No Festival ALMA, Peter Senge enxerga uma janela de oportunidade de mudança de dois anos e vê dois movimentos disputando o design do novo mundo – um de esperança e um de medo
Peter Senge, no canto superior esquerdo da foto, é professor sênior da MIT Sloan School of Management, cofundador da (MIT) Academy for Systemic Change e uma das maiores autoridades mundiais em pensamento sistêmico. E propõe uma maneira distinta de olhar para a pandemia do novo coronavírus. Ele a externou, no dia 8 de abril último, a uma plateia de brasileiros que, em seus feedbacks, mostraram-se surpreendidos, e mais otimistas em relação ao futuro (ou menos pessimistas), durante sua apresentação no Festival ALMA – Festival Digital de Negócios Conscientes.
Para Senge, estamos diante de uma oportunidade única de fortalecer o “sistema imunológico da nossa sociedade”, para que esta possa ser realmente um sociedade saudável. Porém isso exige fazer importantes mudanças no modelo social dominante hoje, que é o modelo ocidental. São mudanças bottom-up, de baixo para cima, descentralizadas.
A MIT Sloan Review Brasil, um dos veículos oficiais do Festival ALMA, acompanhou a palestra de Senge e registra a seguir alguns dos principais pontos:
Deveríamos olhar com mais atenção para o que aconteceu na China. Muitos atribuíram o sucesso deles em lidar com a epidemia ao governo central e autoritário. Isso é um raciocínio simplista e errado. Os chineses são extremamente empreendedores e autônomos, tanto que se brinca que os chineses fora da China, espalhados pelo planeta, são a quarta maior economia mundial. Pois os chineses usaram uma abordagem integrada para tratar a Covid-19, que combina a medicina ocidental e a medicina chinesa; a primeira combate a doença, enquanto a segunda fortalece o doente (sua imunidade). Isso foi muito efetivo para reduzir o uso de leitos em unidades de terapia intensiva, por exemplo, apesar de eles terem, proporcional dez a vinte vezes mais casos do que a média dos países europeus. Assim evitou-se a sobrecarga e a própria falência dos hospitais e do sistema de atendimento à saúde como um todo que tem sido o maior problema como Itália, Espanha e Estados Unidos, entre outros.
Deveríamos olhar com mais atenção para o que está acontecendo na British Columbia, no Canadá, especialmente em relação à comunicação. Eles não estão na mesma sintonia do restante do mundo, que usa uma mentalidade de guerra para lidar com a pandemia, de combate ao inimigo invisível que é o novo coronavírus – uma mentalidade típica de lideranças masculinas. A British Columbia optou, em vez disso, por uma linguagem amorosa, de acolhimento, e isso está fazendo toda a diferença. As mensagens da ministra da Saúde da British Columbia explicitam isso com clareza. Uma das mensagens dela, por exemplo, foi voltada especificamente aos adolescentes da região, com os quais se mostrou compassiva e empática, mostrando entender que estar trancados em casa com os pais é um sacrifício para eles. Esse tipo de comunicação amorosa aumenta o nível de imunidade de uma sociedade, à medida que a conforta e a tranquiliza; a comunicação de guerra reduz a imunidade. Importante: isso é feito sem que informações sejam ocultadas ou minimizadas. A transparência sobre a gravidade das ameaças é total.
Como podemos passar a pensar e a agir de maneira sistêmica? Talvez tudo comece por entender quão dependentes somos do modelo mental ocidental, que é baseado em luta. É tão alta a resistência a ir para casa porque o impulso é sempre lutar. Isso é incrivelmente simbólico. E, enquanto formos tão dependentes da mentalidade ocidental de combate, como somos hoje, estaremos vulneráveis. Trata-se da mentalidade de procurar sempre um bode expiatório para culpar desde culpar os chineses pelo coronavírus até culpar as pessoas que são contra a economia. Trata-se da mentalidade de esperar salvadores da pátria que nos salvem.
Também é preciso entender que líderes, quaisquer que sejam eles, têm uma capacidade bastante limitada. A resiliência em um sistema tem de se construir em cada membro do sistema, e a construção acontece com mudanças, surpresas, ameaças – ou seja, com tudo isso que estamos vivendo agora com a Covid-19.
Para agir de maneira sistêmica, precisamos, no curto prazo, falar a verdade. Não estamos tendo azar de ter pandemias e desastres ambientais. Não é que o sistema socioeconômico e político esteja quebrado e precisa apenas de um conserto. Não é como tivesse havido efeitos colaterais indesejados ao sistema que quis depender de energia barata e alimentos baratos e não deu nenhuma atenção aos efeitos residuais disso. Esse modelo gerou os resultados que seu design queria, intencionalmente, que fossem gerados. É ingenuidade pensar em consertar o modelo.
No longo prazo, para agir de maneira sistêmica, precisamos focar a educação, uma que elimine a autoridade em grau excessivo de quem quer que seja e que identifique as fontes de desequilíbrio sistêmico (desigualdade etc.) e se coloque contra elas. Quando for possível suspender o isolamento social e as crianças voltarem às aulas presenciais, é interessante começar o que é uma das melhores medidas sistêmicas para a construção de imunidade social. Como tudo começa pelas crianças, é interessante rastrear o bem-estar delas desde os 10 ou 11 anos de idade, pelo menos. São os dados que podem nos contar que medidas precisam ser tomadas para aumentar a saúde da sociedade.
O pensamento sistêmico não prescinde de líderes, é claro. Mas os líderes sistêmicos são muito diferentes dos atuais, que se colocam como os responsáveis por tudo. Até porque o modelo de liderança atual, centralizador, consegue principalmente fazer grandes estragos; os benefícios gerados não são significativos. É muito mais fácil fazer coisas que afetam negativamente muitas pessoas do que fazer coisas que as afetem positivamente. Um exemplo do que pode ser o líder sistêmico é bem ilustrado pelo que seria a relação ideal entre professor (líder) e aluno na sala de aula. As habilidades técnicas do professor importam, porém, em termos de liderança, o mais importante é o professor formular ao aluno perguntas que o façam pensar, numa relação de respeito mútuo. É isso que funciona melhor. E é esse modelo de liderança que funcionará melhor também nas empresas e nos governos. Indagado a respeito, Senge observou que líderes surgem tanto entre os privilegiados como entre os não privilegiados.
Qualquer mudança que seja feita tem de ser uma mudança de design “change by design”, projetada intencionalmente. O melhor período para fazer isso será entre seis meses e dois anos depois do fim do isolamento social – nesse período, não terá dado tempo de as coisas voltarem ao normal. Muitas pessoas já vinham tentando coisas novas, e esse período vai catalisar as tentativas nessa direção. Tende a ser um fluxo de experimentos e de emoções em resposta a eles. Basicamente haverá dois movimentos emocionais: um de medo e um de esperança. Dá para prever um pouco do que pode acontecer com base na escala que esses movimentos atingirem: se a sociedade estiver muito dominada pelo “medo”, ela vai preferir um poder centralizador. Se estiver em um estado de esperança – alimentada por muita cooperação, compaixão, generosidade e gratidão –, há uma grande chance de prevalecer uma sociedade mais saudável, equilibrada, moldada pelo pensamento sistêmico.
Essas foram as principais observações de Senge. Para finalizar, o professor da MIT Sloan School deixou claro que se ocupar do design desse novo mundo não significa, de modo algum, deixar de lidar com as necessidades mais urgentes. “Quem tem fome precisa receber comida; quem está doente precisa de tratamento. Apenas não é possível nos concentrarmos apenas nisso, para aliviar a própria culpa de ter uma condição mais privilegiada; devemos trabalhar sobre as condições sistêmicas da vulnerabilidade da nossa sociedade”, disse no encerramento.
* O Festival ALMA – Festival Digital de Negócios Conscientes foi organizado pelo Grupo Anga, do qual a editora Qura, que publica esta revista, faz parte, e contou com o apoio do Capitalismo Consciente Brasil. Peter Senge foi entrevistado por Ryoichi Penna, CEO do Grupo Anga, e por Pedro Nascimento, CEO da Qura Editora, que publica as revistas MIT Sloan Review Brasil e HSM Management.