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Seis formas de divulgar e proteger os direitos humanos nas empresas

Como agir diante dos abusos aos direitos humanos por parte de governos? Atitudes de empresas demonstram que não é preciso ser omisso, nem necessariamente romper relações

Markus Scholz e N. Craig Smith
29 de julho de 2024
Seis formas de divulgar e proteger os direitos humanos nas empresas
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A tão alardeada oferta pública da Saudi Aramco em 2019 estabeleceu um recorde para o maior IPO oferta pública de ações do mundo. Porém, a iniciativa provavelmente foi decepcionante para seu idealizador, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, já que a demanda pelas ações foi baixa fora da região. O fato não ter conseguido entusiasmar compradores nem obter o apoio global desejado se deve, em grande parte, ao receio dos investidores quanto à proximidade da empresa com o regime saudita, e ao histórico do país no que tange aos direitos humanos.

Um caso emblemático foi o assassinato brutal, em outubro de 2018, do colunista Jamal Khashoggi do jornal The Washington Post por agentes sauditas na Turquia, o que levou dezenas de líderes de grandes investidores a se retirarem da principal cúpula de investimentos do país, apelidada de “Davos do deserto”. CEOs de JPMorgan Chase, BlackRock, Google, Uber, Siemens e Glencore, bem como a então diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, e o presidente do Banco Mundial Jim Yong Kim, boicotaram o evento. Nos últimos anos, o governo saudita também tem sido condenado por repressão contra dissidentes, ativistas e figuras religiosas independentes; exploração de trabalhadores migrantes; e ataques aéreos ilegais no Iêmen.

Em que medida as empresas devem reagir aos abusos dos direitos humanos por parte de governos de países em que atuam tornou-se uma das discussões mais ativas e interdisciplinares no campo da responsabilidade corporativa. Cada vez mais, espera-se que as organizações se tornem proativas na proteção dos direitos humanos, especialmente à medida que as responsabilidades públicas e privadas se tornam mais confusas e as empresas tomam consciência das expectativas de uma base de investidores e de uma força de trabalho mais consciente socialmente. Acreditamos que se posicionar publicamente contra as violações dos direitos humanos é a coisa certa a fazer independentemente de qualquer fator.

Mas, uma vez que a empresa decide tomar uma posição, o que fazer? As únicas opções que restam são seguir operando normalmente ou cortar laços com o país?

Caminhos do meio

Seguir operando normalmente em países nos quais os direitos humanos são violados sistematicamente levanta questões óbvias quanto à cumplicidade das empresas. Diante de uma posição passiva, o governo envolvido pode até se sentir encorajado. Porém, cortar laços com o país também pode ser problemático. A perda de receitas pode custar tanto para a empresa quanto para as pessoas daquele país: funcionários perdem empregos, serviços e produtos muito necessários ficam indisponíveis, e a empresa abdica de sua influência sobre o país e os transgressores.

Como especialistas em ética empresarial, desenvolvemos estruturas conceituais e normativas sobre como uma empresa pode lidar com problemas envolvendo direitos humanos. Em nosso trabalho e pesquisa com organizações não governamentais internacionais (ONGs) e com empresas multinacionais que enfrentam essas questões, encontramos uma série de táticas – entre os dois extremos omitir-se ou cortar laços – que as organizações podem adotar para enfrentar com eficácia as violações dos direitos humanos sem abandonar todo o envolvimento (e a receita) na região.

Em 2010, por exemplo, a Microsoft tomou conhecimento de que os policiais russos estavam usando a suspeita de pirataria de software como desculpa para invadir os escritórios de ONGs que criticavam o governo. Em vez de ignorar o problema ou de remover totalmente seus produtos do mercado russo, a Microsoft emitiu uma licença de software geral para grupos sem fins lucrativos fora dos EUA, impedindo, de forma eficaz, que a pirataria de software fosse usada como desculpa esse tipo de ação nociva.

Ao ponderar sobre como agir em casos desse tipo, as empresas devem primeiro decidir se trabalharão sozinhas ou em colaboração com outras organizações. Embora a Microsoft tenha conseguido agir rapidamente por conta própria, empresas menores podem achar mais eficaz (embora mais lento) trabalhar coletivamente com outras empresas ou em iniciativas que envolvam vários stakeholders e eventualmente também ONGs e governos.

Depois de decidir quanto à adoção de uma abordagem individual ou coletiva, as empresas também precisam definir se abordam a questão de forma direta ou indireta para influenciar o contexto institucional geral, avaliando o que trará um sucesso maior ou o que receberá mais apoio. Seis táticas se enquadram nessas estratégias diretas e indiretas.

Ações diretas

Informe. Forneça análise de antecedentes, publique manifestos, deponha como testemunha especializada ou até faça lobby pelos direitos humanos.

Após o assassinato de Khashoggi pelo estado saudita, o CEO do conglomerado alemão Siemens condenou publicamente a violação dos direitos humanos, aludindo inclusive à história da Alemanha para ilustrar as atrocidades que podem acontecer se ninguém se manifesta.

Em 2018, em parceria com o Danish Institute for Human Rights, a Nestlé, maior empresa de alimentos e bebidas do mundo, aprimorou seu programa de treinamento para funcionários, focando em entender o que são direitos humanos, os desafios que os envolvem e as soluções práticas. A empresa afirma que já formou 100 mil funcionários e pretende que todos os colaboradores sejam treinados até o fim de 2020. A Nestlé divulgou o programa na esperança de inspirar outras empresas a fazerem o mesmo.

Financie.  Forneça (ou retire) apoio financeiro a políticos, grupos de interesse e empresas. Isso inclui medidas como desinvestimento ou corte de laços financeiros com stakeholders que não estejam alinhados com os valores da empresa.

O Fundo Estatal de Pensões norueguês, por exemplo, excluiu uma série de empresas israelenses de sua lista de investimentos com base no argumento de que elas se beneficiam indiretamente das violações do direito internacional e dos direitos humanos que ocorrem em função da ocupação de territórios palestinos.

Rejeite. Recuse-se a participar de reuniões de negócios e conferências, assim como diversas empresas fizeram no caso da conferência de 2018 anunciada como “Davos do deserto”.

Ações indiretas

Assuma o desenvolvimento institucional. Use recursos da companhia para fornecer e aprimorar o entendimento sobre direitos humanos, apoie a criação ou a aplicação de instituições sociais e políticas bem alinhadas, encoraje a transparência e a liberdade de imprensa. Essa é uma área em que estabelecer parcerias com outras organizações pode ser especialmente eficaz. Por exemplo, numa tentativa de modernizar o Judiciário e combater a corrupção, a petrolífera norueguesa Statoil (hoje conhecida como Equinor) se comprometeu a apoiar um programa de treinamento em direitos humanos para juízes venezuelanos.

Comprometa-se com padrões específicos. Assine cartas de compromisso não obrigatórias (e cumpra o que for estabelecido nelas), como o Pacto Global das Nações Unidas ou a ISO 26000. Essa tática é ainda mais eficaz para associações e empresas da indústria que são líderes em suas áreas. Esses compromissos talvez não signifiquem muito por si só, mas podem se traduzir em ações significativas sob a pressão resultante da crítica e da vigilância de stakeholders fundamentais, como ONGs, funcionários ou clientes.

Eleve os padrões. Estabeleça padrões novos que complementem leis existentes – essa pode ser a tática mais efetiva por parte das empresas. Ao trabalhar coletivamente com outras empresas ou stakeholders, as companhias podem criar estruturas éticas que definem o comportamento corporativo em relação às violações dos direitos humanos.

Um exemplo disso foi o Bangladesh Accord (acordo sobre segurança contra incêndios em construções civis) e a Alliance for Bangladesh Worker Safety, iniciativas surgidas na indústria de vestuário após o colapso do edifício Rana Plaza em 2013 em Bangladesh, que matou mais de 1,1 mil trabalhadores do setor de confecções.

Quando o posicionamento deve ser drástico

Ainda assim, algumas situações exigem ações mais radicais, e a melhor decisão talvez seja encerrar as operações no país em questão. Por exemplo, Chase e outros bancos, ao lado de muitas outras empresas, se recusaram a fazer negócios durante o Apartheid na África do Sul. Recentemente, o Google se retirou parcialmente da China após se recusar a fornecer ao governo acesso aos dados do usuário ou e-mails essenciais ao regime.

A escolha dessa opção mais drástica tem consequências potencialmente graves para a empresa e para o país no qual ela opera. As empresas e seus líderes não devem tomar essa decisão de forma leviana ou sozinhos. Afinal, os gestores não são especialistas em questões sociais, muito menos em direitos humanos. Os gestores responsáveis devem incluir vários stakeholders no processo de decisão – nesse caso extremo e de forma mais geral também – para definir quais táticas aplicar e se devem, no fim das contas, cortar os laços por completo.

As táticas que descrevemos aqui não se limitam a questões de direitos humanos e também podem ser modificadas em resposta a outros assuntos urgentes. A importância das questões sociais e ambientais aumentou significativamente nos últimos anos, fazendo com que se reconhecesse atualmente que as empresas podem ser um veículo para a divulgação e a proteção dos direitos humanos e da justiça ambiental.

A escolha de qual abordagem e estratégia usar dependerá do contexto e do impacto que sua empresa deseja causar. Em vez de seguir operando normalmente diante de evidências claras de violações dos direitos humanos – ou no contexto da crise climática atual – os líderes empresariais podem fazer algo mais positivo e, ao agir deliberadamente, se tornar uma força do bem.”

Markus Scholz e N. Craig Smith
Markus Scholz ocupa a cátedra de Corporate Governance & Business Ethics da University of Applied Sciences for Management & Communication em Viena. Ele também dirige o Institute for Business Ethics and Sustainable Strategy e é pesquisador visitante no INSEAD Hoffmann Global Institute for Business and Society. N. Craig Smith é diretor de ética e responsabilidade social do INSEAD; é professor especialista do Centro de Governança Corporativa do INSEAD. Seu livro mais recente (com Eric Orts) é The Moral Responsibility of Firms (Oxford University Press, 2017).

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