas empresas é o fortalecimento de uma cultura baseada na desconfiança e na competição entre colegas e áreas, e não em colaboração e sinergia. 

Falemos, então, da negação do outro. Competir é, de certa modo, negar o outro. A competição que se constitui culturalmente entre os seres humanos estabelece um modo de relação em que o fundamental para alguém obter algo é que o outro não o obtenha. A competição, vale esclarecer, é um fenômeno cultural e humano, não constitutivo biologicamente. Por exemplo, se dois animais se encontram diante de um alimento e apenas um deles o come, isso não é competição – afinal, não é fundamental que um não coma para o outro comer. 

Há uma forma adicional de negar o outro, mais sutil, bastante observada em equipes cujos membros convivem há muito tempo. Esse convívio leva a um “information bias” – em tradução livre, a distorção do julgamento de um observador por ele estar intimamente envolvido com o objeto de sua observação. Os membros operam como se já conhecessem o outro o suficiente para julgar o que ele ou ela vai dizer. Além disso, para não colocarem em risco o senso de pertencimento, as pessoas desse tipo de grupo acabam desafiando menos umas às outras, o que se traduz em menos capacidade de inovar e de encontrar boas alternativas para lidar com desafios complexos. 

Trabalhar por uma cultura colaborativa não significa tratar todas as pessoas igualmente. Isso seria injusto e resultaria na perda da potência das pessoas, ao considerá-las como uma massa uniforme e não como pessoas únicas. É, isto sim, deixar o outro aparecer, e se permitimos que o outro apareça, podemos nos encontrar para conviver e escolher trabalhar juntos, emergindo daí a colaboração.

É preciso deslocar-se de um mindset e um heartset competitivos e negacionistas para um mindset e um heartset colaborativos, o que requer das empresas que compreendam como estão influenciando o convívio entre as pessoas. Não distribuem o poder em processos de tomada de decisão? Não estão criando movimentos mais ágeis? Não empoderam as pessoas para que sejam mais autônomas e responsáveis, e mais conectadas ao espírito do tempo? Assim dificilmente evoluirão para ambientes mais colaborativos – aliás, é desejável que evoluam também para ambientes mais saudáveis do ponto de vista biológico. 

A boa notícia para os brasileiros é que há indícios de que somos mais colaborativos – na linguagem, sobretudo – e menos individualistas – na não negação do outro, na medida em que valorizamos uma perspectiva coletiva de vida.

Razões para não mudar

Então, se está tão claro que tudo tem de mudar na direção da colaboração, e que uma organização baseada na aprendizagem em equipe e na qualidade do diálogo tem um significado bem maior e sustentável, por que as empresas não mudam logo? Há duas razões. A primeira é que simplesmente é mais fácil criar uma organização pautada por políticas, controle e hierarquia, e os seres humanos costumam preferir o que é mais fácil. A segunda é o que estamos dizendo. A escolha ganha força mesmo quando parte do coração, não de argumentos racionais. Como Mary Oliver escreve, em seu poema The Journey: 

“Um dia você finalmente soube / O que tinha de fazer / E começou”. 

Um programa de sete passos

Se você escolheu, com o coração, fortalecer a cultura de colaboração em sua organização, pode criar seu próprio programa. Uma ressalva: esta não é uma receita de bolo, nem sequer um método, mas fruto de nossa experiência empírica no trabalho de ajudar pessoas e organizações em sua jornada evolutiva, tendo na colaboração a dinâmica essencial e no amor – ou na confiança – a emoção central.

1. Aceitação e ressignificação da crise ou tensão

Ressignifique a tensão ou crise como um convite do contexto vivido pela organização, time ou indivíduo para um novo ciclo adaptativo. Essa é a energia de que um sistema vivo precisa para evoluir, deslocando-se do estado atual para o desejado. 

• A Mineração Rio do Norte (MRN), preocupada com a queda, em 2014, de dez pontos percentuais no índice Great Place to Work, ressignificou essa tensão como um pedido claro de seus funcionários no sentido de uma cultura mais dialógica e colaborativa. O resultado é que, em menos de um ano, a empresa conseguiu engajar todos os colaboradores em um movimento de transformação que culminou com melhorias em todos os indicadores críticos, como segurança, fluxo de caixa, volume de produção, além do GPTW, índice que cresceu impressionantes 30 pontos percentuais.

2. Visualização de um novo futuro escolhido

Olhe para o futuro e perceba que continuar convivendo com os mesmos padrões atuais não é mais uma opção. Imagine uma visão de evolução possível num horizonte de 1 a 3 anos. 

• O Centro Universitário Celso Lisboa é um exemplo de visualização e escolha do futuro. Depois de 46 anos, transformou-se em uma startup de educação. Por acreditar em uma economia compartilhada e um mundo abundante, professores e alunos reinventam, a partir de um novo modelo de relacionamento, a forma de colaborar com a educação do futuro.

3. Convite à organização para conviver e se transformar junto

Convide outros agentes do sistema para empreender juntos esse novo ciclo adaptativo, reconhecendo a capacidade de encontrar novas formas de funcionamento quando se acessa a inteligência coletiva. 

• “A Verte, consultoria de engajamento, transformou-se em uma organização com gestão compartilhada. Suas principais mudanças na convivência vertem na cocriação de soluções ao redor do mundo, com equipes trabalhando com mentalidade ágil e colaborativa em projetos que geram resultados intangíveis de grande valor, relatados pelos clientes”, conta Sandra Rossi, sócia fundadora da Verte.

4. Mapeamento dos padrões existentes e padrões emergentes

Reconheça os padrões de funcionamento da empresa, sejam os padrões históricos, sejam os novos padrões que emergem como consequência natural do novo ciclo adaptativo desencadeado por meio da tensão ou crise. 

• Na CBA, empresa do grupo Votorantim, a rede de líderes foi convidada a repensar a cultura da empresa e acabou identificando na divergência construtiva um padrão emergente, o que levou a organização a evoluir seu sistema de metas para um processo mais participativo e dialógico.

5. Reconhecimento da autonomia e da corresponsabilidade

Identifique o nível de autonomia dos agentes do sistema que estão liderando o novo ciclo adaptativo, para que o estado desejado seja factível.  

• “A C.Vale, cooperativa agroindustrial, se propôs a pensar com um novo mindset e heartset, o que permitiu liberar a potência das pessoas envolvidas, dando mais fluidez aos processos, e também a suas emoções. Juntas, elas compartilham informações e planejam ações na forma de projetos internos com equipes multidisciplinares e metodologias ágeis”, diz Sandra Mara, gerente de RH da C.Vale.

6. Identificação e prototipação de ações de acupuntura (ciclo de ações adaptativas)

Crie uma ou mais ações que os agentes do sistema considerem potencialmente capazes de provocar um deslocamento da organização na direção desejada, e que possam ser implementadas imediatamente de modo experimental. 

• A filial brasileira da dinamarquesa Novo Nordisk criou há quatro anos um fórum de líderes de vários níveis hierárquicos que se reúnem periodicamente para atualizar a visão de futuro e definir ações de acupuntura e projetos estruturais para direcionar os diversos movimentos da organização em direção a essa visão.

7. Reflexão sobre aprendizados

A vivência de etapas anteriores revelará padrões que estavam presentes em sua organização. Com um olhar mais atento e ações de impacto, esses padrões geram novos conhecimentos e, então, novos movimentos. 

• Por meio de contínuas reflexões e aprendizados, “a FutureBrand, consultoria global de branding, evoluiu para um modelo menos vertical e com equipes multidisciplinares, dando às pessoas mais autonomia e responsabilidade e ganhando um ambiente de colaboração que tem permitido crescer de maneira sustentável”, diz Hélio Carvalho, CEO e sócio da FutureBrand SP. 

Colaborar começa pela aceitação de um modo de conviver em que a emoção predominante é o amor. Este artigo é um convite para você refletir sobre esse convívio mais colaborativo, buscando a coerência entre o que pensa, sente e faz, ampliando o mindset e liberando o heartset, integrados na parte mais visível e prática da colaboração – nosso bodyset.

Fábio Betti e Erica Isomura
Fábio Betti é sócio da Corall Consultoria e consultor especializado em comunicação de liderança, cultura de diálogo e facilitação de processos de inovação e transformação cultural. É professor convidado de instituições como Aberje, ISAE-FGV, Fundação Dom Cabral e Fiap. Iniciou a rede Comunicação do Futuro. Erica Isomura é sócia da Corall, consultora e coach sistêmica especializada em sistemas de gestão compartilhada e colaborativa. Os autores agradecem a colaboração de Andrea Bulbarelli, Daniela Tavares, Daniella Lopes, Fernando Lanzer, Irene Mello, Paulo Amaral Resende, Queila Patrícia Dantas, Ricardo B. Motta e Rubens Bresciane.

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