
Uma parábola sobre a colher de cabo grande, adaptada a estes tempos de debates sobre inclusão, ajuda a enxergar onde estão os maiores entraves para a ação de compartilhar
Eu pensei várias formas de começar esta discussão aqui e resolvi perguntar….
Você realmente sabe o que é compartilhar?
Eu tentei muito fugir do discurso romântico sobre “compartilhar”, onde tudo se justifica se tem propósito, porque eu acredito muito em plurais, ou seja, existem propósitos, e não um propósito que represente a todos.
Eu, como todo bom mineiro, desenho a vida letrando contextos em causos. Bora para mais um?
Você já deve, por acaso, ter ouvido ou lido sobre a história das colheres de cabo grande. Caso não, aqui vai um breve resumo não oficial, mas que transmite bem a mensagem que a história traz:
No caminho, eles perderam os pratos. Mas como eram coletores de oportunidades, recursos e capas de revistas, focaram na criação das colheres mais perfeitas para o trabalho. Como as oportunidades e recursos muitas vezes eram escassos, eles também focaram em aumentar os cabos dessas colheres. Sim, os melhores tinham as colheres de cabos maiores.
Devido à ausência de pratos, eles foram obrigados a se alimentar diretamente do caldeirão onde se encontrava o delicioso cozido. Entre colheiradas, entornadas e disputas sobre quem conseguiria pegar, o maior desafio deles era como fazer com que estas colheres cheias chegassem às suas bocas.
Era impossível! Os cabos dessas colheres eram grandes o bastante para pegar a comida no caldeirão ao fogo sem se queimar, mas impossível de levar a comida até a boca. Uma fome que não tinha fim, uma corrida que não tinha linha de chegada, uma grande escassez num momento de abundância.
Essa história tem várias versões numa rápida busca pelo Google, como esta. A versão acima é uma adaptação baseada em minhas vivências e experiências no ecossistema de inovação e impacto social no Brasil. Essas colheres existem, essas fogueiras também, atraindo nobres viajantes em busca de saciar uma sede, uma fome e, pior: os cabos dessas colheres são enormes.
Não cheguei ao fim da minha versão da história de colheres de cabos grandes.
Durante umas das disputas “acolheiradas”, um dos buscadores de propósito bate na colher de uma outra e isso quebra o cabo de umas das colheres, a maior delas na verdade. O silêncio toma conta do ambiente em torno da fogueira. Sem reações, respiros e movimentos. Numa súbita tentativa de acalmar os ânimos e dissipar a “bad vibes”, uma buscadora mais “good vibes” resolve oferecer o recurso que está em sua colher para outro buscador, que rejeita inicialmente. Mas, tipo assim, né? Recurso dado não se olha os dentes.
Num movimento de ciranda, todos começam a alimentar uns aos outros como queriam a si mesmos. Uma catarse alimentar de recursos e oportunidades, a terra prometida do propósito havia alcançado a todos.
Vocês queriam um final feliz, não?
Infelizmente, no mundo real, as colheres de cabo grande já são 4.0, têm cabos retrateis que permitem que quem alcança mais recursos se alimente. Assim, não é preciso dividir, compartilhar e nem cirandar.
Se você não entendeu até aqui que eu estava narrando experiências vívidas e vividas no construir, atuar e disputar no ecossistema de impacto no Brasil, a culpa pode ser minha. Às vezes, a lembrança do momento “ciranda” ao redor da fogueira me desperta uma certa nostalgia e entro na ilusão.
Mas eu acredito que a culpa de replicarmos esse modus operandi não é só na conta dos buscadores, afinal a gente só busca o que pode encontrar. Os “ofertadores”, que na vida real são os investidores, doadores e fomentadores também fazem escolhas nesse processo de como acontece o impacto no Brasil e quem fica pelo caminho.
Ainda pior: as boas práticas sobre gestão, transparência e sustentabilidade que deveriam ser aprendidas e aplicadas neste campo são substituídas pela competividade nociva, desvalorização do capital intelectual e mão de obra, bem como processos com heranças coloniais.
Gosto de brincar que não somos um eco, mas sim um EGOssistema. E continuaremos ser enquanto formos um sistema de colheres de cabo grande.
Faço também aquela reflexão em voz alta, que vem sempre após uma grande problematização: Caminhos? Soluções? Futuros?
Se falar que sei, estaria mentindo para mim e, claro, para vocês. Mas uma certeza sou capaz de sustentar: nada se sustenta baseado apenas em um ponto de vista ou escolha.
Pandemias, desigualdades analógicas e digitais e outros impactos nos micro universos diários nossos de cada dia nos mostram que precisamos começar a pensar caminhos, escolhas, plurais e diversos.
É tempo de deixar subir, deixar passar e deixar ser. Grupos privilegiados precisam realmente entender, da forma mais profunda, suas vantagens, seja pela cor da pele, por poder hereditário e, claro, CEDER!
Fazer concessões não é processo fácil – nossa, eu que o diga… Exige reconhecer que se está errado e no lado errado na história mesmo que a sua própria não tenha sido tão fácil. Mas privilégios têm vários tamanhos, sabores e cores. Combatê-los ou abdicar deles em todas as sua nuances e dimensões é uma forma de diminuir o cabo das colheres e praticar o real significado do compartilhar.”