Não estamos confortáveis. Momentos de crise fazem isso: nos chamam para o desconforto, para a coragem de nos responsabilizar, para a responsabilidade de tentar. Discriminação e desrespeito, até quando?
Em um ano já tão desafiador, minha agenda do mês de novembro ficou ainda mais intensa. E não é para menos. Além das habituais demandas dos papéis que ocupo, não param de chegar convites para palestras e conversas sobre o mês da Consciência Negra. Eventos que além de rememorar e celebrar a saga de Palmares, se propõe a discutir diversidade e equidade racial nas organizações. Mas não se engane. Toda essa agitação não é sobre o dia 20 de novembro. Não é nem sobre novembro.
Dois mil e vinte é um ano que está funcionando como uma grande lupa. Um ano que nos chamou para a responsabilidade coletiva de forma urgente. Que deixa mais que evidente que o racismo (e todos os seus efeitos e consequências) não é um tema para ser lembrado, é para ser provocado e mexer com as estruturas, inclusive dentro das organizações. Por convicção ou por pressão.
Um ano sobre urgências humanas. Sobre se indignar com uma realidade vergonhosa que produz privilégios raciais para alguns e exclusão para tantos. A pandemia de coronavírus separou barcos, iates e botes. Racismo, desigualdades sociais, acesso desigual a sistemas de saúde, moradia inadequada e impossibilidade de se isolar colocam a população mais vulnerável como a mais afetada pela pandemia.
Vale lembrar que uma empregada doméstica foi a primeira vítima fatal da Covid-19 no Rio de Janeiro. A quem a “patroa” não reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia estar contaminada por coronavírus. De um caso pontual em março para um triste padrão: a doença causada pelo coronavírus no Brasil mata mais as pessoas negras e pobres. Por causa do racismo estrutural, pessoas negras têm piores condições de vida. Sempre foi sobre isso, mas agora temos a lupa, que não vai nos deixar fingir que não sabíamos.
Este ano, como espectadores, estamos assistimos das nossas janelas e das telas sempre ligadas que, se a Covid-19 asfixia mais as pessoas negras, o racismo também segue matando, sufocando e tirando o nosso ar. O “”fique em casa”” não protegeu o menino João Pedro. Quatorze anos. Assassinado em casa. Brincando com primos. Levado pela polícia. Sem nenhuma notícia para a família. A manchete de violência se repete. Mirtes não pôde fazer “”home office””. Ela teve que cuidar do cachorro da patroa Sari Corte Real, enquanto ninguém cuidou do pequeno Miguel.
No conforto dos lares, no Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram, pessoas decretaram: “”é preciso ser antirracista””, “”vidas negras importam”” e lançaram um “”blackout Tuesday””, com telas pretas inundado nosso feeds. Hashtags e movimentos com clamores de mudanças. A verdade é que é bem mais fácil falar do que assumir a necessidade de mudar. O ativismo do teclado não encontra eco na realidade e na ação. Foi só saírem as notícias sobre recrutamento intencional que voltamos à programação normal: críticas infundadas sobre o tal do racismo reverso, discursos “”todas as vidas importam””, e questionamentos do tipo “”para que segmentar?””. Tanta gente desconfortável sem entender que não há transformação sem desconforto.
Esse chamado eu tomo emprestado da Mellody Hobson. É urgente que a gente tenha essa conversa como indivíduos sim, mas como negócios também. Afinal, lideranças corporativas talvez não consigam mudar o mundo, mas certamente podem mudar seus pequenos mundos. Para as marcas, a discussão sobre inclusão não é diferencial. É premissa. É responsabilidade.
Sou mulher, negra e executiva com atuação em empresas globais. Quantas pessoas como eu ocupam cadeiras semelhantes a minha no Brasil? Você conhece alguém? Você já foi liderado por alguma mulher negra na sua trajetória profissional? Segundo pesquisa do Instituto Ethos, no Brasil, mais de 56,2% da população é composta por homens e mulheres negras e apenas 4% dos executivos são negros. Destes, só 0,4% são mulheres negras. Mas mulheres negras são 28% da população brasileira. Mulheres negras são a base da hierarquia social. Somos o maior grupo étnico do país. A cara do brasil é uma mulher preta.
Minha história como “a primeira”, “uma das poucas” e a “única” mulher negra em vários espaços que ocupo definitivamente não me coloca como exemplo para negar os efeitos do racismo estrutural, ou autorizar discursos sobre “”meritocracia”” – que justificam desigualdades. Discursos que não questionam por que somos tão poucas, or que ainda somos exceção nas empresas. Algumas empresas celebram o aumento do número de mulheres em seus quadros de funcionários. E até um aumento do número de mulheres em papéis de liderança.
O discurso da nova vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, foi sobre isso. Sobre como mulheres negras ainda ocupam cadeiras solitárias nos espaços de poder. E por mais que sejamos as primeiras, não podemos ser as últimas, já que somos tantas e tão potentes. Nossos passos vêm de longe. Muito longe. Antes de nós, nossas ancestrais, Lélia Gonzales e tantas outras escreveram, gritaram, sangraram, lutaram e existiram (resistiram) com esperança para abrir nossos caminhos. Para celebrar nossos passos e aplaudir nossas histórias. Para que cada homem e mulher negra deste possa se reconhecer com convicção, se enxergar com afeto e potência mesmo que os outros não nos vejam assim.
Os preconceitos existem, mas é preciso lutar contra eles para que todos nós possamos ocupar os espaços há tanto tempo negados e bloqueados pela discriminação racial e pelo racismo estrutural, que atinge seu grau de maior perversidade no mercado de trabalho, na medida em que encurta sonhos, capacidades e o avanço do Brasil. Que tenhamos como antídoto para essa crise a coragem para mudar o que não podemos mais aceitar e a esperança pra continuar hoje, amanhã e depois de amanhã.
Em um dos encontros que tive com a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro, ela me disse a frase acima: o país que foi capaz de construir um belo mito da democracia racial deve ser capaz também de torná-la realidade. Se ela acredita, eu também acredito. E você?
PS: Esta coluna foi escrita antes do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por seguranças em um supermercado Carrefour de Porto Alegre. A cada 23 MINUTOS há um novo George Floyd no Brasil. A cada 23 MINUTOS um jovem negro é assassinado no Brasil. Chega! Nossas vidas negras importam, sim. #justiçaporBeto”