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Liderança e cultura

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Saia do piloto automático, repense seus enlaces reflexivos

Como a Randoncorp mudou sua relação com startups ao revisar crenças de longa data e atribuir novos sentidos aos dados observados

Colunista Daniel Martin Ely

Daniel Martin Ely

24 de Maio

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Artigo Saia do piloto automático, repense seus enlaces reflexivos

Você parou hoje para se olhar no espelho e pensar em como está, em onde está na carreira, no que está fazendo da vida? Pois deveria.

Como líder, preciso ter a clareza de onde estou, como estou e que comportamentos preciso abandonar ou agregar para me adequar ao novo. O ponto de partida para qualquer processo de transformação passa pelo entendimento do momento em que me encontro. É um processo de reflexão decisivo para revisitar crenças e valores acumulados ao longo da vida. Adianto que não é uma tarefa fácil.

É um salto enorme, para o qual muitas vezes estamos despreparados. No meu artigo de estreia nesta coluna, mostrei que temos a tendência de enxergar o mundo com base em experiências passadas, não em relação às novas possibilidades que se apresentam.

Fato é que nossa percepção mais parece com um espelho retrovisor do que com um para-brisa. A rigidez com que lidamos com nossas experiências anteriores pode se tornar o grande inimigo no processo de transformação pelo qual precisamos passar.

Isso não é desmerecer nossa experiência, nossas histórias de sucesso. Pelo contrário.

É sobre compreender e ter a clareza de que precisamos adicionar novas lentes e perspectivas ao ver o mundo. Só mudamos quando admitimos as diferentes possibilidades que existem.

Para melhor ilustrar por que as pessoas têm dificuldade de alterar os seus comportamentos e seus modelos de funcionamento, recorro à “Escada da Inferência”, de Chris Argyris, que explica a armadilha do enlace reflexivo.

Segundo ele, diante de novos contextos, avançamos em degraus, como se fosse uma escada. No primeiro, se observam os dados; no segundo, é feita uma pré-seleção; e, no seguinte, adiciona-se sentido aos dados – claro, sempre a partir de nossas próprias experiências.

Captura de tela 2024-05-24 175152

No quarto e quinto degraus, se fazem pressupostos, com base nos nossos sentidos. Assim, chegamos a conclusões e adotamos crenças. E, no fim da escada, ações passam a ser praticadas com base nessas crenças.

O resultado: tudo é observado através da bagagem que carregamos. É o que Argyris chama de enlace reflexivo. É um esquema avesso a mudanças.

Esse enlace reflexivo até poderia ser “administrado” em um mundo em que as coisas não mudassem tão rapidamente e nas quais houvesse receitas prontas para tudo. Só que não é assim. Com a complexidade da era digital, precisamos de mais pessoas pensando em soluções para os novos problemas. Isso exige uma revisão de crenças ou dos sentidos que adicionamos aos dados que observamos.

O nosso nível de autoconsciência para a mudança de comportamentos tem de ser, também, exponencial. Para lidar com desafios diferentes, e que mudam a toda hora, precisamos quebrar o enlace reflexivo.

Leia também:Jornada de liderança: do comando e controle à inspiração e influência

Como sair do piloto automático

Comece com pequenas coisas. Mude o trajeto para ir ao trabalho, por exemplo. Sabemos que, se sairmos dez minutos depois do habitual, corremos o risco de enfrentar um congestionamento. Ainda assim, seguimos pelo mesmo caminho, porque vai que uma rota alternativa é ainda pior?

Em vez disso, busque um novo caminho pelo aplicativo, use um meio de transporte ou, se possível, vá a pé. Isso nos tira do piloto automático e nos faz prestar mais atenção ao trajeto, provavelmente descobrindo oportunidades de conexão. Diariamente, nos deparamos com novas situações e com possibilidades de aprendizagem. Se observarmos esse novo contexto usando as mesmas lentes das nossas experiências passadas, dificilmente aprenderemos algo diferente. A partir do momento em que eu estiver atento a isso, começo a perceber com maior clareza as oportunidades de conexão.

Na Randoncorp, por muito tempo, enxergamos as startups sob a ótica da relação cliente-fornecedor. Era uma visão míope, que felizmente conseguimos abandonar. Elas se tornaram parceiras estratégicas de nossas empresas. Criamos até um corporate venture capital (CVC) para investir em algumas delas. O passo seguinte dessa evolução foi criar startups dentro de casa, potencializando nossos empreendedores internos. Algo que só foi possível suavizando nossa rigidez. Dessa forma, nos permitimos revisitar algumas das nossas crenças culturais. Criamos um outro ciclo de inovação, em que somos capazes de aprender, desaprender, reaprender e compartilhar.

São oportunidades de transformações diárias, em que se amplia o portfólio de experiências e se agregam outras possibilidades à bagagem.

Precisamos abandonar a ideia de continuar fazendo o que sempre deu certo. Nem sempre esse é o caminho para o melhor resultado que precisamos. Não se trata de desprezar a bagagem, mas de aliar a experiência às novas conexões para buscar soluções diferentes.

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Mudar os comportamentos não é algo trivial. Lembro o quanto foi doloroso quando eu comecei a fazer as minhas reflexões para as primeiras mudanças. Foi preciso sair de uma zona de conforto e abandonar alguns modelos mais tradicionais em que me espelhei e fui reconhecido. Na questão de menos comando e controle, percebo o quanto ainda é difícil deixar o “monstrinho mecanicista e controlador” que temos dentro de nós.

Eu preciso ter a autoconsciência de que ainda o carrego comigo. Por vezes, tenho que me policiar para que ele não entre em ação. Ou usá-lo apenas em ocasiões em que seja bem-vindo.

Não há mais dúvidas de que, enquanto nós, líderes, não começarmos a mudar a nossa mentalidade diante dos novos desafios, não haverá transformação. A boa notícia é que, em muitos segmentos, como na indústria pesada, ainda podemos fazer essa mudança pelo amor e não pela dor.

É algo bem diferente de setores como financeiro, telecomunicações e serviços em geral, em que esse processo já está acontecendo em uma velocidade nunca antes vista. Não precisamos esperar a água chegar ao pescoço para começar a nos mexer. O exercício da autoconsciência nos permite ver também o quanto dessa transformação pode estar sendo bloqueado por nós mesmos. Aqui, eu lembro do que escutei de uma ex-líder.

Ela contou que acompanhava os meus movimentos de mudança como espectadora, mas não embarcou na oportunidade de ajudar na transformação. Não atrapalhava, mas também não se engajava. Foi se dar conta da importância de todo o processo apenas ao trocar de empresa e precisar, por conta própria, se tornar a protagonista das mudanças necessárias no seu novo ambiente. Ou ela assumia a empreitada ou ninguém o faria, não dava mais para ficar na zona de conforto.

É importante termos em mente que cada um tem o seu tempo para mudar. Isso precisa ser respeitado, mas não postergado.

Comece a repensar seus enlaces reflexivos. E me diga: que caminho você fará para o trabalho amanhã?

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Colunista Daniel Martin Ely

Daniel Martin Ely

Coluna de Daniel Martin Ely é vice-presidente executivo da Randoncorp, COO da Rands e conselheiro do CNEX - Centro de Excelência Humana e Organizacional e do Instituto Hélice de Inovação, além de presidente do conselho do Instituto UniTEA do Autismo. Mestre em estratégias organizacionais e especialista no desenvolvimento de lideranças, foi reconhecido nos últimos cinco anos como um dos RHs mais admirados do Brasil.

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