Se querem sair do discurso para a prática antirracista, as empresas precisam, antes de tudo, adotar um framework com os filtros certos para analisar a força de trabalho
Em meados de 2020, nos Estados Unidos, um número inédito de líderes empresariais reconheceu e condenou publicamente o racismo institucional e estrutural, e as injustiças que isso gera. Em resposta a protestos generalizados contra a violência policial, eles fizeram declarações exigindo o fim das disparidades raciais em todos os sistemas, incluindo os de saúde, educação, moradia, justiça criminal e emprego.
Esse movimento (que aconteceu no Brasil também, embora tenha sido menos ruidoso) surgiu num momento em que muitas pessoas negras estavam na perigosa linha de frente da pandemia de Covid-19, com salários baixos e equipamentos de proteção precários, enquanto trabalhadores com salários mais altos ficavam protegidos em casa.
O que as empresas estão fazendo, ao afirmar apoiar a equidade racial, é se comprometer, também publicamente, a mudar fatos como estes: negros têm maior probabilidade de trabalhar em setores econômicos com salários baixos, e em empregos de alta rotatividade; negros ganham menos que os colegas brancos; em média, negros têm um patrimônio líquido 90% menor que o dos brancos.
A disparidade patrimonial se mantém até entre os negros com diploma universitário. As famílias destes mostram ter um patrimônio líquido menor que o das encabeçadas por brancos que abandonam o ensino médio. A disparidade é tão profunda que, segundo estimativas, na atual taxa de crescimento patrimonial, as famílias negras levariam 228 anos para acumular a riqueza que as famílias brancas detêm hoje.
Quando se fala em buscar a igualdade racial, fala-se em buscar uma realidade na qual a raça não determine, estatisticamente, o salário de alguém. A maioria das empresas já admite que meras declarações não aproximarão seus locais de trabalho – ou o país – dessa realidade alternativa. Porém poucas sabem quais passos dar a seguir para fazer isso acontecer, conforme estudo que fiz sobre o nível de preparo das organizações para lidar de verdade com o desafio.
Felizmente, os empregadores já têm o que precisam para guiar seu caminho: dados. Na última década, o data analytics tem servido para melhorar a qualidade de produtos e serviços, a eficiência na produção e distribuição, e para formatar modelos de negócio. Agora é a hora de um novo tipo de análise dos dados da força de trabalho ajudar a identificar esses passos – passos que sejam mensuráveis e significativos – rumo a um ambiente de trabalho mais equitativo.
Como sabemos, se quiserem realmente obter sucesso, estratégias de equidade racial devem ser sistêmicas, explícitas e orientadas a resultados. Então, realizei um estudo para entender melhor quão preparados estão empregadores e outros stakeholders para seguir estratégias desse tipo. O estudo mediu quatro pontos:
• se os participantes tinham uma compreensão precisa de equidade racial (como algo distinto de diversidade ou de inclusão);• se identificavam resultados mensuráveis de igualdade;• se coletavam e desagregavam dados para avaliar esses resultados e• se implementavam políticas raciais explícitas com o objetivo de incrementar a equidade.
A primeira descoberta foi que, embora muitas empresas expressem o “forte desejo“ de criar locais de trabalho equitativos e inclusivos, poucas têm ações específicas, e mensuráveis, compatíveis com tal objetivo. O estudo mostrou que a maioria sequer havia analisado as próprias políticas e práticas para saber se ajudavam ou atrapalhavam os esforços contra o racismo. Isso dificulta muito, e muitas vezes impossibilita, qualquer medição do progresso.
De um modo geral, as empresas acessam um volume cada vez maior de dados sobre a força de trabalho, sim, e também possuem a tecnologia necessária para analisar esses dados, mas elas não filtram os dados para entender melhor os impactos que suas políticas e práticas têm sobre a equidade racial e poder determinar as mudanças organizacionais necessárias.
Quais deveriam ser os filtros? Existe um framework de trabalho alimentado por dados que organizações deveriam cumprir:
1. Coletar, desagregar e analisar dados relacionados especificamente com raça e etnia.2. Identificar as disparidades raciais nos “resultados” da força de trabalho (aqui a autora se refere de desempenho a salário, passando por promoções de cargo,acesso a programas educacionais financiados pela empresa etc.).3. Buscar explicitamente a raça sempre que for investigar disparidades.4. Investigar as causas estruturais das disparidades raciais.5. Descobrir as políticas, práticas e mensagens de hoje que estão reforçando os “resultados” diferenciados por raça, para desenvolver estratégias que possam eliminá-las.
Esse framework é muito importante. Trabalhar pontos críticos de retenção, como onboarding, avaliação ou promoção, sem usar esse framework pode levar a empresa a uma perda de talentos – e de receita – que seria evitável. E só é possível de fato eliminar as barreiras raciais, quando nós a localizamos, o que o framework nos ajuda a fazer.
Utilizar um framework como esse é trabalhoso, sabemos, mas esse framework deveria ser parte de toda e qualquer iniciativa antirracista que a liderança sênior aprove. Citando o que me disse um gestor entrevistado: “Se estratégias de equidade não forem apoiadas pela alta gestão e mensuradas, e se não receberem recursos, tudo não passa de conversa fiada”.
Mesmo entre as empresas que têm algum tipo de estratégia antirracista, o estudo levantou que várias práticas podem não ser tão eficazes quanto se espera. Eis as principais vulnerabilidades:
Dados agregados. Se sua empresa é grande, talvez já esteja coletando dados da força de trabalho para cumprir as exigências legais ou para tratar de questões episódicas, como um ponto de atrito. Mas há um risco nesses instantâneos estatísticos; eles podem agregar experiências de todos os trabalhadores, o que mascara as disparidades raciais. Desagregar os dados por raça proporciona uma análise mais valiosa.
Embora a desagregação seja relativamente simples, decidir o que fazer com os dados é algo complexo. Por exemplo, a equidade na remuneração e na promoção de cargos sinaliza a todos os funcionários que eles têm perspectivas iguais de crescimento no longo prazo, o que é fundamental para sua retenção. Entretanto, a forma como a raça influencia essas perspectivas é complicada, mais ainda quando se cruza políticas antirracistas como políticas que favorece o tempo de casa dos funcionários ou o gênero. Talvez um grupo de novos funcionários seja mais diversificado que o de funcionários mais antigos, mas a política de remuneração valoriza mais o tempo de permanência na empresa do que o desempenho, por exemplo. Pode ser que os programas de treinamento neutros em relação à raça visem funcionárias do sexo feminino para remediar a histórica discriminação de gênero. O uso de analytics avançado pode encaixar tudo isso como questões de equidade racial, inclusive. Por isso, se queremos eficácia, a decisão do que fazer continua sendo uma decisão humana.
Algumas empresas de pequeno porte também têm políticas antirracistas, mas é provável elas não tenham dados suficientes dos quais extrair padrões. Para resolver isso, elas podem usar dados qualitativos para explicitar as experiências de seus funcionários, o que é igualmente útil. Fazer as perguntas certas pode levantar bandeiras vermelhas – por exemplo, quais novas vagas são divulgadas só no boca a boca. Isso porque o boca a boca depende de canais informais de comunicação e conexões pessoais, e esses podem fortalecer barreiras contra negros (já que brancos costumam ter um networking predominantemente branco). Portanto, as perguntas certas são bem valiosas; se o número de vagas divulgadas boca a boca for grande, essa por si só já revelou a necessidade de identificar novos caminhos de recrutamento. Outra opção para pequenas empresas em busca de mais analytics é reunir dados externos para fazer benchmarking com outras pequenas organizações do mesmo setor.
Não consideração de fatores societários e sistêmicos amplos. Apesar da recente explosão de softwares para analytics que detectam disparidades na folha de pagamento, essas ferramentas muito focadas podem revelar pouco sobre as raízes da desigualdade. Por exemplo, quando se trata de gênero, um analista de RH, usando um software, insistiu que “ao manter constantes todos os outros fatores, na verdade apareceu pouca disparidade salarial”. O que isso significa? Nada. Um framework equitativo tem de desafiar a pressuposto de que, na busca de desigualdades, devemos “manter todos os outros fatores constantes”. Pois é dentro desses “outros fatores” que o racismo estrutural pode se esconder.
Explicando melhor: a discriminação histórica nas áreas da habitação, da educação e do emprego formou a base sobre a qual a segregação atual se sustenta. Se retirarmos da análise qualquer informação sobre onde um funcionário se formou, o tempo de um funcionário na empresa ou seu progresso profissional, podemos estar ignorando exatamente as barreiras que desejamos remover. A falta de diversidade na força de trabalho na linha de frente, por exemplo, pode refletir desinvestimentos de longo prazo no transporte público e segregação residencial. Assim como os empregadores defendem há tempos que as escolas públicas devem equipar os estudantes com habilidades voltadas para o futuro, esses dados podem levar você a defender sistemas mais equitativos de transporte e desenvolvimento comunitário.
Uma estratégia de equidade eficaz deve não só combater os efeitos do racismo sistêmico, mas também suas causas; ela precisa procurar mudar os sistemas, não os indivíduos. Por isso, as causas devem ser procuradas.
Não se conversa sobre raça. Muitos empregadores com políticas de diversidade adotam uma linguagem neutra em relação a raça; relutam em usar o termo “racismo” ao justificar ações práticas bem-intencionadas, preferindo se referir a “oportunidade econômica” ou “inclusão”. Como nosso estudo deixou claro, no entanto, excluir raça do vocabulário corporativo não elimina a desigualdade. Criar políticas inclusivas sem falar em raça não melhora a inclusão.
A primeira questão é: não importa se você se sente à vontade falando sobre raça; a demografia de sua empresa já conta a história. Um gestor do setor de hospitalidade que participou do estudo explicou assim: “Equidade racial no local de trabalho é ter uma liderança que espelhe a mesma diversidade dos funcionários no nível mais baixo da hierarquia. Você me mostra uma organização onde todos na primeira linha são afrodescendentes com uma estrutura de liderança que é principalmente branca, e eu digo que há um problema aí”. A incapacidade de reconhecer tais disparidades é ruim para qualquer líder que queira eliminá-las.
Para a maioria dos líderes empresariais, conduzir conversas sobre raça (ou participar produtivamente dessas conversas) só vai virar algo rotineiro com muito aprendizado e autorreflexão. Uma solução para essa dificuldade da liderança em falar sobre racismo é contratar um facilitador externo para ajudar a estabelecer uma linguagem comum, além de encomendar uma auditoria das políticas e práticas existentes, e além de criar metas específicas e mensuráveis. Quando sua organização tiver essas metas, por exemplo, o framework alimentado por dados que citamos vai ajudá-la a estabelecer a prática da equidade racial como um hábito de gestão.
Voltando à linguagem antirracista, uma gestora entrevistada descreveu uma de suas primeiras tentativas de aplicar o framework: escrever no cabeçalho da pauta de cada reunião “Como o assunto em questão afeta a equidade racial?”. Ela confessa que, no começo, se sentia forçando a barra. Mas, com o tempo, esse exercício diário a ajudou a criar uma cultura na qual se tornou “automático” perguntar: “Qual é o impacto dessa ação na equidade racial e na inclusão?”
Em outro local de trabalho, os líderes tornaram a equidade racial uma parte essencial do processo de contratação. “Está na descrição do cargo, na entrevista de emprego, nas referências que pedimos. E é um critério importante para avaliações anuais de desempenho. Cada comitê de seleção inclui membros diversos do staff para fazer a avaliação do candidato”, disse um gerente da organização. Com o tempo, mudanças pequenas, mas intencionais, como essa, podem melhorar de forma mensurável a diversidade, a equidade e a inclusão.
Dados (e analytics) tendenciosos. Defensores do uso de inteligência artificial (IA) e machine learning em recursos humanos apregoam seu potencial de eliminação de preconceito racial em decisões humanas sobre contratação, promoção, aumento salarial e treinamento. Faz sentido. Algoritmos que consideram experiência e habilidades reconhecidamente correlatas a “sucesso” podem realmente identificar candidatos negligenciados pelo viés de afinidade – “alguém como eu”. Assim, sistemas de dados podem ajudar a combater os vieses implícitos que dão origem à discriminação. O uso de dados objetivos para decidir uma contratação ajuda a mitigar as disparidades salariais ou a segregação ocupacional muito tempo depois de um funcionário ser contratado. E muitos empregadores começaram a integrar IA à tomada de decisões do RH.
Entretanto, grandes conjuntos de dados também podem replicar o viés racial se as máquinas forem ensinadas a discriminar com base em substitutos de “raça” aparentemente neutros, como instituição educacional, localização geográfica e histórico de treinamento. Como advertiu um gestor entrevistado: “Uma coisa contra a qual luto é que os dados que coletamos são afetados por sistemas mais abrangentes de racismo”.
Enfim, embora muitos empregadores tenham começado a integrar IA à tomada de decisões do RH, é preciso cuidado para que falhas nos dados de treinamento não gerem distorções tais que as ferramentas tecnológicas espelhem os preconceitos humanos em vez de eliminá-los. A aplicação de um framework de equidade pode ajudar a evitar o uso de dados que reproduzam barreiras raciais.
Séculos de racismo institucional e estrutural criaram, e continuam a criar, desigualdades devastadoras em nossas comunidades e locais de trabalho. Embora os compromissos públicos dos líderes empresariais com a justiça racial sejam animadores, a disposição de mudar políticas injustas, criar oportunidades iguais e eliminar sistemas preconceituosos deve ter uma continuidade prática no dia a dia. As empresas têm ferramentas para fazer isso. Como explicou um executivo entrevistado: “É surpreendente o que um líder do lado certo da equidade consegue fazer para gerar impacto em um negócio”.”