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Redefinindo o valor do trabalho – parte 2

A pandemia jogou luz sobre novas formas de trabalhar, trabalhadores “invisíveis” e as desigualdades existentes no mercado de trabalho. Será que o capitalismo digital emergente mudará as fontes de valor e significado para as organizações e a sociedade?

Paul Ferreira
29 de julho de 2024
Redefinindo o valor do trabalho – parte 2
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O que será do trabalho? O que será de nós? Em minha coluna anterior, abordei o cenário pré-pandemia do impacto da tecnologia, amplificado por mudanças sociais, no número de empregos, na relação empregado-empregador, e na desigualdade. Em linha com aquelas reflexões, continua a explorar a questão. Agora, o objetivo é entender como a natureza e o valor do trabalho estão sendo afetados pela recente crise da Covid-19 (um evento repentino e inesperado) e, se isso irá atrapalhar, desviar ou acelerar muitas das mudanças já em andamento.

O trabalho remoto realizado em home office (HO) tornou-se realidade para grande parte dos trabalhadores. Para muitos deles, foi uma transição abrupta e compulsória. Apesar das circunstâncias específicas do momento que exige isolamento social, na maioria das pesquisas, os respondentes expressaram uma percepção positiva do HO em múltiplas dimensões. A primeira delas é a economia de tempo, energia e recursos obtida com a suspensão dos deslocamentos diários. Várias empresas, por sua vez, aprenderam a ceder um pouco de controle, respeitando e preservando a qualidade de vida dos colaboradores. Elas entenderam a importância de fazer acordos e estabelecer mecanismos que tenham a confiança como paradigma, passando a medir a performance mais a partir das entregas e menos do controle de tempo trabalhado. 

Não obstante as percepções positivas sobre a experiência, é válido o alerta de que existem riscos em tomar o partido da adoção permanente do HO – empresas como Facebook, Twitter e XP já se posicionaram a favor disso – sem entender que os colaboradores desejam ser envolvidos na decisão de flexibilidade. Essa refere-se não apenas à frequência da prática de HO, mas também ao uso dos espaços para o trabalho remoto, uma vez que este não precisa necessariamente ser realizado em casa.

Outro aspecto interessante a notar é que a pandemia jogou luz sobre uma classe trabalhadora específica, composta por profissionais de saúde, agricultores, professores, entregadores, caixas de supermercado, coletores de lixo, caminhoneiros ou mesmo trabalhadores de manutenção; os governos tiveram de pedir que esses trabalhadores que continuassem ativos, apesar das repetidas recomendações para ficar em casa. Não só as expressões de gratidão multiplicaram-se em relação a esses heróis comuns – elogiamos a dedicação e o risco envolvido –, como reconhecemos que, na maioria dos casos, trata-se de profissões pouco valorizadas economicamente. 

Será que a “”perda de invisibilidade”” das profissões menos qualificadas e muitas vezes até desqualificadas e precárias levará a uma revisão de seu status no curto prazo? Com a pandemia, experimentamos coletivamente nossa vulnerabilidade e interdependência, mas, conforme os países vêm se abrindo, desaparecem os cantos e celebrações em homenagem a esses profissionais, o que sugere que a visibilidade talvez seja um fenômeno temporário… A questão é: esse novo olhar, ainda que por tempo limitado, poderá levar à reavaliação dos salários de certas profissões? Sendo otimista por natureza, espero que sim. No entanto, é improvável que isso ocorra em escala significativa, porque, excetuando as áreas de saúde e educação, a maioria dos trabalhos em pauta inclui pouco estudo e, por padrão, é pelo conhecimento que julgamos o valor de um trabalho. 

Por fim, a crise pandêmica expõe as desigualdades existentes. Enquanto um número crescente de indivíduos está sentindo a dor econômica no Brasil, muitos dos recém-desempregados são trabalhadores de meio período, jovens, minorias e mulheres. Segundo dados do desemprego pelo IBGE, entre as pessoas que se declaram pretas e pardas, a alta foi de 13,5% e 12,6%, no quarto trimestre de 2019, para respetivamente, 15,2% e 14% em final de março de 2020. Entre as mulheres, a taxa de desocupação ficou em 14,5%, enquanto 10,4% dos homens estavam na mesma situação. Entre os jovens de 18 a 24 anos, o desemprego pulou de 23,8% para 27,1%. Sem falar dos 5 milhões de pessoas que desistiu de procurar emprego, um contigente que cresceu 7,0% em relação ao trimestre anterior. 

Outro país, Estados-Unidos, tem realidades semelhantes. Uma análise publicada pela McKinsey constatou que, em meados de abril, quase três quartos de todos os trabalhadores desempregados ganham menos de US$ 40.000 por ano. Ontem justificada em nome da “”teoria do trickle-down”” segundo a qual a riqueza dos mais ricos beneficia a todos, a desigualdade hoje preocupa até os liberais à medida que seu aumento dissipa as últimas ilusões de “”globalização feliz””. 

TRÊS FRENTES DE REFLEXÃO

Essa crise sanitária e os seus desdobramentos econômicos e sociais permitem-nos questionar (novamente) o significado que damos coletivamente ao trabalho. Como acadêmico, minha pergunta norteadora é: como identificar e criar novas fontes de valor e significado para nós, nossas organizações e nossa sociedade ao longo do tempo? Devo dizer de antemão que não tenho a resposta, mas gostaria de sugerir algumas reflexões, em três frentes. 

1. Precisamos (re)pensar a questão do poder e do prestígio público

Assim como algumas profissões aumentam em status e poder em vários estágios, outras podem declinar. O prestígio que atribuímos às diferentes profissões é uma construção social que resulta do equilíbrio entre relações de poder e interesses em determinado contexto histórico. Na Itália renascentista, as cidades-estado estavam lutando entre si, militar e politicamente. As artes foram uma maneira de destacar-se e um acordo foi estabelecido entre o artista e as autoridades. O último usou o primeiro para estabelecer sua autoridade, investindo na comissão de obras excepcionais destinadas a impressionar. Os melhores artesãos tornaram-se artistas aproveitando a oportunidade de um nicho de mercado muito específico, muito bem pago, aprimorando tanto o artesão quanto o patrocinador. 

O que profissionais da saúde, professores, agricultores e várias outras profissões estão exigindo é tomar parte nas decisões que os afetam, recuperar o poder sobre suas atividades, em vez de passar por, como tem sido há décadas, reformas que às vezes são incompreensíveis e os esmagam lentamente. Entregadores (vulgos “motoboys”), por exemplo, dependem do Judiciário para garantirem seus direitos e seu futuro, porque não existe uma regulamentação específica para quem depende da mediação de aplicativos para exercer suas atividades remuneradas. 

Potencialmente ainda mais fundamental é o caso da medicina, que historicamente tem sido uma profissão com poder e prestígio especiais em todas as sociedades. Embora durante décadas essa profissão tenha sido governada internamente por leis e um código de ética profissional, estamos vendo Apple, Amazon, Google, Oracle e todas as empresas orientadas a dados transformando-se rapidamente em atores do mercado da prestação de serviços de saúde, impondo, assim, seus pontos de vista sobre questões médicas. Além de saber se podemos presumir que o corpo humano é uma máquina qualquer ou se há limites para a precisão e exatidão da trajetória de uma vida humana, há uma pergunta talvez mais vital: em quem confiaremos para cuidar da nossa saúde e bem-estar? Nessas organizações e nos seus algoritmos sofisticados ou nos médicos? Dependendo da resposta, provavelmente atribuiremos um valor distinto às profissões médicas no futuro.

2. Precisamos (re)pensar a questão da remuneração em função da utilidade social

À luz da crise, é a utilidade social e o conceito de serviço que apreciamos naqueles heróis da linha de frente, não exclusivamente as suas qualificações especificas ou a utilidade que eles entregam para os acionistas. É a tal reversão de perspectiva que nos convida um estudo publicado em 2009. Três pesquisadores britânicos, abordam a questão da desigualdade, comparando a remuneração de certos trabalhos, selecionados nas duas extremidades da escala de renda, ao “valor social”” que gera o seu exercício. No caso de um trabalhador de reciclagem, pago a 6,10 libras esterlinas por hora, os autores estimam que “”cada libra gasta em salários gerará 12 libras de valor”” para toda a comunidade. Por outro lado, “”enquanto recebem remuneração entre 500.000 e 10 milhões de libras, os grandes banqueiros destroem 7 libras de valor social por cada libra de valor financeiro criado””. Assim, o balanço coletivo das atividades mais bem pagas às vezes mostra-se negativo, o que já era sugerido pela tempestade financeira desencadeada desde 2008. 

Essa perspectiva abre dois caminhos: 

1) O trabalho deve ser pago no nível de sua utilidade. Para a maioria dos profissionais das linhas de frente, seria pelo menos o dobro ou o triplo do salário atual. Isso significa reformular a escala salarial de todas as profissões, reduzindo as diferenças entre o salário mais alto – em geral o presidente/CEO – e o salário médio de uma organização. Por exemplo, no setor da economia social e solidária, esta diferença é de 1 para 4, em cooperativas de 1 para 10. 

2) O trabalhador que entrega um alto valor social deve receber uma Renda Básica Universal (RBU) além da sua remuneração oficial. Esta renda seria o reconhecimento político coletivo da utilidade de uma atividade para a sociedade e para quem exerce esta atividade pouco remunerada, ou inclusive que desenvolve formas de envolvimento fora do mercado como nas artes, cultura, e vários tipos de serviço comunitário…

3. Precisamos (re)pensar a questão da desumanização inerente ao crescimento econômico

Por várias décadas, o setor terciário tem-se constituído uma componente fundamental do sistema econômico, pois, assim como os bens materiais, os serviços respondem por uma parte significativa das necessidades humanas. Um dos desafios é que, no longo prazo, a ascensão dos serviços (incluindo saúde, educação, serviços sociais, aconselhamento, cuidados pessoais, cultura, pesquisa) em qualquer economia é acompanhada por números de crescimento econômico com tendência de queda, de acordo com a “”lei de Baumol””. Simplificando, o valor do trabalho relacional, pilar de uma economia de serviços, é principalmente função do tempo que o trabalhador passa com os outros. Como o tempo não é extensível, esses serviços são menos sujeitos a ganhos de produtividade, e, portanto, é provável que o crescimento seja mais “”qualitativo”” do que quantitativo. 

A epidemia do coronavírus acelera a crescente tendência de redução dos contatos físicos que parece atingir as relações humanas (vídeo sob demanda, pagamento sem contato, entrega ao domicílio…). Mais especificamente, é o ponto de inflexão que traz metade da humanidade simultaneamente para um novo normal onde somos forcados a mobilizar tecnologias para intermediar a comunicação uns com os outros. Assim, abre-se um novo paradigma de crescimento econômico, um capitalismo digital, que digitaliza os relacionamentos pessoais, os torna escaláveis, e, portanto, permite uma “industrialização” da sociedade de serviços. 

Tal como em outros modelos de capitalismo, este novo capitalismo digital apresenta riscos de desumanização para os indivíduos. Nomeadamente, uma generalização do HO privaria os funcionários de certas dimensões do trabalho que são essenciais: contato físico, trocas informais, interações, expressões faciais – elementos constitutivos do trabalho que caso desapareçam duradouramente, poderão deteriorar as condições de trabalho. Mesmo que softwares de alto desempenho tenham permitido a organização de reuniões – por exemplo, a receita da empresa Zoom saltou 169% YoY, para US$ 328 milhões no trimestre de fevereiro a abril 2020 –, a tomada de decisões e a continuação do trabalho, também experimentamos a natureza severamente insuficiente das interações por meio de uma tela, a fadiga física e mental gerada por esse tipo de troca, a queda na concentração mais rápida, e acima de tudo os riscos inerentes ao isolamento social. 

Além disso, corremos o risco de conhecer uma perda de propósito com a difusão maciça de mecanismos de monitoramento e controle, scripts que organizam para cada um o trabalho de uma maneira predeterminada, usando um software que corta o trabalho em tarefas precisas e o esquematiza graças a algoritmos.

Por outro lado, no capitalismo digital se espera uma ampliação da diferençaentr e trabalhadores protegidos por trabalho remoto e trabalhadores de contato, que recebem muito pouco para realizar tarefas cada vez mais arriscadas. Provavelmente haverá cada vez menos mistura entre essas diferentes categorias, o que aumentará ainda mais a segregação da sociedade e as desigualdades.

Mas a questão com a qual já estamos lidando é a do boom do desemprego. Com a ascensão desse novo capitalismo, surge a oportunidade e necessidade de concentrar todos os esforços de recuperação em certos setores e, em particular, na “”economia da vida””. Esta reúne todos os setores que, de uma maneira ou de outra, de perto ou de longe, se entregam à defesa da vida: saúde, prevenção, higiene, gestão de resíduos, saneamento, distribuição de água, esporte, alimentos, agricultura, proteção da terra, distribuição, comércio, educação, pesquisa, inovação, energia renovável, habitação, transporte de carga, infraestrutura urbana, informação, cultura, funcionamento da democracia, segurança, poupança e crédito. Esses setores representam, dependendo do país, entre 40 e 70% do PIB e dos empregos. Esses índices devem ser aumentados para 80%.

ARQUITETAR O FUTURO COM BASE NO PASSADO

É impossível saber o que vai acontecer, bem como é difícil dizer quanto tempo durará a crise causada pelo novo coronavírus. Mas é possível levar em consideração as lições do passado, as distantes e as recentes, e com base nisso pensar construtivamente sobre o futuro. Com esta coluna, espero gerar uma discussão saudável e ouvir as opiniões – contrárias e semelhantes – de vocês, para que juntos cheguemos a conclusões mais ricas sobre a situação. Bibliografia:

Salum,  Coleta e Ferreira. (junho 2020). Trabalho em home office: explorando realidades e percepções no cenário covid-19. HBR Brasil 

https://mck.co/2zbJoRm

Diamandis, Kotler. (2020). The Future Is Faster Than You Think

Eilis Lawlor, Helen Kersley et Susan Steed (2009). A bit rich. Calculating the real value to society of different professions. New Economic Foundation, Londres”

Paul Ferreira
É professor em tempo integral de estratégica e liderança na Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP, Brasil), diretor do mestrado executivo em administração (MPA) da FGV EAESP e vice-diretor do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas (NEOP). Desde 2020, Paul é colunista do MIT Sloan Management Review Brasil. Além disso, ele é pesquisador visitante permanente na Universität St. Gallen (Suíça).

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