
Na era em que a inteligência artificial automatiza, os humanos precisam se reinventar. E talvez, mais do que nunca, a resposta esteja na pluralidade de caminhos — não em um único
Há um movimento discreto, mas transformador, acontecendo à margem dos organogramas tradicionais. São profissionais experientes que deixam cargos fixos para construir trajetórias compostas por múltiplas frentes. Conselheiros, professores, mentores, empreendedores e consultores que compartilham sua expertise de forma fracionada, criando impacto em várias organizações ao mesmo tempo. É a consolidação de uma nova forma de trabalhar — a carreira fracionada.
Vivencio isso de forma intensa: atuo como conselheiro em diferentes empresas, sou mentor de líderes e empreendedores, acelero crescimento de startups, colaboro com projetos educacionais, sou palestrante e colunista — e, no Instituto Gauss, compartilho tempo e escuta com jovens talentos que já entendem o trabalho como algo múltiplo, mutável e com propósito.
Eu sei que você já sabe: o relatório The Future of Jobs 2023 do Fórum Econômico Mundial indicou que quase metade das habilidades atuais será obsoleta em cinco anos, exigindo reinvenção contínua. Em paralelo, cresce a demanda por flexibilidade, autonomia e diversidade de experiências. Não por acaso (e talvez isso você não saiba), um estudo McKinsey mostra que 20% a 30% dos profissionais com alta qualificação nos EUA já adotaram modelos de trabalho flexíveis ou fracionados — tendência que se espalha pelo mundo.
No Brasil, vemos o surgimento de plataformas, redes de networking e uma diversidade de cursos que capacitam e funcionam como hubs de conexões para executivos que desejam atuar por projetos, como conselheiros ou consultores e empreender.
Diferente da ideia de carreira linear, a carreira fracionada permite integrar experiências e competências complementares. O que aprendo como conselheiro de uma empresa de consumo, levo para a mentoria de uma startup de tecnologia. As perguntas que recebo dos alunos em sala de aula provocam novas ideias para artigos e palestras. As inquietações dos bolsistas do Gauss desafiam minhas certezas. A riqueza está justamente nos cruzamentos — e não nas caixinhas isoladas.
Essa jornada não é uma fragmentação da identidade, mas a sua expansão. É a chance de vivermos de forma mais inteira em múltiplos contextos.
A transição para esse modelo exige intencionalidade. Algumas boas práticas podem acelerar o caminho:
1. Defina sua proposta de valor única: O que você entrega de forma diferenciada? Qual é sua especialidade, seu olhar, sua zona de alta performance? Isso será seu “fio condutor”.
2. Cultive sua reputação digital: Compartilhe aprendizados e visões no LinkedIn, participe de eventos, mantenha presença ativa. A reputação atrai convites.
3. Construa uma agenda de propósito, não só de compromissos: Combine projetos que alimentem sua alma com aqueles que sustentam sua jornada.
4. Estabeleça rituais de gestão de tempo e energia: Usar ferramentas digitais e técnicas simples como cores por cliente ou área de atuaçãp ajuda a manter o foco e evitar a sobrecarga.
5. Crie uma base administrativa leve e eficiente: Plataformas digitais quefacilitam emissão de notas, controle de contratos e gestão de recebíveis.
Mas nem tudo são flores, é claro. A carreira fracionada também traz armadilhas que merecem atenção:
• Dizer sim demais: o excesso de projetos pode diluir seu impacto e esgotar sua energia. Aprender a dizer “não” com elegância é parte essencial do jogo.
• Falta de clareza nos contratos: escopo mal definido leva à sobrecarga e frustração. Sempre alinhe entregáveis, tempo disponível e forma de trabalho.
• Ausência de rituais de reflexão: a agenda fragmentada pode desconectar você de sua essência. Reserve momentos para se escutar — e se aprofundar em temas chaves.
• Isolamento profissional: sem os vínculos diários de um time, é fácil se sentir só. Por isso, participe de comunidades, grupos de pares e fóruns regulares.
As empresas também têm papel nesse movimento. Ao abrir espaço para talentos fracionados, ampliam sua capacidade de inovar com agilidade, sem perder a profundidade. Mas precisam abandonar a mentalidade de posse. O profissional fracionado é parceiro, não subordinado. Ele traz experiências que se entrelaçam e enriquecem a organização — mesmo sem crachá fixo.
A carreira fracionada é, no fundo, um exercício de liberdade com responsabilidade. Uma dança entre múltiplos palcos onde o profissional se apresenta com verdade, entrega e reinvenção. Para mim, é a chance de alinhar tudo o que vivi com tudo o que ainda posso construir — e doar.
E talvez esse seja o maior presente dessa nova era: a liberdade de sermos inteiros em várias partes.