As inovações e oportunidades esperadas com a edição da Lei nº 14.286/2021, que moderniza a legislação existente sobre o mercado de câmbio e os capitais internacionais
A última década vem produzindo uma verdadeira revolução no mercado financeiro brasileiro, tendo a tecnologia e seu principal regulador, o Banco Central do Brasil (BC), como principais agentes transformadores. Vivemos um tsunami regulatório, com um número sem precedentes de novas normas, entrantes e modelos de negócios inovadores, principalmente nos mercados de crédito, pagamentos e investimento. Após uma certa demora, o ano de 2022 tem tudo para ser aquele em que o centro das atenções estará voltado para o mercado de câmbio e os capitais internacionais, em razão da publicação da Lei nº 14.286 (Nova Lei Cambial) no apagar das luzes do ano passado.
O BC há tempos assumiu que uma de suas missões é aumentar a competição no mercado financeiro, pois entende que essa é a forma mais adequada de torná-lo mais eficiente e inclusivo, resultando em maior conveniência, melhores serviços e crédito mais abundante e barato aos cidadãos e empresários brasileiros. Paralelamente, a inovação e a tecnologia avançam em uma velocidade sem precedentes, proporcionando diminuição dos custos de produção, facilitação ao acesso e manutenção de dados, bem como novas expectativas dos clientes em relação a produtos e serviços. Como resultado, o BC tem procurado induzir e estimular um movimento de inovação pró-competitivo no seu campo de regulação e supervisão.
Essa revolução não ocorre apenas no mercado de crédito, mas também em mercados correlatos, como a distribuição de produtos de investimento e o de pagamentos. Vivenciamos, no passado recente, a adoção de diversas medidas nesse sentido, como o marco legal de meios de pagamento, a criação das fintechs de crédito, a regulamentação dos recebíveis de cartão de crédito, o Pix e o open banking. O movimento é estrutural, profundo e irreversível, capitaneado pelo próprio regulador.
Curiosamente, uma frente importante que ficou para trás nessa agenda transformadora do BC é aquela associada ao mercado de câmbio e aos capitais internacionais. Uma das razões para isso é o fato de a matéria ainda estar disciplinada de forma detalhada em leis federais, o que limita as possibilidades de mudanças estruturais por meio das normas do BC, exigindo o envolvimento do Congresso Nacional, mais moroso e suscetível à agenda política, para viabilizar as alterações necessárias. Câmbio e capitais internacionais são temas sensíveis, pois se relacionam com as políticas monetária e macroeconômica do país. Por isso cautela e paciência foram necessárias para elaborar o texto da nova lei e apresentá-lo no momento oportuno ao Congresso Nacional.
Assim, apesar de nunca ter sido esquecida ou deixada de lado, pois vem sendo elaborada nos corredores do BC há alguns anos, a reforma do mercado de câmbio e dos capitais internacionais ganhou os holofotes somente a partir de 2019. Nesse ano, o anteprojeto de lei elaborado pelo BC foi encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Recebido na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei nº 5.387/2019, ficou parado durante o início da pandemia, mas depois tramitou em regime de urgência e foi aprovado. No início de 2021 seguiu para o Senado Federal, sendo ratificado em dezembro daquele ano. Com a sanção presidencial, passou a existir como Lei nº 14.286/2021. O texto final sofreu pouquíssimas alterações no Congresso Nacional, mantendo a essência do que foi pensado pelo BC.
A Nova Lei Cambial, representa, talvez, o passo final num longo processo de desmonte dos excessivos controles cambiais vigentes no país. Até os anos 1980, empresas e cidadãos brasileiros eram obrigados a obter autorização prévia do BC para comprar dólares para operações corriqueiras, como importação de remédios. Existiam, por exemplo, limites rígidos na aquisição de moeda estrangeira para viagens internacionais. A manutenção de valores no exterior era impensável, não só em razão das limitações para remessa de recursos para fora do país, mas também pela obrigação de cobertura cambial. Consequentemente, as atividades dos doleiros eram toleradas e os jornais divulgavam diariamente a cotação do dólar no mercado paralelo.
De lá para cá, é verdade, boa parte dessas amarras foi flexibilizada. Em 2005 houve a unificação dos mercados de câmbio livre e flutuante, a qual criou um caminho mais transparente para movimentação de recursos para dentro e para fora do país. Antes, isso era feito por meio das contas em moeda nacional de não-residentes, à época conhecidas como CC5, que ganharam má reputação ao longo de inúmeras CPIs destinadas a apurar escândalos financeiros, por seu uso em esquemas de lavagem de dinheiro. Por conta disso, tais contas permaneceram sob um rígido controle do BC e os bancos também são muito reticentes em abri-las.
Em 2008, a obrigação de cobertura cambial foi totalmente extinta. Ainda mais recentemente, e se antecipando à própria Nova Lei Cambial, o BC permitiu que instituições de pagamento autorizadas possam atuar no mercado de câmbio, bem como ampliou as possibilidades de uso de contas de pagamento em operações cambiais.
Os avanços dos últimos vinte anos são inquestionáveis, mas ainda há muito o que fazer. Melhorar o ambiente de negócios, inclusive favorecendo e desburocratizando o comércio exterior. Proporcionar uma maior agilidade das operações cambiais e financeiras, reduzindo o custo Brasil e favorecendo um cenário mais propício para a realização de negócios. Abrir o leque de possibilidades para os clientes terem acesso a produtos financeiros no exterior, por meio de bancos locais. Essas são algumas das dores daqueles que vivenciam o dia a dia desse mercado.
Muitos desses problemas decorrem do modo como a legislação cambial se desenvolveu no país. As primeiras leis foram criadas há mais de 100 anos, muitas delas durante períodos de escassez de moeda estrangeira e restrições na balança de pagamentos, visando controles cambiais e fixação de preços. Conforme foram sendo editadas, as novas leis sobre a matéria, inclusive as de viés mais progressista, não eliminavam as suas predecessoras. Com isso, a legislação cambial encontra-se dispersa em dezenas de instrumentos legais, com comandos rígidos, repetitivos e por vezes conflitantes entre si. Uma colcha de retalhos que gera insegurança jurídica e elevado custo regulatório, além de impedir a adoção de uma regulamentação infralegal mais atual pelo BC.
A Nova Lei Cambial apresenta-se como uma reforma profunda e estrutural porque ela elimina de forma definitiva todas as amarras que impedem a adoção de conceitos modernos e alinhados a diretrizes recomendadas internacionalmente pela ONU, OCDE e GAFI, trazendo, ao mesmo tempo, simplificação legal e segurança jurídica. Isso é feito de três formas principais.
Primeiro, a Nova Lei Cambial revoga as diversas leis e regras esparsas, antigas e obsoletas que tratavam da matéria. Um exemplo emblemático é a Lei no 4.182, de 1920, que criminaliza o “jogo sobre câmbio”. Em seguida, ela unifica as regras atinentes ao mercado de câmbio brasileiro e os capitais internacionais em um único instrumento normativo, conciso e principiológico. Os detalhes virão da regulamentação a ser editada pelo BC, possibilitando que novas mudanças, quando necessárias, sejam feitas de forma rápida, técnica e segura. Por fim, a Nova Lei Cambial sedimenta em nível de legislação federal os princípios prevalentes do mercado de câmbio, tais como a livre pactuação das operações cambiais, a participação das instituições autorizadas a operar pelo BC e a obrigatoriedade da adoção de controles para prevenir atos ilícitos nesse mercado, em especial lavagem de dinheiro, nesse mercado.
Na sistemática adotada pelo novo marco legal, a profundidade das reformas dependerá também das mudanças infralegais a serem conduzidas pelas autoridades monetárias. A expectativa é, sem dúvida, de uma agenda pró-competitiva, moderna, progressista e inovadora, visando flexibilizações e aprimoramentos, mas as implementações deverão ser feitas de forma gradual e prudente. Nesse contexto, o BC também tem as suas próprias questões internas para resolver, uma vez que, ao longo do tempo, alguns dos controles cambiais existentes passaram a servir de ferramentas instrumentais a alguns de seus departamentos, como o de estatística e de supervisão.
Por que a reforma era necessária?
A legislação brasileira sobre câmbio e capitais internacionais está espalhada em mais de 40 leis e decretos, com mais de 400 artigos, alguns editados há mais de 100 anos. Tais normas são repetitivas e potencialmente conflitantes, trazendo insegurança jurídica aos participantes desses mercados. Além disso, o arcabouço legal atualmente vigente foi desenvolvido ao longo de períodos de escassez de moeda estrangeira e restrições na balança de pagamentos.
São regras rígidas e obsoletas, inconsistentes com a economia globalizada e a inovação, que dificultam as exportações e importações, o investimento produtivo e a livre movimentação de capital, além de impor um custo regulatório elevado aos agentes autorizados, resultando em produtos caros, burocráticos e com user experience ruim.
Como o BC não pode regular além ou contra aquilo previsto nas leis, todo esse arcabouço existente funciona como uma amarra jurídica que impede mudanças estruturais.
Um outro aspecto importante é que a Nova Lei Cambial entrará em vigor somente após um ano contados de sua publicação, ou seja, final de 2022. Nesse período, ocorrerá a revisão e a implantação da regulamentação infralegal pelo BC, como explicado acima, bem como a adaptação das entidades públicas e privadas aos novos procedimentos, regras e exigências.
Ainda que muitos outros detalhes virão ao longo deste ano, já é possível adiantar algumas novidades e oportunidades, levando em consideração o próprio texto da Nova Lei Cambial, bem como algumas manifestações realizadas pelo próprio BC. As principais delas estão descritas a seguir:
– Bancos e demais instituições financeiras brasileiras poderão alocar e investir no exterior recursos captados no Brasil, inclusive por meio da realização de empréstimos e financiamentos. É o fim da famigerada Circular 24/66, regra antiga e anacrônica que vedava esse tipo de atuação offshore diretamente pelos bancos.
– Exportadores podem utilizar recursos mantidos no exterior e oriundos de exportação para realização de mútuos (atualmente, apesar do fim da cobertura cambial, há restrições para esse tipo de uso).
– Mais possibilidades para o BC criar ou simplificar modalidades de licença para atuação no mercado de câmbio. Mais abertura e maior e competição.
– Operações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie e entre pessoas físicas até US$ 500 não estão sujeitas às regras cambiais. Possibilidade de criação de modelos de troca de moedas peer-to-peer.
– Maior liberdade para formalização dos contratos de câmbio.
– Registros de capital e de empréstimo estrangeiros devem ser simplificados substancialmente, especialmente para operações de baixo valor.
– Simplificação da codificação cambial, devendo ser substancialmente substituída por meios alternativos de coleta de informações. Instituição autorizada não é mais responsável pela classificação da finalidade da operação cambial.
– Instituições que operem no mercado de câmbio não poderão exigir dos clientes dados ou certidões que estejam disponíveis em bases próprias, públicas ou privadas de acesso amplo.
– Plena correspondência bancária internacional em reais.
– Possibilidade de instituições não residentes que prestem serviços de compensação, liquidação e custódia no mercado internacional abrirem e manterem contas de depósito e/ou contas de custódia em reais no BC.
– Equiparação das contas de não-residentes às contas correntes de residentes, com possível eliminação da sistemática das Transferências Internacionais em Reais (TIR) e simplificação substancial da sistemática de investimento por meio da conta 4373.
– Curso forçado do real continua como regra geral. O novo marco legal consolida as exceções em que pagamentos em moeda estrangeira no Brasil podem ser realizados e traz algumas inovações pontuais (como a possibilidade de exportadores celebrarem contratos com concessionárias de infraestrutura em dólares).
– Para os viajantes, a Nova Lei Cambial estabelece que o limite de dinheiro em espécie que cada passageiro pode portar ao sair do Brasil ou nele entrar passe a ser de 10 mil dólares americanos ou o seu equivalente (e não mais os atuais 10 mil reais).
– Compensação privada entre residentes e não residentes passa a ser permitida nas situações que o BC vier a estabelecer.
– O valor do encargo financeiro em caso de cancelamento ou baixa do ACC fica limitado a 100% do adiantamento.
Uma visão completa da nova legislação requer também a menção daquilo que não foi alterado. Em primeiro lugar, nada muda em relação aos aspectos tributários das operações cambiais e dos capitais internacionais. Não há nenhum artigo no novo marco legal sobre isso, salvo exclusão de algumas regras sobre dedutibilidade envolvendo remessa de royalties. Permanecem válidos, inclusive, os dispositivos legais que atribuem às instituições que operam em câmbio a responsabilidade pela conferência do recolhimento de tributos nas operações cambiais, o que traz um alto custo de observância, impactando preço e qualidade do serviço.
Para os preocupados com excesso de flexibilização, é importante deixar claro que nessa derradeira rodada de liberalização cambial, o governo manteve, por meio do Conselho Monetário Nacional, a sempre prudente prerrogativa de, em caso de emergência, voltar a lançar mão de controles cambiais (Lei 4.595/64, artigo 4°, inciso XVIII). Hoje, o ambiente é favorável e de excesso de dólares, mas os fluxos de capitais estão sempre sujeitos a mudanças e paradas súbitas. Trata-se de direito soberano, mas que evidentemente somente deve ser utilizado em situações extremamente excepcionais.
Por fim, se você começou a ler este artigo pensando em logo ter a sua conta em dólar, fica aqui um aviso: a abertura das contas em moeda estrangeira é uma possibilidade ainda bem distante. Apesar do burburinho da imprensa em torno disso, como uma das grandes novidades do marco legal, fato é que a matéria já era regulada pelas autoridades monetárias (empresas de diversos setores da economia podem abrir conta em moeda estrangeira, como seguradoras e agências de viagens).
A nova lei apenas deixa claro e reforça que compete ao BC definir quem pode deter conta em moeda estrangeira e quais serão os requisitos. Futuramente, o BC poderá ampliar a possibilidade de abertura de contas em moeda estrangeira no Brasil, mas o próprio regulador disse que isso somente será feito no longo prazo, de forma gradual e prudente, a depender dos fundamentos macroeconômicos do país, temas que fogem à formação jurídica deste autor.
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