Em vez de negligenciar o contexto, você deve ter inteligência contextual. E, em vez de manter iguais suas funções como líder, precisa ressignificá-las
Não é racional esperar que um jogador profissional de futebol se destaque no torneio de Roland Garros, um dos quatro torneios do Grand Slam de tênis realizado em Paris. Enquanto líderes tendemos a acreditar que conseguimos nos adaptar a qualquer situação, negligenciando a ideia de que nossa performance está condicionada ao contexto – ou seja, às condições que podem fugir do nosso controle.
No entanto, muitas pesquisas acadêmicas, evidências de falhas de executivos de alta performance e experiências pessoais demonstram que as condições, sim, importam: pessoas com demandas similares são bem-sucedidas em uma situação e falham em outras. Estudos sobre analistas do mercado de ações, por exemplo, mostram que eles podem ter sua performance reduzida em aproximadamente 20% quando mudam de uma empresa para outra e, para atingirem os níveis de performance anteriores, levam até cinco anos de adaptação ao novo contexto.
Apesar da importância do contexto para o sucesso dos executivos em suas empreitadas, esse aspecto continua a não receber adequada atenção. E o cenário (pós)Covid-19 não parece ser muito diferente, só nos levou para outro lado do pêndulo: da insensibilidade contextual à hipersensibilidade contextual. Mais precisamente, sem saber como será a aparência do novo normal e/ou por que o que encontraremos do outro lado será diferente do normal dos últimos anos, já foi instituída a ideia de que precisamos de novas lideranças.
Portanto, com o intuito deste artigo, quero convidá-los a pensar comigo e de maneira integrada em duas direções. Uma focada em elementos do contexto e outra em implicações para o fenômeno da liderança.
Sobre o contexto, a pandemia global no seu papel de catalisador de acelerações está desencadeando uma nova e intensa onda de destruição criadora que, como Schumpeter descreve, está na essência da dinâmica do capitalismo. O surgimento de novas tecnologias como ondas, que aleatoriamente causam interrupções, disfunções e, no processo, criam novas empresas ou aumentam a eficiência das empresas existentes, por meio de ganhos na produtividade do capital e do trabalho, em última análise beneficia milhares de pessoas.
Ao mesmo tempo que no cenário atual já foram destruídos milhões de empregos e trabalhadores estão procurando governos, corporações ou inclusive uma atividade por conta própria que os “salve”, existem fatores críticos nesta conjuntura que podem resultar numa onda de investimentos de capital e reativar a economia, gerando prosperidade, empregos, renda, além do estabelecimento de um novo paradigma. Quais são esses principais fatores?
– Um número crescente de pessoas tem acesso à conectividade de rede, dispositivos digitais com os quais fazemos interface e o software que os alimenta. Este vasto ecossistema de tecnologia permitiu-nos colaborar perfeitamente em projetos, organizar fluxos de trabalho, pensar, construir, comprar, vender, gerenciar, inovar, resolver e enviar, mesmo quando todos estavam presos em casa. Não apenas este ecossistema mostrou-se resistente, mas novos investimentos nomeadamente em redes 5G visam aumentar significativamente as velocidades de download para clientes e adicionar largura de banda adicional significativa às redes para acomodar mais usuários, mais dispositivos e mais uso de dados que são essenciais na nova economia do distanciamento físico.
– Cada vez mais organizações e pessoas estão com um poder de computação ilimitado por causa do cloud. Durante a pandemia, os serviços em nuvem permitiram que as empresas funcionassem mesmo quando os funcionários não conseguiam voltar ao trabalho. Por meio de um dispositivo habilitado para internet ou wi-fi, uma conexão sem fio, provavelmente uma VPN apenas por segurança, pudemos acessar informações da empresa, arquivos e outros dados essenciais aos negócios diretamente de casa. Mais amplamente, a computação em nuvem que era conhecida principalmente por injetar eficiência, otimizar a infraestrutura e cortar custos, está reduzindo as barreiras à entrada, permitindo que novos modelos de negócios sejam desenvolvidos e lançados em semanas e reduzindo drasticamente a vida útil da vantagem competitiva e dos modelos de negócio existentes.
– Um número crescente de organizações e pessoas tem acesso a um financiamento barato e farto – um ponto fundamental para Schumpeter que permite a uma onda de empreendedores não-inovadores investir recursos para emular os novos bens e serviços criados. (Esse ponto é menos verdade no Brasil, contudo, onde o alto endividamento governamental excluiu o investimento privado.)
– Os desafios sociais de hoje são numerosos, complexos e urgentes, desde o envelhecimento das sociedades, desigualdades econômicas, melhor educação, mudanças climáticas, até à eficiência energética e segurança. Ao mesmo tempo, eles têm um forte efeito de mobilização e existem oportunidades de negócios e sinergias a serem exploradas para uma melhor integração dos desafios sociais no centro das atividades de ciência, tecnologia e inovação.
– Por fim, vários estudos acadêmicos e um número crescente – ainda que demasiado lento – de experiências corporativas têm comprovado (1) a relação positiva entre diversidade e inovação, ou inclusive a lucratividade das empresas, assim como o fato que (2) diferentes tipos de diversidade de equipe desempenham papéis diferentes no suporte ao funcionamento da equipe e na obtenção duma orientação inovadora. Por exemplo, a diversidade etária alimenta o conflito entre equipes, aumenta os repertórios comportamentais, dificulta a implementação de rotinas compartilhadas, o que pode levar à diminuição da coesão da equipe. Além disso, os membros mais jovens têm maior disposição para assumir riscos. Assim e porque, pela primeira vez na história, cinco gerações convivem no lugar de trabalho, lidar com diferenças geracionais será uma fonte crítica de vantagem competitiva.
O que tudo isso significa para os executivos e a liderança de hoje? Certamente que determinados tipos de liderança são mais qualificados do que outros para detectar oportunidades emergentes ou o potencial de tecnologias nascentes que surgem no contexto descrito acima e, por meio da perseverança e determinação, construir novos empreendimentos de sucesso.
Da mesma forma que os autores Mayo e Nohria identificaram três arquétipos de liderança distintos – o empresário, o gestor e o líder – e examinaram as condições em que cada um prosperou ao longo do século 20, é comum hoje destacar nomeadamente dois arquétipos como os mais apropriados no cenário atual: o dos líderes com propósito e o dos líderes inspiradores.
Sem discordar da perspectiva apresentada, eu gostaria de enfatizar que o novo contexto clama por uma reflexão e possível revisão de algumas dimensões fundamentais do processo de liderança, além da questionar os estilos de liderança em si. Se definirmos liderança como a capacidade de tomar decisões e influenciar outras pessoas a tomar decisões para atingir determinados objetivos, precisamos ressignificar as funções: liderar, orquestrar e engajar.
No âmbito liderar, um aspecto fundamental é entender quais são os objetivos da organização. A prática exige nomeadamente uma habilidade a desenvolver e modificar os objetivos a longo prazo para que a estratégia se ajuste aos stakeholders e ao ambiente de negócios em mudança. Mas cada vez mais, as organizações são compostas por uma pluralidade de stakeholders que possuem estratégias e objetivos concorrentes.
Por exemplo, algumas empresas encaram a criação de valor como otimizando o desempenho financeiro de curto prazo e retorno para o acionista, com o risco de perder as necessidades mais importantes dos clientes e ignorar as influências mais amplas que determinam seu sucesso a longo prazo.
Já outras empresas concentram-se em criar valor econômico de uma maneira que também crie valor para a sociedade, atendendo às suas necessidades e desafios, com o risco de aumentar os custos e reduzir seus lucros. Essa gestão dinâmica e balanceada dos objetivos está tornando-se cada vez mais critica, à medida que o público mantém as empresas com padrões mais exigentes. E continuará a acelerar à medida que os millennials – que hoje representam 35% da força de trabalho – assumirem mais e mais responsabilidades corporativas, e expressarem expectativas novas em relação às empresas em que trabalham, compram e investem.
Em relação a orquestrar, o questionamento que fica é quais são as pessoas que precisamos influenciar e como coordená-las de maneira efetiva. Orquestrar na prática é alinhar e desdobrar os recursos, nomeadamente o capital humano, de forma a cumprir os objetivos estratégicos e melhorar as capacidades organizacionais a médio prazo. Um conceito que considero útil para reconsiderar essa prática é: equipes de elo fraco versus elo forte, de um livro do Sally e Anderson. Os autores perguntaram o que é mais importante se você quer construir um excelente time de futebol. Quão bom é o seu melhor jogador ou quão bom é o seu pior jogador?
A resposta é clássica: depende! Se você está operando em um “jogo” de elo fraco, a responsabilidade gira em torno do “jogador” menos habilidoso que pode causar a ocorrência de erros caros. Neste contexto – típico do futebol – um erro humano ou talvez um processo ineficiente, ou comunicação deficiente entre equipes que trabalham fora de escritórios, separadas por fusos horários e idiomas diferentes podem prevalecer sobre as vitórias criadas por um indivíduo estrela. Ao contrário, se você está operando em um ambiente de vínculo forte – como no basquete –, o desempenho dos melhores, das pessoas mais talentosas têm o impacto mais substancial sobre o resultado final.
Como isso se traduz nas práticas corporativas de gestão de pessoas? Por exemplo, é notável que existe uma tendência a recompensar, na maioria das organizações, comportamentos consistentes com a suposição do vínculo forte, ou seja, promoções mais rápidas, maiores bônus, participação nos lucros. Central para a lógica do vínculo forte é também a frequente busca pelos chamados executivos de alto potencial, que têm maior probabilidade de serem promovidos a posições de liderança formais, serem enviados para cursos de treinamento ou participar de programa de mentoria ou coaching.
E no cenário pós-Covid? A pandemia forçou cada indivíduo a entender o negócio, a tecnologia, os clientes, as pessoas e a pensar nas interconexões destes elementos em um nível de detalhe que não costumava antes; aumentar a velocidade das decisões, delegar mais, e aceitar eventuais erros neste percurso. Assim, é de se esperar que investimentos em desenvolvimento humano precisem mudar duma lógica de elo forte para uma lógica de elo fraco, de procura por executivos com alto potencial para executivos excelentes.
Excelência é um conceito de limiar, o fato de trazer uma nova pessoa acima do nível definido, não retira o benefício de quem já era excelente. De fato, quanto maior a proporção de pessoas excelentes, melhor a capacidade organizacional. Alto potencial, no entanto, é um conceito de classificação onde o surgimento dum novo potencial enfraquece os titulares. Minha suposição é que a maioria das organizações que prosperaram durante a pandemia orquestram seu capital humano numa abordagem de elo fraco.
Por fim, engajar é uma função chave no processo de liderança porque permite o exercício da influência. Antes de concordarem em ser influenciados por um líder, indivíduos precisam entender por que o que eles estão fazendo é importante para a organização. É também necessário integrar indivíduos que buscam homogeneidade e distinção dentro dum coletivo. As equipes não se unem por si mesmas. Elas são desenvolvidas propositalmente e com intenção. Assim, liderança é orquestrar equipes motivadas e engajadas para fazer o que é certo e tomar as decisões certas para o bem da empresa.
É importante ressaltar que pessoas altamente engajadas não são engrenagens sem sentido em uma máquina. Elas se veem com autonomia e no controle. Elas têm noção de sua própria eficácia, acesso, influência, e capacidade de fazer a diferença, assim como de suas responsabilidades. Elas sabem que no seu relacionamento com os gestores e mais amplamente sua organização têm o controle necessário para cumprir seu propósito.
Neste sentido, o aprendizado de como abrir mão de um pouco de controle, avaliando a performance mais com base nas entregas feitas e menos pelo controle de tempo despendido talvez seja um dos legados da pandemia que acabou influenciando a cultura de certas empresas e o comportamento dos próprios gestores. Com a gestão a distância, muitos líderes se viram obrigados a experimentar novas formas e mecanismos para motivar os funcionários e permitir que se envolvam com suas funções e responsabilidades individuais, desenvolvendo o tal “senso de dono”.
Um dos mecanismos mais poderosos que conheço para despertar o engajamento dos profissionais, e para viabilizar a construção e o desenvolvimento de um senso de dono, é o conceito de cheque em branco. Cheques em branco são uma metáfora para a liberdade dada a uma equipe seleta para determinar por si mesma os recursos necessários para cumprir as metas acordadas dentro de um prazo. Na prática, o objetivo é distorcer recursos estratégicos das áreas não prioritárias para apoiar iniciativas de crescimento – concentrando dinheiro, habilidades pessoais e atenção.
Mas cheques em branco não são uma licença para gastar sem limites, sem diretrizes ou sem consequências para os membros da equipe. As equipes devem definir os recursos de que precisam, preenchendo o valor do cheque em branco. Semelhante à lógica e cultura empreendedora, as iniciativas de cheques em branco raramente acontecem de acordo com o planejado. A equipe fará experimentos e realizará testes, e alguns desses experimentos inevitavelmente falharão. O importante é falhar cedo, falhar barato e aprender rápido.
Embora esse tipo de mentalidade esteja crescendo em grandes empresas, minha sugestão, à luz do contexto descrito anteriormente, é que se estenda o alcance dessas iniciativas dentro da organização, uma vez que normalmente são restritas a um grupo seleto de indivíduos.
Para concluir, espero ter deixado as seguintes reflexões:
1) Contexto importa, precisa ser entendido com mais detalhes porque nem todos reagimos de maneira uniforme aos desafios colocados. Líderes bem-sucedidos têm inteligência contextual além das conhecidas inteligências cognitivas e emocionais.
2) Além dos estilos de liderança, os indivíduos precisam diferenciar-se em suas práticas de liderança, ressignificando as funções: liderar, orquestrar e engajar.”